Ruptura

E lá estava o quadro, me encarando como se eu fosse a maldita Monalisa do século XXI.

- Com licença, quanto custa esse quadro?

- Duzentos.

- Obrigado.

Voltei-me para o quadro novamente e ele ainda me olhava com aqueles olhos desdenhosos de desafio. Conferi minha carteira. Eu teria que recusar o desafio. Com muito esforço cortei o contato visual e fixei meus olhos em meus pés. Meu rosto se contorcia involuntariamente e eu suportava aquela falta de ligação porque sabia que ele ainda estava ali, ao alcance de minhas mãos.

Virei-me para a porta e juro por minha mãe que a minha intenção era sair daquele lugar, deixando entre suas quatro paredes aquele objeto de tormento. Dei o primeiro passo e a cada metro que eu avançava meus pés pareciam pesar mais. Algumas pessoas em volta olhavam cochichando entre si e rindo baixinho. Eles não sabiam tudo o que aquele quadro era e eu agradecia a Deus por eles.

“Seu fracote. Fracote. Sente minhas mãos em seus ombros? Sente os meus olhos em sua nuca?”

- Algo errado, senhor?

A simpática moça estava preocupada, com seus olhos amendoados e cabelos loiros presos em um coque.

- Não, está tudo bem.

Meus pés pareciam pesar cem quilos e havia tanta gritaria em minha mente que ela parecia um campo de futebol. Não teria jeito, eu não conseguiria sair dali sem aquele quadro.

Havia um caixa eletrônico do outro lado da rua, e andar até lá foi fácil. Eu resolvi ignorar os avisos de minha mente que diziam que aquele pedaço de papel sujo de tinta seria minha perdição. Eu não via ninguém, eu não via nada que não fosse um corredor tendo em seu fim aquele caixa eletrônico, bendita fonte de tesouros que me ajudaria a conseguir o maior deles e o único que realmente importava. Não haveria mais vida sem aquele quadro.

Meu saldo, sem surpresa alguma, era zero, mas o banco foi legal comigo e me emprestou o dinheiro. Não sei como pagaria a dívida, mas o principal agora era voltar correndo para a exposição antes que algum idiota levasse a tela antes. As pessoas olhavam assustadas para meus olhos perturbados e evitavam passar perto de mim. Isso não importava, o quadro suportaria meu olhar e a recíproca seria verdadeira.

Rapidamente paguei pelo quadro e saí pela porta de vidro. Diante de minha urgência a moça não ficou disposta a fazer perguntas, nem mesmo ser simpática, e eu também não estava. Eu queria sair logo dali, ir para o meu apartamento e olhar aquela peça até que não houvesse um só canto no qual eu não houvesse deitado os olhos.

***

Meu apartamento estava escuro e silencioso quando voltei. Eu morava num bairro sujo à margem da cidade e as pessoas de outros bairros preferiam não se arriscar a passar por ali e voltar para casa peladas, na melhor das hipóteses. Mas para quem era da área eles davam um desconto, afinal estávamos todos no mesmo barco.

Não havia muitos móveis em minha sala, nem na cozinha. Na verdade não havia muitos móveis em lugar algum daquele apartamento, minha profissão de entregador de pizza não permitia que houvesse. Uma poltrona de frente para uma velha televisão, um colchão cheio de marcas estendido pelo chão e várias latas verdes e amassadas para dar o toque final na decoração. Havia um único quadro em toda casa, no qual se encontrava uma foto de muito tempo atrás de minha mãe segurando minha irmã no colo. Todas sorridentes e com os olhos brilhando. Bem, meus olhos também brilhavam agora, mas um brilho diferente.

Eu ouvia sons de carros lá fora, hip-hop no último volume e muitas vozes, umas alegres e outras zangadas. Havia também a irritante gritaria da vizinha ruiva gorda que brigava com seu gato, algo que fazia todo dia. A julgar pelos lamentos do gato talvez essa noite fosse a última.

