A Janela de Sofia

A noite cujo primeiro relato foi escrito por Eduardo não fora marcada somente pelos acontecimentos bizarros que levaram aos relatos que apresentarei aqui a serem escritos, porém também por uma chuva tão intensa como pedras caindo do céu e destruindo casas, carros, árvores e qualquer ser humano que ousasse se aventurar pelas ruas alagadas do Rio de Janeiro.

Esta história se passa em Niterói, mais precisamente no bairro de Santa Rosa. A rua arborizada potencializava o som alarmante do temporal e dos fortes ventos que costumavam causar estrago na cidade. As poucas luzes que restavam nos postes já não mais iluminavam como outrora, e um breu absoluto tomava conta das ruas estreitas que cortavam a avenida. Eduardo, já esperando pela queda da luz, sentava-se em sua cadeira de couro falso cujos rasgos incomodavam-lhe um pouco. O computador e a televisão desligados, o celular quase descarregado e a certeza do tédio acompanhavam-lhe até a varanda de seu humilde apartamento de um quarto, no qual apenas sua cama ocupava mais da metade do espaço, uma cozinha estreita, uma sala com um sofá marrom manchado e uma televisão presa à parede e um banheiro de piso azul.

Eduardo contemplava o cair da chuva enquanto acendia um cigarro e torturava-se com a lembrança de um paciente indecifrável que atendera mais cedo em seu consultório. Nem sempre ser psicólogo é algo agradável, e o homem sabia bem disso. Psicopatia, transtorno de dupla personalidade e síndrome do pânico… apenas suspeitas por enquanto, porém descobrir o que o pequeno Marcos tinha seria uma tarefa complicada e Eduardo sabia.

Enquanto olhava para o balançar das árvores, algo no prédio à frente chamou-lhe a atenção. Mais precisamente no quarto de sua vizinha. Uma distância de cerca de dez metros dividia a varanda de Eduardo da janela do quarto da moça, então podia ver com bastante clareza algo que fez todos os pelos de seu corpo arrepiarem-se de uma só vez como também seu estômago gelar e seu cérebro questionar a própria sanidade. Algumas horas depois, o primeiro relato havia sido escrito. A partir de então, Eduardo contará sua própria história.

“Eu não posso chamar a polícia e descrever o que eu vi naquela janela do segundo andar do prédio da frente. Primeiro, achar-me-iam louco, segundo, acusar-me-iam de ligação falsa ou de brincadeiras com o número de emergência. Além disso, a Polícia Militar não tem um histórico muito bom na resolução de crimes e no relacionamento com a população aqui na região. Então, até que eu descubra se o que vi foi uma alucinação ou uma loucura inexplicável da realidade, manterei em sigilo. Não consigo nem mesmo descrever nesta folha de papel sem sentir-me como um louco, um lunático. Talvez eu devesse me examinar com algum outro psicólogo. Preciso de um tempo para digerir aquela cena, e quando retomar o controle de minha própria mente escreverei mais.

25/02/2018”

“Passei a noite inteira olhando para o apartamento dela. Sinto-me exausto e novamente louco. Não tornei a ver aquela cena cujo pavor fez-me quase cuspir fora meu estômago, porém percebi que aquela moça esconde algo. Ela deve ter por volta de vinte e cinco anos, tem cabelos pretos, lisos e longos e uma pele bem clara. Parece um pouco baixa vista daqui. Meu interesse pouco tem a ver com ela em si, mas com o que há naquele quarto.

Após aquele breve momento em que pude espiar o que há naquele dormitório, não tive outra chance de vislumbrar por trás das cortinas vermelhas. Ela as mantinha fechadas o tempo todo, e eu apenas podia ver pela janela da sala quando a mulher dirigia-se aquele maldito quarto. Eu não posso sair daqui até confirmar se o que vi é real. E talvez eu não tenha outra chance de ver. Talvez tenha sido um descuido dela, talvez ela nunca mais abra aquelas malditas cortinas. Eu preciso pensar em outra forma. Eu vou descobrir uma maneira.

