Lembranças de Farol

Mariana evitava passar perto ao antigo farol. Simplesmente porque lhe dava arrepios. Quando criança, quando o tempo passava com estoica lentidão, ela se lembrava, ainda que vagamente de que brincava no farol. Mas estas lembranças eram tão vagas agora, que ela mal se lembrava.

E havia o seu Manoel.

Este velho caolho e sem alguns dentes na parte da frente vagava pelas areias da praia, sempre próximo ao farol. Dizia-se o guardião do farol. Desde que Mariana se considerava gente que seu Manoel era velho. Ele era tão velho quanto o próprio farol. Não dava para pensar no farol sem pensar em seu Manoel. E todas as vezes que Mariana voltava para casa, muitas das vezes depois do sol se pôr, ela passava pelo velho guardião do farol.

– Boa noite, seu Manoel.

– Boa noite, pequena – dizia ele tirando o chapéu de palha que sempre usava, quando Mariana passava. Ele parecia ser um bastante religioso também. Quase sempre estava usando alguma camisa relacionada a algum santo ou comunidade pastoral. Mas em suas mãos podia-se se ver; em uma, um terço que ele mal parecia saber rezar, e noutra uma “meiota” de cachaça (quase sempre pela metade). – Vá com Deus e Nossa Senhora. Bom descanso.

– Amém.

Então Mariana caminhava para casa, mas seu Manoel continuava a vagar pelas areias desertas e vazias da praia. Não importava se estava chovendo, trovejando ou caindo granizo. Seu Manoel nunca abandonava o farol. Era sua vida, sua missão, sua sina.

– Nunca tire os olhos do farol – ele dizia quando ela se afastava. Era seu mantra. Ele vivia dizendo isso. Tal era sua ligação para com aquele monumento de tijolos e barro. Um gigante adormecido. Porque o farol não funcionava mais. Fazia muitos anos que ele havia interditado. – Lembre-se sempre disso.

Mas só de olhar para o farol, Mariana estremecia.

Ela não tinha tempo para nada. Mariana estava sempre correndo para todos os lados. Fosse no dia-a-dia, sozinha, estava sempre com muita pressa. Fosse no quiosque, que era seu, onde trabalhava. Contava com dois empregados. Mas não dava para dar conta de tanta demanda. Os clientes brotavam como formigas de uma hora para outra, logo quando ela abria o estabelecimento. O dia passava tão rápido que Mariana não era capaz de notar. Chegava no final do expediente totalmente exaurida, mas pelo menos feliz. Pagava seus empregados e voltava para casa.

Mas ao passar pelo farol a noite, desviava seu olhar.

E o seu Manoel estava lá para dize-la ao contrário.

Keila, a empregada gorda vivia dizendo para Mariana sair, curtir uma balada ou coisa parecida. Elas eram amigas a muitos anos. Praticamente desde quando Mariana assumiu o quiosque na beira daquela praia.

– Ah, amiga – disse Keila uma vez – se eu fosse tão linda como você, eu não perderia nenhuma balada. Beijaria na boca todas as noites. Uma boca diferente para cada noite.

– Mas não exatamente isso que você faz?

– Na verdade sim.

Mas Mariana nunca tinha tempo. Dizia para si mesmo que não podia se relacionar com ninguém. Tinha um compromisso com seu quiosque. Ela precisava tocar para frente o negócio que havia sido deixado por sua mãe, a saudosa Dona Maria, uma mulher forte, tão vivaz que bateu as botas de uma hora para outra. Um dia ela estava tão viva que parecia que iria viver para sempre. Noutro dia, estava morta. Quem poderia explicar.

Patrick apareceu por aquelas bandas numa tarde dessas qualquer. Chegava sempre quando Mariana estava para fechar e quando já havia liberado seus empregados. Era um cara misterioso. Sempre de óculos e nunca conversava com ninguém. Bebia suas cervejas num canto solitário. Não gracejava mulher alguma. Não proseava com cara nenhum. Pagava suas contas e ia embora. Era de poucas palavras. Mas estava sempre fitando o farol. Várias vezes Mariana pegava o homem circunspecto em profunda contemplação do gigante adormecido.

– Por que tanto olha para ele – disse Mariana uma vez intrigada.

– Não sei. Sempre que venho aqui, este farol me chama atenção. E não consigo tirar os olhos dele. É como se ele me chamasse. Às vezes eu sonho com ele. Às vezes, ao longo do dia me percebo pensando naquele farol. Não sei porque.

– Alguém me disse uma vez para eu nunca tirar os olhos daquele farol – disse Mariana. – Mas eu não suporto olha-lo por muito tempo. Ele me dá arrepios na verdade.

Nesta hora, Patrick tirou os óculos. Mariana não se lembrava de ter visto o homem sem aqueles óculos alguma vez. Era um Ray Ban que lhe caia bem naquele rosto de feições quadradas. Os olhos de Patrick eram verdes, duma cor tão profunda e feroz quanto o verde do mar em dias revoltos. Estranhamente olhar para aqueles olhos deu a Mariana uma sensação de tranquilidade. A mesma tranquilidade que sentimos logo após o passar de uma tormenta poderosa.

