Bola dividida

- Nunca confie numa puta – disse-lhe seu pai, antes de morrer no meio da praça da cidade, com a jugular cortada por uma Gilete, supostamente por não ter pago os honorários da vadia, quando ele tinha somente oito anos de idade.

***

Depois do almoço, preparado no fogão à lenha, improvisado no cume do cupim de barro, edificado próximo ao pé do Jequitibá que servira de esteio para o barraco, Zeca olhou a faca de cozinha sobre a mesa feita a partir das lascas de Palmeira Sete-Pernas e pensou consigo mesmo: “si ligue man, é agora ou nunca”. Ele pegou a faca, bem como a lima que estava com a ponta enfiada no oco de uma Embireira que servia de viga e começou a amolá-la sobre a coxa.

- Que isso macho? – Interrompeu-o Jorge.

- Vou preparar um palmito para a janta – respondeu-lhe Zeca de pronto sem deixar de fazer o que já havia começado.

- Oxe, oxe! Use o facão é milhô – insistiu o amigo.

- Quero trazer picadinho.

Os dois arrumaram as tralhas e pegaram os 800 metros de picada que dava até o leito do rio em que há mais de três meses vinham garimpando diamantes no meio da Floresta Amazônica.

Jorge era do interior de Sergipe e Zeca, embora tenha nascido em Camaçari, vivia na periferia de Salvador. Os dois se conheceram no corte de cana no interior de São Paulo e dali nasceu uma bela amizade, talvez a falta da figura paterna na vida do baiano tenha permitido a conexão entre ambos, pois Jorge tinha idade para ser seu pai. O fato é que desde então trabalhavam sempre juntos.

O emprego atual fora encontrado por Jorge que convenceu o patrão a contratar o amigo. O que foi difícil, pois para quem tinha vinte balsas que extraía diamante ilegal do fundo das águas do Rio Madeira, qualquer funcionário devia ser passado pelo mais fino filtro, afinal qualquer vacilo seria fatal.

Ocorre que os planos de Jorge era tão somente ter um amigo para ajudá-lo a contrabandear a pedra de diamante vermelho de 10 quilates que encontrara no fundo do rio e escondeu, secretamente, em algum buraco do cupim de barro que servia de fogão.

Jorge vestiu a roupa de mergulho e Zeca funcionou o motor para acionar o compressor que através de uma mangueira levava ar ao mergulhador que ficava a 10 metros de profundidade, extraindo materiais através de uma draga para a margem do rio. No final da tarde, quando Jorge deu três puxões na mangueira, anunciando que estava prestes a voltar a superfície, Zeca sacou a faca amolada da cintura e cortou a mangueira de ar, sentenciando o fim do amigo.

Dentro do rio, enquanto respirava água pela mangueira e não ar, como de costume, Jorge deveria relacionar o sinistro a qualquer intempérie da natureza e lamentaria profundamente que uma fortuna repousaria eternamente sob a base de um cupim de barro. Ao menos se avisara Zeca antes, este sim pudesse ter um melhor destino do que uma vida miserável de trabalhador itinerante. Mas, o medo da cobiça do amigo falou mais alto. Foram pensamentos que ocuparam sua cabeça, antes de puxar as últimas gotas de água que inundaram seus pulmões e deram cabo à sua vida.

Porém, o que sobrou de cuidados em relação ao caráter do amigo, faltou-lhe em relação a Rosa, a puta com quem transava na cidade. O pobre deu-se de apaixonar pela vadia que transava com todos os garimpeiros da região a troco de qualquer merreca, ou migalhas de pedras que pudesse trocar por roupas e joias que lhe refinasse a profissão. Foi bêbado, no meio de alguma madrugada perdida, que o infeliz contou sobre a pedra e o seu desejo de voltar para o sertão sergipano, construir um açude e viver nas terras em que nasceram e morreram seus pais e avós, juntamente com Rosa e os rebentos que proliferariam desta relação. A puta logo viu que o modesto garimpeiro além de não ter ambição era burro. Não sabia o verdadeiro valor de uma pedra tão rara.

Quando Zeca surgiu na região juntamente com Jorge, a vadia logo deu de trepar com os dois ao mesmo tempo. Situação que não seria estranha para uma mulher da vida, salvo o fato de que Jorge lhe pagava uma vultuosa quantia para que largasse a vida de rameira. Valendo-se dos seus conhecimentos sexuais, adquiridos com as incontáveis noites de sexo, com os mais variados tipos de homens – e também mulheres, pois só se relacionava com o sexo oposto por profissão e não por prazer – desde os treze anos de idade, a doce prostituta dos olhos de mel, cabelos amarelados e pele branca e macia tal qual o algodão, não custou um mês para deixar Zeca aos seus pés, pronto para cumprir os seus desígnios.

Depois de ceifar a vida do amigo, Zeca desligou o motor, saltou da balsa para a barranca do rio e rumou picada adentro. Com a faca cavou o pé da casa de cupim e lá estava a pedra envolta em um pedaço cortado de pano de prato. Beijou a pedra rubra e colocou-a no embornal. Olhou para o céu pela clareira onde construíram-se os barracos e pode ver que as primeiras estrelas começavam a brilhar sobre a selva amazônica. “Logo chegarão os outros”. Pensou.

Vestiu o casaco para proteger-se da rala garoa que começara a cair sobre a mata, bem como dos pernilongos que apareciam sempre em nuvens quando a tarde ia se esvaindo e os bichos noturnos abriam suas bocas em cantoria. Pegou a picada que dava acesso a seva de pacas na esperança de topar na estrada de terra e que dava acesso a cidade que ficava a mais ou menos cinco quilômetros dali.

Quando rompeu os cinco quilômetros, na mata escura, viu uma clareira que parecia ser o que era a estrada. Ao sair da última moita e pisar na estrada de terra batida, viu Rosa, sentada no capô do Chevette prata, no local combinado. O vento da noite batia em sua saia branca e rodada e os vagalumes iluminavam a vadia tentando com os braços conter sua saia para que o vento não revelasse suas coxas, cena que remetia o varão a lembrar-se do cinema, bem como do quanto ela era boa na cama. Definitivamente a vida de puta não lhe desgastou o corpo. Por tudo isso suspirou aliviado e fez ter a certeza de que tudo que fizera, realmente valera a pena.

Foi quando o vento estalou e passou cortante em seu peito, ele olhou para onde estava alocado o que era seu coração e viu que uma mancha vermelha emergira de sua camisa branca de botão. Ele voltou a olhar para frente e viu que atrás de Rosa, a vadia desgraçada, uma leve fumaça azul saia de um cano de revólver, emergindo da escuridão, com arma em punho, uma outra vadia que beijou a boca da puta amada.

Suas pernas bambearam e ele caiu de joelhos no solo. Antes, porém, que deitasse sobre a poça de lama na estrada, a outra vadia tomou-lhe o embornal e com o pé em seu peito o fez deitar sobre a estrada.

Ele não pode ver o carro sumir na garoa da penumbra da noite, pois o respingo de barro que subiu da poça que caíra, mesclado com a fumaça preta do carro velho, taparam seus olhos, mas pôde, no entanto, murmurar para si mesmo, enquanto dava o último suspiro: “nunca confie numa puta”.

bily anov
Enviado por bily anov em 18/02/2019
Reeditado em 18/02/2019
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