A CONCHA NEGRA

Sabrina viajava com sua família duas vezes ao ano, e quase sempre para o mesmo lugar. As praias eram o forte da menina de olhos escuros e pele morena. Sua mãe se perguntara toda vez que ela falara sobre praia e mar, porque desde quando era um toquinho de gente já gostava carinhosamente das águas. Sabrina nunca deu uma resposta plausível, a única coisa que dizia com suas bochechas rechonchudas, era ” A minha alma mora nas águas” sua mãe ficou impressionada quando ela disse isso pela primeira vez.

— Filha! Não vá muito longe. — Gritou a mãe de Sabrina da varanda, vendo-a se afastar e sumir entre os coqueiros enormes na beira da praia. Eram coqueiros altos como prédios de Manhattan. Eles dançavam com o vento, se contorciam como malabaristas de circo. Sabrina saiu andando, seus olhares percorriam toda a vastidão de “lugar nenhum” como era conhecido ali. Ela carregava junto de si o seu ursinho Dingou que nunca o deixava de lado em suas aventuras secretas.

Sabrina ficou impressionada com a quantidade de gaivotas na praia, que voaram aos montes após ver a menina se aproximar. Seus pés afundavam na areia quente, o sol tilintava no mar azul do céu. Nada para ela seria mais fenomenal que estar ali, na beira do mar contemplando as ondas invadirem a praia.

— Como esse lugar é lindo! — Disse para si mesma, enquanto olhava para além da praia, onde dava uma curva, formando um C. Ela andou na beira da praia por um tempo, viu caranguejos saíram dos buracos e correrem para o mar. Ela sairá na perseguição de um grande e vermelho que andava de lado, com suas garras em forma de tesoura. Ela tentou pega-lo, mas ele a beliscou nos dedos.

— Ahhhh! Seu malvado, você me mordeu… Só queria ser sua amiga.— O caranguejo correu e entrou no mar, ela ainda tentou pega-lo novamente, mas tropeçou em algo enterrado e caiu de joelhos na areia, seu ursinho caiu na água.

Era algo negro, uma parte estava exposta para fora, ela ficou curiosa em saber que se tratava, então enterrou as mãos por baixou do objeto e o retirou da areia, era uma grande concha negra, seu aspecto tinha pontas grossas na base da cavidade do abertura, seu corpo se constituía em espiral que ia afunilando até a ponta. Ela olhou-a por um tempo, virando e revirando a concha, que quase fugia da sua mão de tão grande que era. Seus pais a viram de longe, vieram com o grito que ela deu.

— O que aconteceu? Você está bem filha? Perguntou o pai, se agachando e segurando os braços da filha, como se fosse sacudi-la.

— Estou bem, olha que encontrei pai. — Ela ergueu a cocha e mostrou para o pai que não deu muita importância, a mãe dela viria logo atrás.

— Mamãe olha o qu… — o pai interrompeu. — Vamos Sabrina, você veio longe, não quero que chegue muito perto do mar, mocinha. — Mamãe olha, olha o que encontrei — insistiu Sabrina, levantando a concha na altura dos olhos. A mãe de Sabrina aproximou-se sorridente — oh! é uma bela concha querida!

— Por que ela nunca me ouve? — Indagou o Pai de Sabrina.

— Sua mãe me disse que você era igualzinho a ela quando criança, então não reclame — Disse a mãe de Sabrina, dando um sorriso.

Os três se puseram na direção da casa de praia, já estava escurecendo quando eles sumiram na floresta de coqueiros. A água do mar estava alaranjada, as ondes pareciam fogo, e o sol baixava, como se apagasse ao poucos, como a chama de um fósforo.

A noite depois do jantar, Sabrina já estava exausta, após ter brincado o dia todo. Seu pai subiu com ela nos braços, para o seu quarto que ficava no andar de cima, subindo uma escada de madeira. Colocou-a na cama, pegou o ursinho Dingo e colocou sobre o peito de Sabrina, depois cobriu os dois com o cobertor, ela ainda estava acordada.

— Pai, quero meu novo amigo aqui também. Disse ela com uma voz doce e sonolenta.

— A concha?

— É, é a minha concha da sorte, ela vai afastar todo bicho pra longe. O pai sorriu e em seguida disse — Está bem querida, aqui está, só cuidado porque pode ter alguém vivendo dentro dela. Brincou ele, continuando — Sabia que quando você encosta a concha no ouvido você escuta o barulho do mar?

