A FERA ALÉM DA ESTRADA

I

A estrada era longa, pelo menos se pensarmos apenas na função para a qual fora feita. Eram quase quinze quilômetros ligando o principal aeroporto da cidade até a área que dava suporte logístico e operacional ao mesmo. Quando vista do alto, a via lembrava uma longa cicatriz no tapete verde onde estava incrustada. De um lado, um emaranhado de luzes, asfalto, aço, antenas, torres de comunicação, um ir e vir de pássaros de metal e gente agarrada a carrinhos com malas para todos os lados. Dali, além de rotas para os céus do mundo, existia também a possibilidade de saídas fáceis para a região metropolitana, por terra. Em contrapartida, na outra ponta, apenas o cinza tétrico dos prédios antigos a servir de cenário para a árdua tarefa de por tudo em ordem.

Pela via industrial – era esse o nome não oficial da estrada – não era permitido o trânsito de veículos particulares ou coletivos, somente viaturas de serviço ou automóveis de funcionários, devidamente credenciados, podiam circular. Essa medida fazia com que o fluxo circulatório fosse relativamente escasso quando comparado com uma via pública comum. E, além disso, a conservação até que era razoável, mais uma vez comparada aos trechos esburacados que encontramos por aí. Em ambas as margens, uma só tonalidade predominava: o verde.

Nas áreas próximas ao aeroporto havia um extenso gramado, bem aparado e regado. Mas ao longo da trilha de asfalto era possível perceber toda sorte de vegetação selvagem, desde pequenos arbustos até árvores retorcidas que alcançavam facilmente dez ou doze metros de altura. O mato tomava quase tudo, ora de forma rasteira e espalhada, ora de modo espesso e alto, como braços erguidos para o céu. Não era raro encontrar de pé alguns vestígios de cercas que protegiam as laterais do caminho, pontos de um desamparado isolamento do terreno de administração federal. Nas extremidades das colunas de concreto, pontas de ferro se lançavam expostas com a finalidade de intimidar o pouso dos pássaros, que inevitavelmente os fariam de poleiros se não houvesse tal medida. As aves errantes se mostravam como ameaças à aviação, um só emplumado sugado por uma turbina poderia ter o efeito de uma bomba.

Existiam, também, ruínas entristecidas de prédios que num passado distante tiveram alguma utilidade no projeto original, bem como ruelas transversais que não levavam a lugar algum. Hoje tudo estava engolido pelo conjunto de matagal e arame farpado caído, testemunhas mudas a observar o ir e vir de quem cruzava a estrada...

No entanto, embora não houvesse nada em operação ao longo da estrada, no final dela, um pouco antes da cancela que determinava o fim da área restrita, duas bases federais se apresentavam uma defronte à outra. No alto de um elevado ficava um campo de treinamento da Polícia Federal, em cujo prédio se destacava uma alta torre com luz intermitente na extremidade. O ponto luminoso se alternava em verde, vermelho e amarelo, e eu nunca descobri para que servia. A outra unidade pertencia ao Exército e se localizava na parte mais baixa da margem oposta e eu sempre achei estranha essa questão, pois até onde se sabia, toda aquela região pertencia à outra força armada, a Aeronáutica.

De forma resumida, essas eram as particularidades da estrada que eu costumava cruzar todos os dias, sem perceber nela qualquer tipo de anormalidade ou estranheza. Até aquela ocasião...

II

Era um final de expediente estafante e arrastado, mas até então longe de ser incomum ou corriqueiro. Uma forte tormenta castigara todo o dia anterior e se estendera por boa parte da noite, o que havia complicado, e muito, o desempenhar das minhas funções. Porém, mesmo com os olhos ardendo e os músculos pedindo clemência, sinais dolorosos do turno dobrado no trabalho, não pude deixar de reduzir a marcha do carro ao perceber o cenário que irrompia de modo avassalador à minha esquerda. A madrugada expelia os últimos suspiros, ao passo que as primeiras luzes do dia derramavam uma tonalidade alaranjada no horizonte por sobre a irregularidade verdejante do matagal.

Engraçado como só percebi as notas iniciais do amanhecer porque cruzei uma janela, uma fresta, pela parede formada pelas árvores que margeavam a estrada. Estacionei ali, naquele espaço especial, e me deixei levar pela sucessão de imagens que se desenrolavam. Por alguns instantes, as preocupações do dia a dia me deixaram. A dor e o cansaço ficaram de lado. A chuva recém estiada deixava um aroma inebriante na terra batida, e, ao mesmo tempo, a brisa que balançava os galhos dos arbustos trazia um toque ameno, cálido, revigorante.

O sol já ameaçava nascer e foi justamente naquela mistura de luzes e sombras que percebi, ao longe, algo que destoava da singularidade do momento. No começo, achei que tivesse sido apenas uma impressão, porém, quando o fenômeno mudou de posição, tive plena convicção de que algo anormal acontecia...

