ESPÍRITO IMUNDO - CLTS 06

Era início de uma boa estação chuvosa. Josias, um homem de meia idade que mora só, no alpendre de sua casa toma o café feito por ele mesmo. De olhar fixo para a casa ao lado, espera Mateus, o filho do vizinho, que vai ajudá-lo nos trabalhos do roçado. Ainda é cedo, mas como de costume, ele acorda antes do sol raiar para fazer o café, preparar as duas marmitas e limpar suas ferramentas.

Soprando o café quente, ele vê Mateus e Seu Álvaro saírem de casa e virem em sua direção. Ele gosta de observar detalhes: vê as roupas, as formas de andar, as curvas e formas dos corpos. Tudo faz em silêncio e sem nunca comentar tal costume. Ao se aproximarem, todos se cumprimentam e trocam algumas palavras:

- O dia tá bonito, né, Seu Álvaro?

Olhando pro céu, ele responde:

- Hoje o dia vai ser bom pro serviço. Pelo jeito, pode chover.

- Também acho – comenta Mateus.

- Seu Josias, é verdade que uma onça fugiu do circo por esses dias?

- Olha, Seu Álvaro, desde que me contaram isso, eu só vou pra roça com minha espingarda. Fiquei sabendo que ela já matou uns três rapazes perto daqui por esses dias.

- Meu Deus do Céu!

Cuspindo no chão, Josias diz:

- Animal maldito.

- Vou me informar sobre o que aconteceu.

Depois de mais alguma conversa e um cigarro, como ficou acertado, Seu Álvaro vai para o mercado a pé e deixa seu filho com Josias. Mateus é um rapaz bem jovem, esbelto que nem cabelo no rosto ainda tem. Ele não leva muito jeito para trabalhar no campo, mas seu pai insiste que ele precisa domar as terras se um dia quiser herdá-las.

Após fechar a porteira, os dois seguem para a plantação. Josias não é muito de falar, mas pensa muito, muito consigo mesmo. Ao chegarem à roça, ele pega mais um cigarro, acende-o e, apoiado na enxada, observa o garoto agachado tirando capim com as mãos. Distrai-se e deixa o cigarro cair. Abaixa-se, pega-o e o coloca na boca. Então batendo com as mãos antes de começar o trabalho, pensa consigo. “Afasta de mim, meu Deus, esse pensamento”.

Olhando para os lados, observa a calmaria da região. Não se escuta quase nada, nem ninguém, apenas o som dos pássaros e do velho cata-vento se movendo. Olha para casa e vê ao lado, na casinha, o seu grande cachorro que apesar da fome não late por medo do dono. “Afasta de mim, meu Deus, esse pensamento”.

A manhã continua nublada e as nuvens cada vez mais pesadas e escuras. Alguns trovões quebram a calmaria. O vento começa ficar frio. Pássaros voam em direção às arvores. Sinais de chuva. Na plantação de milho, Josias observa tais sinais em silêncio, até que Mateus limpando o suor da testa comenta:

- Agora tá bom demais. O tempo tá bem fresco. Trabalhar em tempo de chuva é muito bom, Seu Josias.

Ao terminar de falar, ele tira a camisa e a coloca sobre o ombro. Josias, parando a enxada, olha para as costas do garoto e responde com uma voz firme e seca:

- Tem razão. É bom mesmo, menino.

A partir de então, não se concentra mais. Deixa escapar alguns capins e esquece de colocar o produto químico em algumas plantas. A voz e as costas do garoto não saem da sua cabeça. Tenta se distrair mentalmente com uma música, mas logo ela sessa e a maldita ideia lhe vem novamente. “Afasta de mim, meu Deus, esse pensamento”. Tenta recomeçar a música, mas é em vão. Em desespero, balança a cabeça na tentativa de afastar tal pensar. Não dá certo. Então olha para o lado e vê sua pá. “Não, Josias”.

Ao ver o homem parado olhando para o chão, Mateus chama sua atenção:

- O senhor tá bem?

Com o susto, Josias tira os olhos da pá e olha para o menino. Observa as gotas de suor descendo do peito ao umbigo. “Não, Josias”. Então responde:

- Tudo bem. É que eu tava pensando numas coisas.

- No quê?

- Nada não. Besteira – responde tentando não olhar mais para o garoto sem camisa.

Horas depois é chegada a hora de almoçar. Josias entrega uma marmita para o garoto que sorri e decide se sentar ao seu lado:

- Senta mais pra lá, menino, porque eu vou fumar assim que acabar.

- Pode fumar. A fumaça não me incomoda.