Retirei o quadro de minha mãe e minha irmã da parede e joguei sobre o colchão, com certeza que elas não se importariam. Na verdade somente os pecados delas importavam agora. Desembrulhei minha mais nova e querida aquisição, a coloquei no lugar do antigo e fiquei parado com as mãos na cintura encarando aquela outra realidade tão inalcançável.

O quadro estava torto e aquilo me incomodava profundamente, e toda vez que o colocava na posição correta ele se inclinava ligeiramente, atrapalhando minha apreciação.

- Filho da puta! – Chutei a parede e gritei com toda a fúria do homem que é impedido de realizar seu sonho.

Meu pé destruiu o reboco e foi parar dentro da parede vagabunda. Retirei o quadro do prego, agachei-me e simplesmente o apoiei na parede. Sentei no chão, cruzei minhas pernas, apoiei meus cotovelos em minhas coxas e meu queixo em minhas mãos.

Era uma paisagem muito bonita, muito pacífica, mas isso não era realmente o que importava. Era dia e havia uma clareira. Uma mulher com um vestido típico do século XIX estava sentada bem no meio do lugar, e a visão que eu tinha é a de alguém espiando por entre as moitas, bem de frente a ela. Suas roupas eram azuis e brancas e seus cabelos castanhos, encobertos por um véu branco. Era de fato uma mulher linda, mas algo a perturbava. Ela tinha um graveto em sua mão direita e escrevia algo na terra, algo que talvez fosse possível de se ler. Havia uma grande casa ao fundo, marrom e branca e todas as três janelas estavam negras, exceto uma em que havia uma chama acesa, como se alguém segurando uma vela observasse a moça de longe. A moita atrás da qual eu me escondia estava cheia de pequenas flores azuis e no momento captado uma grande lufada de vento passava pelo lugar, levando todas as coisas para oeste.

Quem era aquela mulher? Por que estava tão triste? O que ela escrevia na terra? Quem a observava de longe? Que lugar era aquele?

Aquele quadro era como um livro sem quase todas as páginas, mas a história por trás daquilo tudo não importava tanto, o que me perturbava realmente era que cada vez que eu olhava para um pedaço no quadro esse pedaço estava diferente. Foi isso que intrigou quando o vi na exposição, e era isso que me intrigava agora.

Depois de algum tempo contando as rosas de uma das moitas para ter certeza do número exato percebi que meu telefone tocava. Dezessete. O telefone parou. Recomecei a contar para conferir. O telefone tocou novamente. Dezoito. O telefone continuava a tocar. Merda. Levantei-me e tirei o fone do gancho, quando o coloquei no ouvido não havia nada além do barulho da linha. Coloquei o telefone de volta e me sentei novamente. Recomecei a contagem. O telefone também recomeçou a tocar. Dezoito. Eu estava prestes a estourar, mas daria uma última chance a quem quer que fosse do outro lado da linha. Novamente tirei o fone no gancho e novamente apenas o barulho da linha esperando para ser usada. Peguei a base e quando estava prestes a atirá-la contra a parede com um rugido em minha garganta, um ruído muito baixo de estática se fez ouvir. Parei de repente e encarei o fone com uma careta de criança mimada que teve o brinquedo tomado. Encostei o fone no ouvido e ouvi a voz de uma mulher. Ela disse apenas uma palavra.

- Dezessete.

Meus olhos se arregalaram e minha boca se abriu.

- Quem está falando? Hei!

Nada, apenas o barulho de linha novamente. Estupefato, coloquei o fone de volta no gancho. Algo estava errado. Quem poderia estar fazendo isso? Olhei em volta rapidamente. Nada além do normal. Fui até meu quarto, e somente uma cama, um guarda-roupa e um criado-mudo com alguns frascos estavam lá. Abaixei rapidamente e olhei embaixo da cama. Nada. Foi quando o telefone voltou a tocar.

Corri como um louco.

- Quem é?!

- Mike, sou eu, Joe. Está tudo bem?

- Ah, sim. O que você quer?

- É assim que fala com um amigo que não vê há dois meses?

