UM LUGAR ESPECIAL PARA ELA

Um lugar calmo. Um refúgio livre das mazelas e da agitação do dia a dia. Um espaço que pudesse chamar de seu. Isso era tudo o que ela esperava encontrar quando deixou seu mundo pra trás e decidiu comprar aquele chalé afastado e mergulhar num ano sabático em busca de autoconhecimento.

Para tanto, relegou o comando da rede de lojas de doces em favor da sócia e melhor amiga, ela tinha plena convicção de que a decisão era acertada. Mas não diria a ninguém, nem mesmo para ela, onde seria o seu recanto especial.

A manhã ensolarada e os indícios de civilização já haviam ficado para trás há muito, quando a picape que conduzia deixou a estrada barrenta e adentrou pelo caminho entre as árvores. A placa indicativa do local não passava de um arremedo de mensagem, fato que requereu muita de sua atenção já abalada pelo cansaço.

No princípio, a passagem por entre os troncos não apresentava nenhum fator incomum, mas à medida que a estrada ficava para trás, a sensação era a de que o veículo percorria um túnel sem fim, pois as estrelas do firmamento e a luz do luar compunham um cenário isolado diante do teto impenetrável formado pela copa das imensas árvores.

Não tardou para que a escuridão absoluta dominasse todo o ambiente. Os olhos luminosos do veículo, mesmo em seu alcance mais alto, não desvendavam muito do que viria à frente, fato que exigia cautela e proporcionava certa apreensão. A impressão que se tinha era a de que algo inusitado surgiria no caminho, o que de fato viria a acontecer.

No início era um cintilar alaranjado, como o tom proeminente de uma chama. Um par de sinais faiscantes e de certo modo sedutores. Ela achou estranho, mas não se incomodou a ponto de interferir no seu intuito: o de encontrar o vendedor do imóvel.

No entanto, o que eram apenas duas órbitas incandescentes logo se tornaram quatro, oito e a cada piscar de olhos pareciam se multiplicar. A floresta se mostrava iluminada por uma centena de velas. Seu pé direito hesitou por um instante, tempo mais do que suficiente para que sentisse um estrondo sobre o teto da caminhonete.

Não havia a menor dúvida de que algo caíra sobre a cabine e, nesse momento, a perna paralisada pelo advento inesperado saiu do transe e acionou com veemência a placa de aceleração fazendo com que o veículo disparasse.

Foi só então que percebeu, com horror, que os pontos em chamas eram olhos. Olhos humanos! Ou pelo menos era o que pareciam, pois os detentores de tais órbitas, embora apresentassem os contornos inequívocos de pessoas, apresentavam traços selvagens, animalescos e, principalmente, ameaçadores.

Ela gritou, mas no isolamento da mata ninguém poderia ouvi-la. As criaturas, ou seja lá o que fossem, começaram a se jogar diante do veículo em fuga, mas ao contrário do que ela imaginou, não houve um choque violento. Os corpos daqueles seres pareciam etéreos, pois ao contato com a chapa metálica da picape pareciam evanescer, mas não sem antes deixar um incômodo efeito colateral, um imenso calor no interior do veículo, algo tão insuportável que a fez largar do volante.

A atitude reflexa fez com que perdesse o controle da caminhonete, levando a uma inevitável colisão. O forte impacto acionou o sistema de airbags, amortecendo o contato que poderia ser fatal.

Ainda tentando se recuperar do susto, ela não teve muito tempo para por os pensamentos em ordem, uma vez que uma névoa luminosa formada pelo olhar dos seres continuava a seguir em sua direção.

Forçando a porta, ela teve dificuldades para escapar, e quando conseguiu fazê-lo, os olhos perseguidores já estavam na iminência de alcançá-la. Ela correu. Correu por seus sonhos. Correu pela vida. Correu o mais rápido que pôde.

