Poesia à beira do Fim – DTRL 34

"A cidade inteira acorda em tormento

O sangue escorrendo pelas ruas

Eles desfiavam com as mãos nuas

A carne de quem gritava em sofrimento

Os caídos erguiam-se da desolação

Desejando o mundo dos vivos destruir

Para um local inacesso preciso fugir

E sozinho encontrar a própria salvação."

A execução do poema não saiu exatamente como visualizava em seus pensamentos. Apesar disso, no momento em que o lápis pontuou o final do verso e logo acompanhou o pequeno caderno ao repousar em seu colo, sabia que experimentava uma sensação de plenitude até então nunca antes sentida.

“Voilà. Acabo de criar o primeiro clássico da poesia pós-fim da civilização”, pensa o Poeta, com o pouco de sarcasmo permitido para uma pessoa em sua situação.

Poeta. Logo ele que jamais havia escrito um verso sequer, decidiu que poderia ser o que quisesse durante o tempo que estivesse protegido dentro daquele simples barco a remo. Ele sabia que os poucos dias que supostamente lhe sobravam seriam insuficientes para torná-lo um bom escritor, mas mesmo assim acreditava que no meio de todo aquele caos encontraria uma última chance de sentir-se completo.

Intitulou-se como Poeta e decretou que, de algum modo, o que fosse escrito naquela folha molhada de caderno poderia preservar sua humanidade diante dos monstros da terra firme. Enquanto existisse imaginação e pudesse dar início e fim aos poemas, ainda existiria vida, onde quer que fosse.

Não havia mais nada a perder. A ruína da sociedade porto-alegrense ocorreu há poucos dias e a falta de informação não o permitia saber o panorama de outros lugares. Se estivessem piores ou melhores, não fazia diferença: a violência da pandemia modificou o estado das coisas, modificou todo o seu mundo, exterior e interior.

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“Mesmo engasgado pelo penoso lamento

Não me darei por vencido diante dessa atrocidade

Ver o consolidar deste Reinado sangrento

Faz-me perder inúmeros pontos de minha sanidade

O terror da costa sustenta meu estado de vigília

E em desalinho flutuo com a força de minha vontade

Creio que enquanto conservar a arte da poesia

Sigo a resistir pela nossa própria humanidade.”

Havia leveza e serenidade no balançar do barco, que sem rumo deslizava pelo contorno da cidade abatida. Um curioso contraste que servia volta e meia como inspiração.

A vida passada parecia cada vez mais distante, como se fosse um sonho bom que não conseguia fixar-se na memória ao acordar. A cada dia conquistado, sentia-se mais enrijecido como ser humano, porém melhor ambientado a sua nova vida nômade.

À luz do dia era possível, mesmo em áreas mais remotas, enxergar alguns transformados andando com seus passos furiosos, sedentos por mais vítimas. Eles urravam, agitavam os braços rasgando o ar com as próprias unhas. Mas o Poeta tinha plena certeza de que nunca alcançariam o barco enquanto ele estivesse sobre as águas do Guaíba.

Maiores eram os desafios ao escurecer - a noite era inundada por um vento gélido que retalhava a pele de quem estava a céu aberto. Um frio que penetrava os ossos, flagelando a alma já marcada do Poeta. O silêncio noturno era, com frequência, quebrado pelos gritos distantes; gritos de dor ou clamores por socorro. Pontos brilhantes de luz clareavam a densa escuridão indicando focos de incêndio pela cidade, talvez causados pela luta daqueles sobreviventes que não haviam sucumbido à cólera irracional de quem fora contaminado.

Os fracassos nas tentativas de desembarque na costa do lago aceleravam o processo de desesperança do Poeta. Os recursos reservados já não davam conta de suas necessidades mais fundamentais. A fome, a sede, as dores e o estresse causados pela situação tornaram seu corpo desgastado o real inimigo. Experimentava o limite humano naqueles dias e noites infindáveis. Quando sentia o trincar de seu espírito, colocava o grafite sobre a linha do caderno e o remendava com a força de sua imaginação.

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“Asas negras planam irrequietas pelo céu

À espreita, aguardando o destino que mereço

Carrego o receio de quando atravessar o véu

Arrancarem-me as lembranças de tudo que conheço

Encontro sobre a água uma realidade de tristeza

E luto contra a solidão que hoje me consome

Concluo a jornada e edifico com certeza:

Me pesam as saudades de meu antigo nome.”