26/02/2018″

“Descobri o nome da moradora daquele apartamento. Não foi muito difícil, apenas esperei que ela saísse de casa e fingi um esbarrão. Após isso puxei uma conversa amigável e ela logo revelou-me chamar-se Sofia. Com o primeiro nome e sabendo a aparência, não foi complicado encontrá-la nas redes sociais. Pelo Facebook dela, pude saber algumas coisas que apenas deixavam-me mais intrigado.

Primeiramente, ela não postava nada haviam quatro anos. A última postagem havia sido feita em 2014 e era o vídeo de um cachorro. Após isso, não havia nada novo. Algo que também chamou-se a atenção era a frequência de mudanças. Sofia mudou-se de Vitória para São Paulo em 2014, depois de São Paulo para o Mato Grosso do Sul em 2015, e no mesmo ano ainda migrou para outra cidade no mesmo estado. Depois, em 2016, mudou-se para Pernambuco, onde morou por alguns meses até ir para Realengo, já no Rio, e no ano seguinte finalmente mudar-se para a frente de minha casa. Essas informações estavam em seu perfil. Toda vez que ela se mudava havia uma atualização de município no Facebook. Por que ela se dava ao trabalho de informar onde morava se nem mesmo postava algo ou interagia com alguém na rede?

Nada que eu encontrei online era o bastante para me provar de que o que vi era real. Não havia uma pista, um indício, nada. Eu preciso de um novo plano. Não sei mais o que fazer. Ela não abre a maldita cortina. Eu preciso ver o que tem naquele quarto!

28/02/2018″

“Passei mais um dia inteiro olhando para aquela janela! Cancelei uma consulta e fiquei sentado nessa cadeira odiosa encarando aquela cortina vermelha o dia inteiro sem nem mesmo me alimentar como um ser humano. Hoje ela se movimentou pouco. Manteve sua rotina de sair à rua entre as duas da tarde e as quatro e depois ficou na sala. Nem mesmo entrou no quarto. É como se ela soubesse que estou espionando e tentasse esconder ainda mais aquele segredo obscuro. O. Que. Tem. Naquele. Quarto. Infernal.

Eu começo a sentir como se aquela cortina estivesse caçoando, rindo de mim. Fazendo piadas e debochando do meu empenho em descobrir o segredo que ela fielmente mantém. Posso quase ouvir daqui as risadas. As malditas risadas daquela janela fechada há horas, daquela mulher, daquela cortina, da própria cadeira na qual me sento. Tudo caçoa de mim. Todos estão rindo de mim. Eu não sou capaz de descobrir o que há naquele quarto. Eu não sou mas eu vou descobrir. Deus é minha testemunha de que eu vou descobrir.

01/03/2018″

“Eu descobri! Eu finalmente descobri! Estou escrevendo isto enquanto uma vela queima ao meu lado. O mínimo de luz que eu fizer é capaz de atrair a atenção daquela coisa! - Eu finalmente descobri o que havia naquele quarto. Provei minha sanidade assinando meu próprio óbito. Antes trate-se de um simples assassinato, pois Deus sabe que há coisas piores do que a morte. Eu sei.

Entrar não foi muito difícil. Pelo menos não tanto quanto sair. Escalei a grade dos fundos do prédio e esperei até que algum morador abrisse o segundo portão, quando fingi ter esquecido as minhas chaves e entrei no edifício. O mais complicado talvez tenha sido abrir a porta do apartamento, o que custou-me uns bons minutos. Mais pensava na possibilidade de Sofia voltar do que em ser flagrado por algum vizinho. Eu sabia os riscos, entretanto… eu precisava ver com meus próprios olhos. Eu precisava provar que não estou louco!

No apartamento foi fácil encontrar o tão procurado quarto, e não apenas pelo aspecto descuidado da porta mas também por ser a única que estava fechada. Então eu caminhei até a entrada. Neste momento nada em meu corpo era capaz de concentrar energias em algo que não fosse abrir aquela porta, a qual para minha surpresa não estava trancada. Bem… eu talvez não devesse ter feito aquilo.

