MESTRE DA LUA

Mestre da Lua

No auge de seus 85 anos, o velho Inácio jamais imaginou um dia ter que passar pelo que está passando nessa reta final de sua vida. Cansado, doente, morando em situação desumana, o ex taxista vive um dia após o outro sem ao menos uma ponta de esperança no amanhã. Pobre Inácio. Logo ele que passou parte de sua vida entre farra com mulheres e longas noites de bebedeiras. Hoje, tudo o que restou foram dores e arrependimentos. Se pudesse voltar no passado ele faria tudo diferente. Claro que faria.

Nem a dor que sente o tempo todo e nem a depressão são maiores que o remorso que lhe acompanha desde a sua mocidade. Tal sentimento é devastado, implacável, ele não dá trégua. Por isso Inácio não reclama, ele sabe que o castigo é merecido, ele causou tudo isso, ninguém é mais culpado do que ele. Sua esposa, Joana morreu de desgosto profundo. Ela não suportou o sofrimento e a desgraça que sua família foi jogada. Joana, no dia de sua morte não pode se despedir de quem ela mais amava nesse mundo. Ela não pode abraçar e nem beijar o rosto de seu filho Davi, seu único filho. Joana se despediu desse mundo odiando seu marido, desejando o inferno para ele.

Essas cicatrizes ainda estão vivas e Inácio faz delas suas companheiras. Ele sabe que o fogo infernal o aguarda, ele sabe. 85 anos vivendo num mundo de prisão, angústia e arrependimentos.

*

Inácio volta da caça no final do dia com três coelhos abatidos. Os animais foram amarrados pelas orelhas e pendurados no ombro. No outro ombro a velha espingarda. A casa fica no meio do nada, isolada dentro da floresta. Antes de entrar ele confere se não há nada de errado ao redor do casebre. Tudo em ordem, exatamente como ele deixou a quatro horas atrás.

Depois de tomar banho, Inácio se senta na Varandinha para fumar seu cachimbo e tocar seu violão desafinado. Ele sempre gostou de música. As antigas são suas favoritas. As vezes, para esquecer um pouco a vida amarga que leva, o velho passa horas e horas cantarolando canções de Lupicínio Rodrigues ou de Assis Valente.

As primeiras estrelas surgem. Hora de levar a refeição de seu filho. Para se abaixar e pegar os coelhos debaixo da pia foi preciso um esforço enorme. Inácio tem o rosto coberto por rugas e marcas de expressão. Uma barba branca mal feita e dentes amarelados, cabelos ralos compridos. Ele caminha com dificuldade até o quarto de Davi que fica no final do corredor.

Ofegante, Inácio enterra a mão livre no bolso da calça para pegar a chave da gaiola. O quarto do filho foi todo modificado, no lugar da porta uma grade tipo de penitenciária. As janelas foram substituídas por grades com suas barras grossas. Inácio consegue finalmente abrir a cela e Davi se encontra encolhido no canto olhando para o pai segurando os coelhos.

- Por que não veio me ver de manhã?

- Hoje o jantar será especial. – ergue as caças.

- Por que não veio me ver de manhã? – Vocifera.

- Olha o seu tom de voz garoto. – coloca os coelhos em cima da mesa. – eu não pude vir porque me ocupei e isso durou toda manhã. – anda até o outro canto da cela e pega as correntes. – vamos, coloque isso, já.

- Quando isso vai acabar? – se levanta.

- Isso não tem fim, Davi, e nós já conversamos sobre isso, agora coloque as correntes.

- Droga de vida. – dá duas voltas com a corrente em volta do pescoço. – não vejo necessidade dessa coleira, eu já estou preso nessa jaula.

- Se você se visse, falaria que tudo isso aqui ainda é muito pouco.

Inácio pega o cadeado e o tranca. Olha para o filho e o abraça.

- Eu te amo, meu filho, nunca se esqueça disso.

Davi é deixado dentro da jaula acorrentado pelo pescoço. Ele sabe do sofrimento do pai, sabe que nessa história quem mais padece é ele. Inácio vai para o quarto se ajoelhar e pedir aos céus que o que estar por vir não cause tanta dor em seu filho. Lá fora a lua cheia brota entre as nuvens. Inácio intensifica suas preces quando o primeiro grito de Davi é ouvido.

O jovem segue gritando até ficar rouco. Inácio chora e enterra a cabeça entre os joelhos assim que seu filho passa a urrar.