Naquele novo mundo, movimento era sinônimo de sobrevivência. Foi pouco o tempo para que outras pessoas percebessem que os transformados eram apenas uma ameaça terrestre, pois sua limitada consciência não permitia que dominassem os caminhos do ar e das águas.

Menos tempo ainda foi necessário para que essas mesmas pessoas percebessem que a brutalidade e o abandono da essência humana os ajudariam na adaptação ao novo mundo. Na superfície aquática, as bestas humanas eram a grande ameaça.

Embarcações muito parecidas com a sua eventualmente surgiam no horizonte. Homens e mulheres – sozinhos ou em grupos – escapavam na esperança de afugentar os horrores testemunhados do outro lado da costa. Por cinco vezes o Poeta conseguiu desviar do caminho sem ser percebido, mas a brutalidade e a cólera racional por desventura o encontrou na sexta vez.

Três homens também famintos, sedentos e desgastados, encontraram uma lancha abandonada que lhes daria uma pequena vantagem para sobreviver enquanto o combustível não acabasse. Os sentidos do Poeta já haviam se habituado à quietude quando o ruído motorizado cruzou seu caminho.

Predador e presa iniciaram uma perseguição desigual pelo lago. Duas armas de fogo foram apontadas contra a débil figura humana no pequeno barco, até se certificarem de que não se tratava de um transformado.

Poderia ter sido melhor se o Poeta fosse um.

O membro desarmado do trio gritava palavras de ódio enquanto jogava um gancho improvisado, prendendo o casco do barco de madeira à lancha. O corpo fragilizado do Poeta aguentou lutar por breves instantes, mas não foi forte o suficiente para evitar a pilhagem. Cada golpe covarde era um atestado de horror do que aquele mundo agora os oferecia. A humanidade que o Poeta buscava em seus escritos não foi encontrada por trás dos punhos pesados que desfiguraram seu rosto, nem dos chutes enlameados que lesionaram e fraturaram sua vulnerável carcaça.

A barbárie e a violência são consequências dos espíritos quebrados pelo medo, um sentimento inconfundivelmente humano. Segundos após a fuga dos saqueadores, em meio à dor, ao gosto ferroso de sangue na sua garganta, essa pequena epifania fez com que o Poeta identificasse um singelo traço de humanidade naquele inferno.

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“Todo navegar tem seu Fim

E mesmo sendo assim

Faço as pazes com o Passado

Apesar da situação pior do que Ruim

Tenho orgulho do que fiz de mim

E sei que...”

O dedo indicador perdeu a firmeza, fazendo o lápis cair no assoalho. O Poeta recostou o corpo na lateral do barco e esperou que as leves ondulações o conduzissem para próximo da beira do lago. Não havia qualquer ímpeto que lhe permitisse remar para longe de sua condenação. Inclinou a cabeça para fora e a água turva espelhou apenas um contorno escuro, sem as feições do rosto agora em carne exposta. Ainda bem, seguia sendo o Poeta, mesmo sem a força para a criação.

O verso inacabado era o sinal da partida. Mas não deveria significar o fim da humanidade.

Quantas pessoas passavam uma vida sem realizar seus desejos mais genuínos? O verdadeiro horror às vezes pode ser revelado em uma vida ordinária e medíocre. Sem criação, sem nenhum legado.

Um fragmento da História poderia ser achado naquele barco. Mesmo torto e imperfeito, no caderno estava marcado uma pequena amostra de sua essência, preservando sua memória, sua conquista, sua existência.

Talvez tenha se sentido completo exatamente por isto: escrever é enganar o efêmero da vida, é enganar o tempo e conquistar uma breve eternidade. Bastava que outro indivíduo se deparasse com sua obra...

O poeta aproveitou a derradeira chance para assinar, na linha abaixo de cada poema, seu nome antigo. O lápis desenhou a última letra e repousou pela última vez em seu colo.

Ainda havia leveza e serenidade no balançar do barco, que deslizava pelo contorno da cidade abatida...

Tema: Água

Nunes Pedroso
Enviado por Nunes Pedroso em 18/04/2019
Reeditado em 28/04/2019
Código do texto: T6626220
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