OS VERSOS SATÂNICOS DO VELHO NAVARRO - DTRL34
Eu conto, se é o que os senhores pedem.
Conto mas aviso, o que vi de fato foi apenas o desfecho pavoroso
de uma história que se desenrolou antes;
vou apenas colocar moldura na cena final desse ato macabro
que só não é incompleto porque encontrei os detalhes sórdidos
no diário do velho Navarro.
Recrio a substância, do resto o caldo, porque cheguei tarde ao átrio,
ao patíbulo tétrico onde o fim trágico
surgiu aos meus olhos entre raios de feroz tempestade.
*
Naquela noite escura, eu procurava meu gato preto Ahab,
eu o seguira até onde morava Navarro,
encontrei-o com espanto frente a casa do velho
e entrei guiado pelos espasmos macabros do silêncio opaco.
Mais tarde li nos rascunhos que encontrei sobre esta mesa
palavras soltas que pareciam receitas,
sonetos convulsivos sem métrica, era o diário do velho moribundo.
Lendo compreendi o que tinha acontecido naquele antro.
Por isso onde não há luz no meu relato insisto
para o vosso entendimento imaginem o que não invento.
*
Navarro era um homem solitário,
um velho sábio cansado de estar no mundo,
sentia-se ímpar, alheado, apátrida e tinha alinhado
a seu desejo mórbido por companhia
o destino certo de morrer em breve.
Desatinado e atingido pela febre da solidão,
o alquimista decidiu costurar restos humanos
e juntar dos mortos pedaços apodrecidos mas ainda intactos
que foram depositados em covas rasas do antigo cemitério.
*
O velho Navarro resolveu trazer à vida um ser que fosse
a junção de muitas pessoas
mas apenas trouxe o pior de cada um nos corpos que encontrara,
A pior parte, o desprezado, o quanto deles era na carne
sinal da mentira representada em vida.
Eram quaisquer corpos putrefatos,
soterrados no abandono da morte,
aterrados na triste sina de terem sido abandonados
primeiro pela família e depois por Deus.
Teria sido esse abandono o motivo da escolha dos corpos,
era gente que amargurara lentamente em vida
e agora nas tumbas silenciosas e frias,
nalgum mausoléu sombrio,
sofriam a espera eterna da morte infinita.
Essa me pareceu ter sido a percepção que Navarro tivera
da própria vida.
Foi essa percepção que mal traduzi nas palavras do diário
onde empreendi minha busca frenética
dedicado a perscrutar e entender.
Conclui minha leitura tremendo de medo
em meio ao sangue que os senhores podem ver ainda fresco.
*
Na gana de sobrepor morte e morte para criar vida,
Navarro somou desprezo e abando e criou um monstro.
Navarro emendou, erguendo num só corpo rígido,
o hibrido de muitos corpos.
Navarro cortou, amputou, seccionou e por fim juntou
cabeça, tronco, braços, seios, mãos, pernas,
uma vulva inerme e um pênis avantajado
provavelmente de um homem orgulhoso do motivo em vida
de estar garantido na hegemonia patriarcal
apesar de nada ter tido
ou sido
além disso o que dos demais o distinguisse.
Navarro cansado sonhava mimese aparelhada,
comporia um Tirésias moderno.
Resoluto, o velho buscou auxílio na alquimia dos magos ancestrais
desconhecida de qualquer público.
Depois animado fechou os livros proibidos já muito lidos
e tomou notas para compor versos convulsivos,
esses versos satânicos que os senhores tem em mãos agora,
rascunhos respingados de sangue, de excremento, de sêmen,
de palavras viscerais que em minha narrativa ganham ritmo enquanto perdem o brilho.
*
Finalmente Navarro viu-se cara a cara com a forma
definitiva do seu autômato;
a criatura hedionda tinha na feição indefinida
a estampa recortada dos séculos,
tinha no corpo costuradas épocas
como se cada cílio de tamanho diferente fosse
o registro do tempo macerado.
A mandíbula proeminente era desenho hediondo,
duas metades distintas sobrepostas na arcada
formavam um detalhe duplamente horripilante
já que a superior feminina com dentes sem máculas
mal se encaixava na inferior extraída de um desdentado.
As duas pernas infantis davam à criatura porte ridículo,
ligadas à pélvis dividiam o corpo ao meio
onde os genitais se completavam formando um duplo
que não era nem poderia ser.
Os membros sem paz abandonados na perfeita solidão
do esquecimento pútrido não atendiam a ordem do velho
que para ele gritava quando pela janela avistei
a cena mórbida da ressurreição: _ Fala!
*
Depois de uma eternidade,
num gesto de demorada agonia jamais conhecida,
a coisa homem-mulher criança-adulto preto-branco
abriu um olho negro e profundo tão escuro quanto essa noite
enquanto piscava o outro que era de um verde claro,
raso, opaco e triste: _ Fala, maldito!
Quando aqui cheguei a criatura estava pronta!
Poço de almas perdidas a unirem-se como vinha a brotar em solo estéril.
O interior do aposento em que a cena se desenrolava
era uma catedral cheia de traças inundada de sombras pegajosas
vigiadas por uma inútil majestade invisível intocada.
A Criatura estava pronta!
Fiapos de carne podre amarrada por tendões fios de aço.
A Criatura estava pronta!