- Senhor, misericórdia.

A lua cheia aparece por completa no céu escuro. O idoso transpira e tranca os dentes quando os ruídos de seu filho passam a ser rosnados e em seguida uivos e mais uivos.

- Tudo acabado. – se levanta.

O barulho vindo do quarto de Davi é ensurdecedor. O tempo todo ele tenta em vão se livrar das correntes e grades. Para que o seu sofrimento não o consuma de vez, Inácio evita vê-lo transformado, isso seria um golpe forte demais para um coração já baleado.

O velho deixa o quarto quando já não há mais barulho, na certa Davi encontrou os três coelhos e os está devorando. As lembranças sempre vem de forma aguda e quase sempre o deixa prostrado. Inácio sabe que errou e devido a esse erro, pessoas inocentes como sua esposa morreram. Aonde ele estava com a cabeça quando aceitou aquele pacto? Por que não disse não? Seu único filho agora carrega essa maldição sozinho, sem ninguém para dividir o calvário. Grande homem você é, Inácio Rocha.

*

Depois de três horas de terror e desespero a lua finalmente se escondeu e Inácio pode voltar ao quarto do filho que se encontra caído transpirando bastante. Antes de abrir a cela ele contempla seu menino nu e imagina como ele seria se fosse um garoto normal. Ele cresceu, já não é aquele pirralho chorão de antes. Ficou bonito, com certeza as garotas estariam atrás dele. Pena, infelizmente ele não poderá desfrutar das coisas boas da vida como namorar, casar, fazer amor. Não, isso Davi jamais experimentará.

- Davi, acorde filho, já passou, como se sente?

- Oi, pai, me sinto tonto como sempre.

- Tome. – joga um pano. – se limpe, vejo que não sobrou nada dos coelhos.

Davi se coloca de pé.

- O senhor acha que eu já posso sair daqui, sei lá, ficar um pouco lá fora?

Mais um corte no coração. Inácio não confia em Davi solto por ai. A qualquer momento ele pode se transformar e causar uma carnificina generalizada.

- Filho, veja bem, estamos no período de lua cheia, não podemos dar sorte pro azar.

- Queria tanto ser um cara normal, poder sair por ai, conhecer pessoas.

Claro que poderia, meu filho, se não fosse por minha loucura, assim pensa Inácio. Por causa de seu fanatismo seu filho padece de uma maldição. Davi está condenado a passar seus dias trancafiado num quarto, lua cheia após lua cheia se entupindo de bichos do mato. Aos 19 anos tudo que um jovem quer é curtição com os amigos.

- Por enquanto essa ideia está fora de cogitação. – retira a corrente do pescoço do garoto. – você ainda não entendeu que se você vi se transformar pessoas serão devoradas, essa cidade vai se tornar um mar de sangue e restos mortais.

Davi deixa uma lágrima escapar. Inácio a recolhe antes de sua queda.

- Eu te amo meu filho, farei de tudo para lhe proteger. – eles se abraçam.

*

O dia passou. Será mais uma noite onde o velho será obrigado a ouvir gritos de sofrimento de seu filho. Ele entra na cela com duas galinhas já abatidas. Davi olha para os galináceos e faz cara de vômito.

- Nem eu acredito que eu como isso.

- Você não. – pega as correntes.

Inácio de repente começa a se sentir mal. Por várias vezes ele esfrega o peito antes de cair.

- Pai, o senhor está bem? – o segura.

- Estou, estou enfartando.

- Como assim, pai?

Inácio revira os olhos e morrer, ali, nos braços do filho. Davi não sabe o que fazer. Desesperado ele chora abraçado ao velho. Lá fora a lua começa a sair de trás das nuvens. Em pânico o jovem pensa em se prender nas correntes, porém já não há mais tempo. A dor e a queimação o assolam e ele cai urrando e se debatendo. Poucos minutos depois o jovem Davi Rocha dá lugar a uma criatura infernal coberta por pêlos e focinho. Inácio é devorado e não sobra quase nada do pobre velho. Nem mesmo as galinhas ficaram de fora. Sangue, restos mortais, a casa se tornou um mar de sangue como Inácio havia falado. O pior aconteceu. O animal ganhou a porta de saída. Lá fora ao olhar para a lua cheia brilhante, como se estivesse comemorando a liberdade o bicho uiva antes de sair rua afora. Fim!

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 21/02/2019
Código do texto: T6580174
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