Eram olhos! Olhos a me espreitar por entre a camuflagem da vegetação. E só os compreendi como tal por conta da luminosidade bizarra que exalavam, a qual contrastava e, simultaneamente, se unia à mistura cromática do ambiente. O estranho e, confesso, o que mais me assustou foi o súbito desaparecimento da visão que no segundo seguinte estava mais perto, para num novo piscar de olhos se aproximar ainda mais. Não foi preciso pensar muito para entender que os olhos, ou melhor, o dono dos olhos, caminhava apressado em minha direção...

A magia do momento se quebrou de maneira tão abrupta e inversa à forma como surgira. No entanto, a dor não voltou, mas o relaxamento fora brutalmente substituído por um súbito torpor que me dominou dos pés à cabeça. A urgência me fez girar a chave na ignição e pisar com vontade no acelerador. Como se adivinhasse meus atos, a coisa pareceu reagir, e o balançar desenfreado do capim alto denunciava que a furtividade não mais fazia parte dos seus planos.

Quando dobrei a primeira das várias curvas que antecediam a grande reta rumo à cancela da cabine de segurança, ouvi um enorme estrondo metálico, semelhante à explosão de um transformador, o que seria improvável, pois naquele ponto não havia qualquer fonte de energia elétrica, postes de iluminação ao longo da estrada poderiam confundir o pouso das aeronaves, tudo sempre esteve às escuras ali. No entanto, o estrondo se propagou, audível e marcante. Em seguida, percebi pelo espelho retrovisor a imagem que não desejava ver, o par de olhos crescendo em minha direção.

Acelerei como pude, exigindo o máximo possível do esquálido motor 1.0, mas a coisa se aproximava cada vez mais. As rodas fugiam do asfalto, raspavam o barro do acostamento, levantando mato e cascalho para todo lado. Por um instante, as esferas alaranjadas sumiram de vista, e com isso o alívio momentâneo afrouxou um pouco minhas mãos que ameaçavam espremer o volante. Mas, a sensação de segurança durou poucos segundos, sendo imediatamente substituída por um pânico avassalador quando o impacto sobre o teto do veículo fez com que eu perdesse o controle e derrapasse para fora da via.

Pancadas firmes no metal competiam com as batidas aceleradas em meu peito. O vidro traseiro foi estilhaçado no instante em que pude arrancar novamente com o carro. A coisa caiu, ou pelo menos assim pensei, e tive certeza quando, ao acionar a ré, um solavanco sacudiu o veículo por inteiro, mas não parei para conferir os danos que provavelmente foram causados ao meu agressor, pelo contrário, saí em disparada, só tomando coragem para olhar para trás quando entendi que a segurança já me abraçava.

Lentamente, com a luminosidade do dia se apresentando de modo mais intenso, pude controlar as rédeas de minhas emoções e procurar entender o que havia acontecido. Sempre fui um homem racional e centrado, consciente da realidade que nos cerca e do mundo em que vivemos. E, diante de tudo o que havia presenciado apenas uma resposta era capaz de preencher as lacunas interrogativas em minha mente. Eu sabia no fundo de minha alma o que era aquela coisa, só faltava me livrar dos preconceitos para entender que somos apenas uma parcela na criação divina e que não sabemos de tudo acerca da natureza, de seu equilíbrio e das peculiaridades que ela mantém.

Consegui domar as inquietações e subjugar as fantasias e crendices. Sorvi apenas as verdades, entendendo que aquilo era real e que o meu dever era acabar com aquela ameaça, pois, algo me dizia que ela viria atrás de mim de um jeito ou de outro. Portanto, seria bom que eu estivesse mais preparado quando isso ocorresse. Nunca fui um covarde. Sempre enfrentei os desafios que se colocaram em meu caminho. Minha função, minha profissão dizia que eu deveria proteger o sítio aeroportuário e era isso o que iria fazer. Assim como aquela criatura me atacara, era certo que tentaria fazer novas vítimas.

III

A noite estava alta. A lua brilhava forte num céu salpicado de estrelas, um círculo pleno e amarelo olhava para baixo como se exigisse sua cota de sangue. Dentro do carro, eu esperava na via industrial com os faróis acesos. A luminosidade bruxuleante desvendava pouca coisa da escuridão da estrada. Não era um ambiente sombrio de toda forma, o tom que abraçava aquela cena era muito mais melancólico do que perturbador. Talvez isso ocorresse pelo fato de tudo ser muito familiar para mim e saber que algo tão ruim inundava aquele pedaço de chão me remetia a uma imensa tristeza. De fato não era medo o que me dominava, mas uma amargura profunda.

