MAR DE LAMA dtrl 32

“o pior dos monstros habita em seu coração”. GRS

“-Nosso Senhor pisará com seus pés rachados na cabeça do infiel. No rio de lama o descrente se afogará. O canhoto reclamará sua alma. Que todos ousam. O tempo há de chegar.”

Todo fim de tarde ouvia-se a mesma ladainha. Cidão da Tita era mais um dos muitos profetas do apocalipse a pregar no adro principal da matriz. O pároco local até tentava argumentar, porém sem êxito não podia simplesmente escorraçá-lo, o maluco se tornou um pedaço do folclore local, toda cidade tem seu doido como toda sanidade tem sua dose de maluquice e eis que ali se encontrava a prova da fragilidade da mente humana.

Tita era uma morena queimada de sol, bem desmazelada, rosto redondo como a lua, tinha os olhos apertadinhos sobre um sorriso quase banguela se não fosse os dois dentes que serviam apenas para doer à noite. Um louco completava o outro. O profeta pregava e a Tita relinchava, ninguém sabia o que era pior.

Mais de onde advinha o tal dom da vidência?

Diz o povo pelas vielas de paralelepípedos que ainda moço, era destemido e vaidoso, veio de Cariacica para trabalhar nas minas. Com ele não tinha tempo ruim, tornou-se rápido municiador de explosivos, bastava o técnico solicitar que lá estava ele com a provisão de dinamite.

Numa tarde que já ninguém sabe se foi real, a encosta deveria ceder, as cargas foram dispostas segundo estudos muito bem embasados. A detonação saiu perfeita, o barranco ruiu da forma prevista. O capixaba saiu para o rescaldo, foi ai que uma segunda avalanche aconteceu soterrando o infeliz.

Dado como morto, cavaram por dois dias até encontra-lo por obra divina muito bem vivo, porém com quase todos os ossos moídos, seu juízo para sempre fora perdido, deste então passou a perambular sem rumo pelas ruas propagando suas sandices. Com o tempo o belo loiro de olhos verdes deu lugar a um ser bisonho, coxo, aleijado, magro como bambu arqueava-se sobre uma improvisada muleta, a barba e o cabelo cresceram como ervas daninhas, sem poda, misturavam-se ocultando-lhe a tristeza, de roupas também não era afeito, uma calça puída lhe bastava. No lombo, o açoite do sol tornou sua pele curtida como couro de boi, nunca se abateu por doença, mesmo com toda miséria contra ele pesava apenas os tristes delírios.

Como a desgraça tende a se atrair, em suas andanças encontrou Tita, estranharam-se no começo, mas logo descobriram ser almas gêmeas, quem diria que aquilo ainda podia. Pois é, os dois tiveram uma filha, bastou a menina ganhar corpo para atrair a cobiça dos desocupados cachaceiros.

Com família formada, por bondade alheia foram alojados numa casinha arranjada pelos beatos locais, mantimentos também não faltavam graças a doações do povo cristão. Com simplicidade a vida se arrastava.

“- Quando as tormentas chegarem, o chão vai tremer. A terra vai se abrir e os viventes serão tragados pela imundice da morte, o rico se tornará pobre, no meio da lama o homem conhecerá seu fim. Eis que o tempo há de vir.”

Tudo aconteceu tão rápido, as pessoas foram surpreendidas nos seus afazeres comuns. Alguns avisados debandaram assustados, famílias foram separadas, animais foram perdidos, plantações alagadas, alguns a morte levou bem rápido outros não tiveram a mesma sorte.

Enquanto o pânico se alastrava, da sua janelinha azul, Tita ria descontrolada. Margeando seu barraco, uma serpente avermelhada descia rumo ao povoado. Num instante o rio se ergueu numa maré de quatro metros, as árvores eram arrastadas rolando pela montanha, a lama parecia sangue regurgitado por um antigo titã, seu cheiro azedo de ferrugem tornava o minério ainda mais repugnante, para Tita tudo tinha graça, ela sorria ao ver uma grande mão gananciosa envolvendo tudo num aperto maligno.

Cidão orava segundo suas próprias crenças, louvava seus deuses mentirosos, tinha cumprido sua parte do acordo, queria estar ao nos braços de seu algoz.

Num cantinho da cozinha como um cão humilhado a menina desvalida chorava, seria só mais uma indigente a ser esquecida.

A noite agora como cúmplice da tragédia vinha dificultar o trabalho do resgate, o som da lama se arrastando parecia o ronco das entranhas famintas do próprio Demônio que não saciaria enquanto todos não fossem digeridos.

A casinha foi atingida, a imundice invadia os quartos, em silêncio grandes frestas fora abertas, parte da cozinha ruiu, seu refugio foi violado, a escuridão ocultava o desespero.

Cidão não temia o mal, mantinha-se fiel a sua crença, Tita e a filha banhavam-se no sangue da terra, o teto ameaçava ceder, o casebre queria seguir a maré, juntar-se ao distante oceano. Ali já não era seguro, aventuraram-se ao relento, ora caminhavam, ora se arrastavam.

Naquela noite o sangue da terra veio lavar a alma dos homens. A mente já atordoada do profeta foi atingida por vozes lamuriantes que seguiam um cortejo macabro suplicando perdão, as visagens ludibriavam seu parco discernimento, levada pelo desespero da cria, Tita desejava encontrar uma trilha segura. Cidão encantava-se ao ver onde antes era a rua do mercado, uma gigantesca serpente se esgueirando por onde antes havia alegria, vez por outra submergia no vermelho do barro impulsionada pela cauda achatada em forma de nadadeira, segundos depois revelava seus olhos amarelos tendo em sua boca uma nova vítima a ser devorada.

Os olhos miúdos da mãe ardiam invadidos pela sujeira dos homens, o demente reconhecia ali o enviado do mestre. Finalmente os ímpios seriam julgados, nas faces distantes vislumbrava aqueles que zombaram de suas palavras.

Tita agarrada na filha se arrastava atrás do seu homem, mesmo sem juízo a vontade de viver guiava seus passos. Cidão seguia coxo amparado em sua muleta.

As ondas se formavam em volta dos três, quanto mais caminhavam mais perto da morte se encontravam. No fim as paredes foram fechando, longos braços tentaram afagar o profeta, aos poucos os indigentes foram engolidos.

Foi o fim dos malquistos, seus nomes jamais serão mencionados, quem sabe um mentiroso contador de história um dia reclame sua existência, quem sabe um beato vá sentir falta dos sermões nas tardes quentes, sem cruzes, sem lapides os malvistos serão esquecidos.

“O pior dos monstros é aquele que caminha do seu lado, pena que só se revela no momento fatal”.

Tema: Psicose

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 15/02/2019
Reeditado em 01/08/2019
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