Diante das trevas, ela mal conseguia ver. Tudo o que ela percebia era a luminosidade crescente às suas costas, o que de certo modo a ajudava a desvendar o caminho diante dos seus pés.

Por uma ação que ela creditou aos céus, sua visão mergulhada em lágrimas percebeu, ao longe, os traços de uma construção. Era possível entender dessa forma, pois os postes iluminados por candeeiros assim mostravam.

Um fio de esperança preencheu seu coração, um sentimento que infelizmente não duraria muito. Uma das criaturas surgiu sem que ela percebesse sua origem e a agarrou pelo pescoço proporcionando uma dor imensurável.

Novamente ela viria a gritar, dessa vez dominada pela agonia da queimação causada pelo contato.

Desvencilhando-se com dificuldades e danos, ela continuou com a tentativa cada vez mais improvável de escapar de seus perseguidores. Ferida. Amedrontada. Tomada em desespero. Mas, ainda assim, incólume em sua vontade. Ela não morreria daquela forma.

Com a respiração entrecortada e as pernas fraquejando, conseguiu adentrar pelas cercanias da casa. Havia alguém na porta. Um homem gesticulava para que ela corresse, para que se apressasse, apontava para o interior do chalé como se oferecesse o caminho para a salvação.

Ela entendeu o recado e não esmoreceu. Renovou as forças e imprimiu mais velocidade. Entretanto, algo agarrou sua perna direita levando-a ao chão. E, pela queimação no tornozelo não seria preciso se virar para entender o que seria.

Por mais que sua determinação fosse forte como o aço, ela já não apresentava mais recursos para lutar. E, antes que viesse a desfalecer, ainda conseguiu descrever o rosto do velho que corria em sua direção com algo iluminando sua mão, alguma coisa que acendeu a noite e afugentou as criaturas. Ela assim entendeu pela sensação de alívio nas pernas. Então, fechou os olhos e perdeu os sentidos...

Ela sentiu um ardor no rosto e deixou escapar o desespero com um grito. Mas era apenas o calor do sol incidindo sobre sua pele.

- Calma, você está bem – disse um homem com um rosto familiar.

- Você, você me salvou das criaturas.

- Do que você está falando? – Perguntou uma mulher que acompanhava o homem.

- Ele me salvou dos seres que me perseguiam.

- Venha, vamos entrar – disse a moça estendendo-lhe a mão.

Recostada em uma confortável poltrona, com um copo d água sobre a mesa de centro à sua frente, ela ainda estava confusa.

- Você veio aqui para nos encontrar, não se lembra? Para conhecer o chalé.

- Sim, eu me lembro bem. Mas fui perseguida por umas criaturas de olhos flamejantes e fui salva da morte pelo senhor, mas sua aparência está diferente, o senhor era mais velho...

- Como aquele senhor ali? – Disse apontando para um porta-retratos sobre uma prateleira na parede.

Ela se levantou, aproximando-se do objeto e tomou-o nas mãos.

- Sim. Esse foi o senhor que me salvou.

- Não admira que tenha confundido meu marido com ele, são pai e filho – interferiu a mulher que preparava um chá na cozinha.

- Esse é meu pai, mas ele já morreu faz alguns anos. Ele morava aqui.

Ela deixou o porta-retratos cair, espatifando o vidro da moldura.

- Não pode ser! Ele estava aqui! Ele me salvou.

- Provavelmente – disse a mulher oferecendo uma xícara para a convidada, que sorveu o líquido fumegando num só gole – mas ele não estava tentando salvá-la.

A mulher sentiu o corpo entorpecer.

- Ele estava apenas evitando que os espíritos errantes dos sacrificados a impedissem de chegar aqui – completou o homem.

- Agora chegou a sua vez de ser sacrificada em honra do inominável, garantindo a presença do velho entre nós, bem como a nossa sobrevida ilimitada nesse mundo.

- Em breve você se juntará a eles, e colocaremos o chalé a venda mais uma vez.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 11/02/2019
Código do texto: T6572628
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