De súbito um som aterrador rasgou o ar produzindo um calafrio em minha alma. Somente um demônio poderia uivar daquela maneira. Graças aos céus não era um delírio o que me envolvia. Por outro lado, a realidade era cruel e hedionda, e não havia como contorná-la.

Engatei a primeira marcha e sai lentamente deixando que os olhos do veículo me mostrassem de forma pausada o que viria a minha frente. Ouvi um novo grito. Mas desta vez não havia dúvida alguma de que o som era humano. Um novo grito antecedeu a imagem por entre as trevas, era um homem, sem a parte de cima do uniforme, mas ainda vestindo uma calça do exército brasileiro. Ele estava descalço e corria na minha direção. Parei o carro para não atropelá-lo, mas a minha ação não impediu que se ferisse, pois o que veio a seguir foi muito, muito pior do que um eventual impacto com a lataria do veículo.

Como num eclipse, a presença da lua foi nublada por uma imensa sombra. A criatura saltou sobre o soldado e o que viria a seguir poderia ser traduzido numa só palavra: dor. Dor para mim por ser testemunha de uma cena tão nociva aos olhos e à compreensão, e, principalmente, para aquele desconhecido que estava sendo assassinado de um jeito tão brutal e sem qualquer chance de defesa.

Exposto pela luminosidade dos faróis, pude desvendar todos os contornos de tão vil criatura, seria melhor que tivessem permanecido na escuridão. As lâminas de sua mão direita descreveram um arco no ar para, em seguida, alcançarem o ventre exposto do infeliz. O ato estraçalhou carne e músculos, fazendo com que suas entranhas fossem lançadas de encontro ao para-brisa do automóvel.

O homem foi ao chão. Estava morto. Um frenesi demoníaco tomou conta da besta. Ela se refestelava no abdome aberto do militar, sorvendo com sofreguidão os nutrientes fornecidos pela vítima.

Naquele momento, percebi que se tivesse de tomar uma ação não haveria ocasião mais oportuna. Saí do carro com o revólver em punho e disposto a acabar com o demônio. Mirei na sua cabeça e enverguei o gatilho no exato instante em que ele se virou na minha direção.

Ele urrou em franca ameaça, e o projétil o atingiu em cheio no vão escancarado de sua garganta. Mais uma vez ele gritou, mas dessa vez de dor, algo que deveria ser novidade em sua vida. Acreditei na minha vantagem e parti ao seu encontro. Disparei mais vezes. O chumbo se mostrava tão eficiente quanto à fama da prata. A fera cambaleava. Um líquido escuro e viscoso vertia dos pontos violentamente abertos em sua couraça. No entanto, ela não parava. Continuei a disparar até ouvir o estalido seco do tambor vazio.

Desarmado, corri na esperança de não ser alcançado e, melhor ainda, de quem sabe ouvir o estrondo da criatura indo de encontro ao solo. Entretanto, nenhuma das minhas expectativas tomou corpo, pois senti um ardor dominar uma das pernas enquanto eu era derrubado. A dor me fez desejar a morte, mas sabia que se ela viesse não seria de modo tão rápido. A fera apertava meu tornozelo com os dentes, eu sentia que seria questão de tempo até que o osso se partisse. Porém, o enlace começou a afrouxar e tive coragem para olhar para trás. Parecia que ele começava a desfalecer como se suas forças se esvaíssem lentamente. Eu não estava em condições melhores. Minha visão ameaçava nublar quando vi luzes intermitentes ao longe. Reuni as últimas forças na tentativa de sinalizar para os veículos que se aproximavam.

Ouvi disparos de metralhadora. Quis acreditar que a criatura estava sendo eliminada. Eu estava tremendo de frio, como se uma febre repentina e abrupta se apoderasse de mim. Percebi algumas pessoas, eram militares, me colocando numa maca.

Uma máscara despejava oxigênio em meus pulmões, enquanto sentia o sopro da vida me tocar. O alento do momento relaxou minhas vontades e me entreguei a um irresistível sono. Finalmente o demônio estava morto e eu estava a salvo. A paz me entorpeceu.

IV

Quando acordei estava renovado, mas demorei um instante a entender a situação. Eu estava numa sala, ou melhor, numa cela, pois simples salas não ostentavam barras, sobretudo barras tão espessas. Uma pequena janela também protegida por tiras de aço oferecia uma visão para o céu. Outras celas, cada qual com seu respectivo ocupante, se apresentavam ao longo de um imenso corredor. Após alguns minutos já não era preciso muita perspicácia para entender todo o contexto, mas mesmo assim uma frase proferida num diálogo entre dois militares de alta patente esclarecia qualquer eventual dúvida:

“A cobaia Y25 foi abatida durante o exercício de caçada. Mas, felizmente, o maldito que interferiu no processo vai tomar o seu lugar”.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 18/02/2019
Reeditado em 19/02/2019
Código do texto: T6578481
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