Argamassa de mãos postas, gélidas, tão menores quanto corruptíveis
sorvendo para dentro das palmas unidas prece e dor.
A Criatura estava pronta!
Expressava o silêncio absoluto.
A monstruosa soma de testículos e vulva estava viva!
A aberração estava pronta!
Deu-se à luz do mundo natural não como sopro
mas como o olor sempre presente nas salas de incenso
e altares de adoração para deuses mortos.
A pele madeira seca cor de sangue
tinha o tom de terra molhada de vinho
em torno do lagar pisado, a aberração estava pronta!
A atmosfera densa de cheiro inebriante
era o bafo de demônios ocultos.
Obra de magia.
Navarro deu forma e postura ereta à criatura
costurando o que eu via
sentado ao lado dele de terno de linho branco
e sapatos pretos afiados.
*
Como se Navarro também pudesse recriar a alma,
envolto numa alvura de máscara sem expressão,
ria pinçando o lábio direito e chorava repuxando um olho.
A cena era o impasse final de uma gestação errática,
era a derradeira e obscura bifurcação da vida.
O motor da loucura impelido ao pranto agradecido
num lamento ao contrário.
O velho Navarro gritava: _ Fala!
*
No entanto, do sonambulo apenas se via o semblante enigma
de intocável e perfeita ferida.
Porém eu soube, soube sem saber como, o medonho era nossa figura.
Nós que somos malcriados na amargura do vinho perdido.
Nós que somos a reservada mistura do odor do sexo não lavado
e o coito severo sem castigo,
a ausência de um beijo, a memória preservada do que já é resto
onde pensávamos ser o inteiro, nós o perfeito sonhado.
*
Mas o que lhes digo, nem sei mais o que lhes conto.
Tudo isso invento dos versos que tinha lido no diário do lunático?
Ao ler a experiência descrita fui agraciado ou amaldiçoado?
Sei que também eu, ébrio de ler o manuscrito,
sorvi da tina o éter levedo
e dei por mim em nuvens abrasivas de fervor lascivo.
Consumi e fui consumido.
Os versos diabólicos eram a criatura, o criador e o vazio.
Fui penetrado pelas palavras de Navarro até a alma.
Durante a leitura, pairando sobre o desaterro no chão,
quem me visse levitando adivinharia a mão do bruxo esvaziado,
Mesmo assim eu lhes juro,
fui purificado quando ouvi o estrondoso grito: _ Fala!
*
Mas o embrião adulto mescla de Tirésias e Sísifo,
o arremedo da força, um triz, a ameaça da vontade,
ergueu-se com a coragem de quem avança sobre escombros
para sustentar a carne espezinhada: _ Fala agora!
Oh palavras, que estranha impotência tens!
Sois vivas e mortas, brandas e insuficientes,
nada importam, palavras inúteis, sois inúteis!
_ Fala!
*
Caros senhores inquisidores, eu repito, emolduro a cena incompleta
e pincelo o que no desenho disperso do relato
parece corpo vestido de anseio mas é carne crua fria despida.
Caros senhores inquisidores, eu apenas sustento o lastro do rastilho.
Navarro ergueu com a coragem falida de quem abismos o salto ameaça
mas é engolido pelo arremedo da vontade: _ Fala!
Gritava numa voz cansada o velho sorvido
e seco já pertencido à coisa criada: _ Fala maldito!
*
Nesse momento o criador percebeu que faltando
a língua que saltasse da boca úbere aberta em vala
expressasse numa palavra que fosse
o mistério do além de onde vinha ressuscitada
e que nos espera a todos depois da morte.
Então Navarro fez seu ultimo gesto desesperado,
mais por constrangimento que por ânsia do sacrifício
tomou de uma faca o corte cego que a lâmina tinha
e fez da própria língua o músculo
que agora enfiava goela abaixo do monstro
que à seus pés chorava em secreto delírio.
*
Para figurar nesses autos, tanto nos versos como na vida,
o híbrido medonho,
o autômato sonâmbulo que da letra ergueu-se sêmen não ejaculado,
grito parturiente abafado, pedido de socorro negado,
amparou o velho que sangrava
e esfregando em seus lábios descarnados
o vão aberto que mais parecida farpa, uma vírgula mal traçada,
no destempero da agonia ao ver-se de pé vivo
mais uma vez para o resto da nova existência sozinho,
a criatura medonha apanhou da mesma faca o corte
e o pulso esquerdo abriu gemendo enquanto pronunciava
a única palavra jamais soletrada:
_ (nota musical)
*
Foi assim, senhores inquisidores,
que perseguindo sombras na escuridão, encontrei os dois abraçados.
A criatura tremia lambendo o jorro vermelho-betume
amparando em seus braços retalhados Navarro em agonia.
Na direção da porta que eu abria
os olhos da criatura me viam e eu me vi espelhado
no vazio de não saber o exato mistério de onde eu vinha.
O mistério petrificado era uma agulha fincada no vórtice dos meus olhos.
Mas eu juro, nesse momento meus ouvidos
ficaram assombrados
e desde então sem juízo me pergunto
se tudo que penso ter havido
poderia mesmo ter sido assim narrado.
Porque meus ouvidos ouviram, eu juro,
ouvi a criatura pronunciar claramente
a única palavra jamais soletrada:
_ (nota musical)
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ FIM ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
DTRL34 - Poesias Sombrias – TEMA: METAMORFO