Dentro de um quarto sujo e completamente abandonado por Deus, uma mulher, cujo odor era facilmente sentido do lado de fora do dormitório, deitava-se em uma cama antiga, amarrada pelo que um dia foram suas mãos e pelo que um dia foram seus pés. - Droga! Vou tentar explicar melhor. Aquela moça estava presa na cama por cordas que amarravam suas mãos e pés, porém todos os seus dedos haviam sido arrancados! Além disso, sua boca estava costurada, o que talvez explicasse o motivo de nenhum vizinho ter ouvido gritos e súplicas. E a coitada estava viva. Ela tentou soltar um gemido quando viu-me entrar. Tentou se mexer mas estava muito fraca. Seus braços e pernas eram quase como os de alguém que pouco come há meses. Era quase esquelética. Entretanto… o mais assustador e apavorante de minha obscura descoberta… é que ela era Sofia.

Deixem-me explicar, ela não era parecida com Sofia. Ou Sofia não era parecida com ela. Ela. Era. Sofia. Eram idênticas e eu pude perceber isso apesar do aspecto subnutrido da moça amarrada na cama. Eu queria muito tirá-la dali e abrir sua boca para tentar entender como era possível tudo aquilo que eu estava vendo, porém o medo de machucá-la ou até matá-la me fez pensar em primeiro ligar para a polícia. Ela estava perigosamente frágil. Foi então que Sofia, a outra Sofia, chegou no apartamento.

Naquele momento meu corpo gelou dos dedos dos pés até o último fio de cabelo encaracolado de minha cabeça. Corri para dentro de um armário que havia naquele quarto e rezei para que ela não notasse que alguém havia entrado ali. Fiquei observando, com minha própria mão em minha boca e evitando fazer qualquer ruído, pelas frestas da porta do armário, enquanto Sofia injetava algo na veia de sua prisioneira, que fazia contato visual comigo, como pedisse por ajuda. Eu estava em choque, sem saber o que fazer. Esperei que ela saísse do quarto e continuei lá, digerindo toda aquela situação.

Passei pelo menos vinte e quatro horas naquele armário. Com fome, calor, sono… E o mais curioso é que a mulher não comia! Ela estava sentada no sofá, onde eu podia observá-la, e não levantou para absolutamente nada. Apenas ia até o quarto de vez em quando e fazia alguma crueldade com a pobre mulher naquela cama. Eu sentia agonia por ver tudo aquilo porém não tive uma única chance de sair do armário sem ser visto e buscar ajuda.

Cheguei a conclusão de que aquela coisa não era humana. Ela era idêntica a Sofia, quem assumi ser a mulher amarrada, porém não era humana. Era uma espécie de clone. Um fantasma. Ela não sentia coisas, não sentia fome, vontade de ir ao banheiro… não sentia nada! Eu estava atolado na própria urina!

Foi então que, na tarde seguinte, aquela coisa saiu. Eu corri para fora do armário e prometi a Sofia que conseguiria ajuda, mesmo vendo em sua face a desesperança e a súplica pela morte. Cheguei a pensar em matá-la para livrá-la daquilo, porém a certeza de que não seria forte o bastante falou mais alto. Morrerei sem nem mesmo cometer um ato de heroísmo em minha vida.

Digo que morrerei pois quando saía do prédio, ainda em choque, vi Sofia. Ou o que aparentava ser ela. A moça estava do outro lado da rua e parou quando me viu, encarando-me até que eu entrasse em meu prédio. Naquele momento, com aqueles olhos fitando-me enquanto eu subia as escadas, eu tive certeza que morreria.

Quando cheguei, peguei o telefone para chamar a polícia, e garanto que não tive muita surpresa quando notei que a linha estava desligada. Ela não era humana. Ela não jogava de acordo com as regras. Ela controlava o jogo. Então peguei um papel, uma caneta, acendi uma vela enquanto a noite caía e coloquei-me a escrever tudo, detalhando tudo e deixando esta prova, para caso alguém encontre, saber o que aconteceu comigo. Agora apenas espero até que essa vela apague, pois sei que, na escuridão, onde nada poderei ver, ela estará me esperando.

03/03/2018″

Eduardo nunca mais foi visto após estas cartas serem encontradas, e a polícia utiliza, sem muitas esperanças, como a única pista para seu desaparecimento. Sofia também nunca mais foi vista. Provavelmente mudou-se de novo, para outro lugar, onde ninguém a conheça, onde não haja rastros, onde não haja Eduardos espiando da janela, onde possa continuar infligindo sofrimento à Sofia. Cuidado caso veja alguém idêntico a você, isso não é um bom sinal.