Aquele rosto sorrindo foi um golpe. “Por que ele sorriu pra mim?”. Vez ou outra, ele não resiste e olha para o garoto que entretido come em silêncio. Entre eles estão a espingarda e o facão. Josias come, mas não tem fome, não de comida. Sua mente só quer que ele olhe para o facão. “Afasta de mim, meu Deus, esse pensamento”.

Ao terminar de comer, ele acende um cigarro e olha para o céu à sua frente. É o momento de descanso, mas sua mente não lhe deixa repousar. Vez ou outra balança a cabeça como quem tem calafrios. “Espírito imundo”. Uma lista de coisas aleatórias começa a ser dita em sua cabeça: “trovões, cachorro, espingarda, onça, faca, calmaria, eu, Mateus...”.

Depois de horas em silêncio, ele sussurra involuntariamente:

- Afasta de mim, meu Deus, esse pensamento.

Mateus, que ainda está ao seu lado, pergunta:

- O senhor pediu alguma coisa?

- Não. Eu só tava rezando.

- Ah! – diz o garoto se levantando e tirando a poeira dos fundos do calção.

Josias observa a cena perturbadora. Cada vez que as mãos do garoto batem nos fundos do calção, parece que o seu espírito grita de fome. Cada batida no calção é uma palpitada violenta em seu íntimo. Começa a suar frio e é nesse momento que Mateus se afasta um pouco para urinar. É nesse momento que uma luta intensa começa dentro de Josias, e logo aparece um vencedor. Ele abre os olhos, bate com as mãos do rosto, levanta-se e vai em direção à sua casa sem dizer nada a Mateus.

Minutos depois, Josias volta de casa com um pequeno balde na mão e segurando seu grande cachorro pela coleira com a outra. Ofegante, ele amarra o cão em um toco próximo. Pega sua pá e vai para perto de Mateus que logo pergunta:

- O senhor tá cismado, né?

- O quê, menino?

- Cismado com a onça.

- Ah! Isso mesmo. A onça.

Alguns minutos de serviço depois, Seu Josias pede ajuda a Mateus para tirar uma pedra que está no meio da linha de plantação. O garoto, com as pernas retas se inclina para frente até as mãos tocarem a pedra. Josias, logo atrás dele, observando a cena e com o espírito em estado de gozo, pega sua pá e bate com toda a força na cabeça do menino que cai desacordado. É então que como um caçador exitoso, ele desfruta do resultado da caça.

Após de alguns minutos, com as vestes em seus devidos lugares e o espírito saciado, ele pega sua faca e começa a ferir seus próprios braços e o peitoral. Rasga a própria camisa. Em seguida, pega o balde que contém um pouco de sangue de porco e vai para perto do garoto inerte e de bruços.

Ele, com o facão numa das mãos, abaixa-se, pega o garoto pelo pescoço e lhe cortando a garganta lentamente. Enquanto termina o corte, passa a mão no rosto dele e diz:

- A onça nos pegou, menino.

Logo em seguida, Josias derrama o sangue de porco no pescoço do garoto e solta o seu cão que faminto bebe e começa a comer pedaços da garganta juvenil. Ele deixa seu cão por alguns minutos saciar sua fome, mas depois, leva-o para o riachinho para lhe banhar e retirar qualquer vestígio de sangue. Depois de prender o cachorro em sua casinha e voltar para o local onde está o garoto, ele dá três tiros para cima e senta-se ao lado do jovem corpo.

Ele sabe que logo aparecerão as pessoas. O som de tiros sempre chama atenção. Enquanto isso, fica imóvel e sentado, observando aquele corpo e lembrado do que fizera. “Por que, meu Deus, não afastaste de mim aquele pensamento? Até quando isso vai acontecer?”. Relembra outras lutas internas, caçadas e a mesma sensação de gozo espiritual do momento. “Espírito imundo”.

Com o passar dos minutos, o pai do garoto aparece armado com uma espingarda e depois de um grito de horror e desespero pergunta aos gritos e com os olhos incandescentes o que tinha acontecido com o seu filho. Josias, dissimuladamente tremendo com a voz e de cabeça baixa, responde:

- A onça...

É nesse momento que Álvaro, tremendo de ódio e com uma expressão de fúria, engatilha sua arma e aponta para Seu Josias, preparando-se para atirar. Surpreso com a reação do vizinho, Josias por fim levanta as mãos e temeroso pergunta:

- Por que você vai me matar, Álvaro?

- O circo, Josias. O circo não tinha onça!

TEMA:Serial killers

HENRIQUE SANTOS CE
Enviado por HENRIQUE SANTOS CE em 05/02/2019
Reeditado em 26/02/2019
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