— Sério? — Perguntou Sabrina, se erguendo na cama, parecia perder o sono com aquela novidade.

— Claro que sim querida, escute. Ele colocou a concha encostada no ouvido da filha.

— Ahhh, posso ouvir, posso ouvir o chiado das ondas, é como se o mar tivesse aqui dentro, dessa minúscula concha. Vou dar um nome pra ela.

— Disse Sabrina, alegre, quase pulando na cama.

— Que tal Simon? Querida?

— Sugeriu o pai. É um nome lindo, gostei. — Sabrina pegou a concha e a enrolou nos seus braços como um bebê e deitou-se no travesseiro. — Agora durma querida, amanhã será mais um belo dia, vamos visitar a lagoa azul do outro lado. O pai deu-lhe um beijo e a cobriu de novo. — Boa noite querida — Despediu-se dela, apagando a luz do abajur.

— Boa noite, pai. — Retribuiu dando um sorriso com sono.

Já era madrugada, a casa estava silenciosa, ouviam-se os ruídos dos coqueiros balançarem além das portas e janelas dali. A madeira se estremecia com a ventania, os pais de Sabrina dormiam como coalas. O relógio digital na cômoda do casal marcava duas e cinquenta da madrugada. Sabrina, se movia sobre os lençóis, como se algo a perseguisse. O pesadelo a fez acordar assustada, se inclinando com agilidade para frente, respirando ofegante. Ela acenderá o abajur, e seu urso de pelúcia, Dingo, estava com a cabeça arrancada, suas vísceras de algodão se espalhavam pelo quarto.

— Dingou, o que fizeram com você!? — sua feição se formou como se fosse abrir berreiro, mas ela cessou quando ouviu uma voz sussurrante.

— Quem está aí?

— Sou seu amigo — Sussurrou a voz calmamente.

— Mas onde você está? Não consigo vê-lo.

— Estou aqui na sua cama. Seus olhos atarracados de medo se viram para os lençóis.

— Não o vejo, onde está?

— Levante os lençóis, estou aqui debaixo, Sabrina. Sabrina, deixou o ursinho sem cabeça cair das mãos, deu dois passos lentos e silenciosos para a cama, ergueu seu lençol devagar e a concha estava virada para baixo. Sabrina pegou a concha com dificuldade

— Alô? Tem alguém ai? — perguntou ela, confusa.

— Estou aqui — Sussurrou a voz na concha, arrastando o “aqui”.

— Como você foi parar aí dentro? Indagou a menina, aquilo parecia incrível para ela.

— Um homem mal me prendeu aqui, preciso da sua ajuda para conseguir escapar.

— Vou pedir para meus pais te ajudarem. Esper… — A voz na concha interrompeu.

— Não faça isso, eles vão me jogar fora. E vou morrer. Me ajude! Não conte para eles.

— Está bem, vou tirar você dai. — Sabrina foi até a cozinha, andou devagar para não acordar os seus pais. Pegou um batedor de alho de alumínio que se parecia com um martelo e subiu de volta para o quarto. Ela colocou a concha sobre a mesinha da cabeceira

— O que vai fazer menina?

— A voz sussurrante parecia preocupada. Ela ergueu o “martelinho” para quebrar a concha.

— Não faça isso! — A voz sussurrante entonou. Ela deixou o “martelo” cair.

— Se você me quebrar, vou morrer. — disse a voz sussurrante, calma novamente.

— Então, como ajudo você?

— Me leve para a caverna? Aquilo soou estranho para ela.

— Mas que caverna?

— Eu te ensino o caminho, ela não esta longe. Quero ser seu amigo. Quero brincar com você. — Aquelas palavras a fizeram dar um sorriso, seguido de uma cara seria.

— Você destruiu o dingos?

— Ele disse que ia te machucar, então cuidei dele para que não te fizesse nenhum mal. A menina não entendia como ele havia feito aquilo se ali ele não se encontrava. Mas ignorou, seguindo suas ordens.

— Está bem, vou te ajudar. Ela seguiu para a sala, foi até a cozinha abriu todas as gavetas uma a uma, procurando por uma lanterna. Encontrou uma em cima do armário. Caminhou em direção a porta.

— Cuidado — Sussurrou a concha — Você vai acordar seus pais. Rodou a chave lentamente, sem fazer barulho. Em seguida girou a maçaneta para a direita e a porta se abriu, um vento frio adentrou fazendo-a trincar os dentes.