Ele estava fitando o farol e por um momento pareceu esquecer a morena ao seu lado.

– Talvez quem disse isso tenha razão – disse por fim colocando os óculos novamente. – Acho, que de alguma forma este farol está ligado tanto a você quanto a mim.

– Porque está me dizendo isso?

– Porque já sonhei com você. Nos meus sonhos vejo você naquele farol olhando o horizonte do mar à noite. Você está sempre com o olhar triste, cheio de lágrimas como se esperasse por alguém que nunca mais voltará.

– Nossa...

Patrick tirou uma nota do bolso para pagar sua conta. Levantou-se, mas antes disse:

– Não temas. Eu digo coisas sem sentido as vezes. É um defeito que tenho.

Eles conversaram por bastante tempo nesse dia. E quando Mariana fechou o quiosque, ele ainda estava lá e ofereceu sua companhia.

– Não precisa.

– Mas eu insisto.

Passou a ser um hábito. Todos os dias Patrick esperava por Mariana e a acompanhava até a porta de sua casa. Quando eles passavam por seu Manoel ele sempre se dirigia a moça.

– Não tire os olhos do farol.

– Nunca.

– Vá com Deus e Nossa Senhora.

Ao que ela respondia:

– Amém.

Patrick era apenas sua companhia. Um amigo divertido. E por mais que Keila pegasse no seu pé dizendo que eles estavam namorando, Mariana batia três vezes na madeira.

– Nem tenho tempo.

– Mas ele é gato?

De certo que Keila não conhecia o sujeito.

– Bonito sim. Tenho que admitir.

Então ele partiu. E por muito tempo andou sumido. Mariana já estava sentindo sua falta, quando ele chegou à tardezinha, quando ela estava quase fechando, como todas as outras vezes. Pediu uma cerveja e eles conversaram bastante, mesmo depois dela ter fechado o estabelecimento e liberado os empregados.

Quando o tempo mudou, Mariana levantou-se para ir embora.

– Acompanho você – disse Patrick.

– Não se preocupa. Deve ser apenas uma chuva passageira.

– Mesmo assim, andar sozinha e a noite à beira da praia, não é muito seguro, não é mesmo.

– Tudo bem então. Mas não moro assim tão perto.

– Não tem problema.

Eles caminharam lado a lado pelas areias da praia. Tiraram as sandálias e sentiram o contato da areia úmida e gelada coçando a pele. O mar estava agitado. Maré alta. As ondas estavam tão fortes, que avançavam quase até a orla da praia. Caminhar pela praia foi difícil e em alguns momentos seus pés ficaram molhadas. Mas eles não pareciam se importar. Conversavam sobre banalidades e riram bastante.

Naquela noite Mariana não avistou seu Manoel. O que era estranho, pois ele sempre estava ali para cumprimentá-la. A falta da presença de seu Manoel causou calafrios em Mariana.

– Talvez ele tenha se abrigado da chuva – disse Patrick. E de fato a chuva havia chegado e os pingos começavam a ficar mais grossos a cada segundo.

– Ele nunca abandonaria este farol. Para nada.

Ao terminar de dizer as palavras, a chuva caiu sobre eles torrencialmente. Parecia que São Pedro tinha aberto as comportas do céu. Chovia tanto que eles mal podiam ver a si mesmos. Avistaram o farol, porém.

E ele estava aceso.

– Como?

– Não sei. Mas é para lá que devemos ir – disse Patrick pegando na mão de Mariana e seguindo para o farol.

A porta se abriu. Eles entraram se subiram até o andar de cima onde ficava o aparelho ótico da torre. Encontraram seu Manoel. Ele veio até Mariana com uma caixinha de madeira nas mãos. O velho estava mais enrugado e corcunda do que sempre. E todo encharcado.

– Olha o que eu achei.

– O que é isso? – Indagou ela ao pegar a caixinha.

– Acho que pertence a você. Tem o seu nome.

E de fato havia.

Mariana se lembrava daquela caixinha. Lógico. Pois foi dela durante muitos anos de sua infância. Mas agora ela lembrava que havia deixado dentro daquele farol naquele dia fatídico.

– Agora você se lembra?

– Acho que eu não gostaria de lembrar. Eu queria que sempre estas lembranças estivessem enterradas. Mas como você a encontrou?

O velho limitou-se apenas a responder:

– Apenas abra.

Ela abriu e havia uma folha de papel carcomida. Nos letreiros dizia-se “P & M Forever”.

Mariana caiu de joelhos em prantos.

Então as lembranças vieram fortes como as ondas geladas do mar. O acidente no farol. O enterro. As lágrimas.

– Como isso é possível.

– Não sei – disse seu Manoel.

– Mas você viu ele andando ao meu lado muitas vezes.

O velho não respondeu.

A chuva cantava cada vez mais baixo nos telhados do farol.

– Não viu? – Ela insistiu.

Silêncio.

A chuva havia passado.

Mariana correu até o beiral da torre e olhou para o horizonte negro do mar e chorou. Uma lua cheia e prata surgia iluminando tudo.

Conegunndes
Enviado por Conegunndes em 10/03/2019
Código do texto: T6594478
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