— Como está frio aqui fora — Disse Sabrina, se enlaçando nos próprios braços. Seus cabelos se esvoaçavam para trás.

— Para a esquerda — disse a concha — Ela foi para a direção contraria.

— O outro lado, o outro lado. — Sussurrou acelerado a voz. Sabrina seguiu por um caminho elevado, fugindo um pouco dos coqueiros, ela olhou para trás, estava num pico íngreme, via por entre algumas samambaias, os coqueiros logo atrás.

— Onde está a caverna? Perguntou ela, abrindo espaços entre pequenos arbustos.

— Logo ali na frente… Sussurrou a voz que parecia ficar cada vez mais nítida.

— Como você sabe? Você tem olhos? Não os vejo, é tudo escuro ai dentro. — Perguntou ela, dando uma parada e clareando ao redor.

— Eu sinto, vamos… quero ser seu amigo, mas primeiro preciso que me solte.

— A voz mandou ela parar de repente.

— Oh! é ali… Lá está!

— Estou vendo, você está lá dentro?

— Sim —Disse a voz.

— Por que você não sai? A voz não respondeu.

— Entre e serei livre, e brincaremos por todo o tempo. Dizia a voz na concha.

Sabrina parou de ante da caverna, uma abertura não muito grande, sua abertura era quase fechada por muitas plantas, completamente escondida de olhos desapercebidos. Lá dentro estava úmido, havia picos elevados, buracos, poças com água parada. Ela ouve algo e paralisa-se de medo.

— Por que parou? Perguntou a concha.

— Estou com medo. — Disse Sabrina, enquanto o freixo da sua lanterna percorria a caverna afunilada. Sem querer ela porá a luz num bando de morcegos que voaram em sua direção.

— Ahhhhhh!!! Mãe!!! — Sabrina soltou um grito que a caverna ecoou como um hino de horror para fora. Ela deixara a lanterna cair e apagar, a concha também cairá de suas mãos.

— Eu quero ir pra casa! Não mais ser seu amigo! — Sua voz estava trêmula de choro. O silêncio pairou na caverna depois do reboliço dos morcegos.

— Cadê você? Quero ir pra casa! — Disse ela soluçando de choro.

Uma silhueta surge atrás dela e seu grito seco é silenciado, como se nunca houvesse tido alguém ali naquele lugar frio e crepitante.

Na manhã seguinte seu a chamará da escada para o café da manhã, mas estranha depois de algum tempo, nenhum sinal da filha.

— Sabrina, vamos filha, está perdendo um belo café da manhã que sua mãe preparou especialmente para você. Disse ele do pé da escada. Ficou parado lá, mas nenhum sinal.

— Sabrina? — Insistiu ele chamando-a subindo os degraus. Ele vira a porta aberta, abriu devagar e se deparou com os lençóis remexidos e o seu ursinho preferido destroçado. O pai de Sabrina, desce as escadas a loucura. Seu rosto fervia de tensão.

— Mary, ligue para a polícia agora!!! Sabrina sumiu.

— Com… Como ela sumiu? — A mãe Sabrina correu para o quarto sem acreditar, e voltou correndo escada a baixo.

O pai estava no encalço dos coqueiros e gritava chamando pela filha como um louco, sua voz se perdia ali na floresta torrencial de cocais. O desespero caiu como uma chuva sobre os pais de Sabrina. Ele correra até o mar, seus olhos percorriam a costa da praia. As gaivotas voavam longe, o sol se escorregava atrás das nuvens. Seus pensamentos fervilhavam no seu crânio, ele cairá de joelhos na areia.

— Não, filha! — Seu rosto é enterrado nas mãos mais uma vez. Seu olhar se ergue, e seus olhos captam algo boiando ao longe quase na margem da praia, algo vermelho. Correrá cambaleando ao encontro da sua filha, que já estará morta, sua pele estava pálida como um giz, seus cabelos lânguidos boiavam sobre seu rosto, sua boca estava roxa, a água saia e entrava dali. Estava gelada.

Os pais de Sabrina nunca se recuperaram da sua perda, seu pai cairá numa profunda depressão. Os dois divorciaram-se meses depois do incidente. A polícia local afirmou que a causa da morte fora por afogamento, apesar das várias manchas escuras que foram encontrados no corpo da menina. Os pais dela foram acusados do crime.