- Desculpe. Olha, realmente não é uma boa hora. Você pode me ligar depois?

- Não, não posso. O que você pensa que está fazendo? Lucy tem me ligado várias pedindo que eu o ajude. Ela diz que você está louco!

- Isso é exagero, está tudo bem, eu só não a quero mais perto de mim, aquela vagabunda safada. Você sabe o que ela fez, certo?

- Sei, cara. Mas não era motivo para você ter feito o que fez.

- Não? Não era?! Você também está me achando com cara de idiota, Joe? Eu a peguei na cama com um dos meus colegas de trabalho! O que você acha que eu devia ter feito?

- Não sei, Mike, mas com certeza pichar e jogar merda por toda a casa do cara não foi certo.

- Bem, ninguém pode provar que fui eu.

- Eu não preciso de provas, seu idiota, conheço você desde o primário. Além do mais Lucy disse que você a agrediu e cuspiu nela.

- Também não há provas disso, é a palavra dela contra a minha.

Houve um suspiro do outro lado da linha.

- Não vou insistir mais no assunto, Mike. Apenas sugiro que você peça desculpas a Lucy e ao cara pelo que fez. E procure um psiquiatra.

- Grande merda de amigo você é! Não vou pedir desculpas a ninguém, quero que os dois vão para o inferno, e se você quiser que vá com eles!

Desliguei violentamente. Eu estava ofegante, com os olhos injetados e havia um irritante zumbido em minha cabeça.

O telefone tocou novamente.

- O QUE É?!

- Eu mandei seus objetos de beisebol que estavam comigo, como você pediu. Espero que tenham chegado.

Um clique.

Realmente, um pacote havia chegado no dia anterior, mas não houve tempo para abrí-lo. Isso ficaria para depois, faltava muito para eu entender meu quadro e eu já caminhava de volta para ele quando hesitei por um momento. Havia algo estranho em relação àquilo, quase um pressentimento. Às vezes fosse apenas algum resquício de nostalgia na minha alma sem esperança. Fiquei por alguns instantes olhando do quadro para o pacote. Optei pelo último.

O cubo embrulhado em papel pardo estava encostado na parede próximo à porta. O carteiro que o entregou e pediu que eu assinasse um recibo foi minha primeira visita em duas semanas. Não me lembrava de seu rosto.

Abri o pacote e dentro dele havia uma caixa de sapatos. Dentro dela minha antiga luva de beisebol, minha foto autografada de Todd Helton e duas bolas. Tudo isso era de minha infância junto com Joe, quando os dias eram mais claros, as pessoas mais bonitas e todo o resto ainda era um mistério.

Peguei uma das bolas na mão e a olhei com um sorriso bobo no rosto. As antigas paisagens de meu quieto bairro invadiram minha mente e até o cheiro das tortas de minha mãe pude sentir. Vi o vento balançando as grandes árvores no outono e me vi empurrando Wendy, meu primeiro amor, na gangorra de pneu em frente sua casa. Seu lindo sorriso naquele rostinho que olhava para trás em busca de meus olhos. Seu vestido rosa e seus cabelos cor de palha. Vi minha mãe no gramado ajudando minha irmã em seus primeiros passos. Seu sorriso acolhedor, com seu cabelo preso em um coque com alguns fios soltos, pouco antes de afundar meu rosto em sua barriga e suas roupas com cheiro de lavanda.

“Dezessete.”

Meu sorriso se apagou e a realidade voltou sem piedade e tomou todo meu pensamento de volta. Meu apartamento imundo e escuro. Meu emprego ridículo. Minha namorada na cama com aquele desgraçado do Jimmy. Aquele quadro.

Coloquei a bola de volta e prestes a me levantar vi algo estranho naquela caixa. O papelão embaixo da luva estava vermelho, um líquido pegajoso. O ar ficou pesado, a noite mais escura e mais silenciosa. Meus ossos estalaram quando movi meu braço, retirei as bolas, retirei a foto e lentamente retirei a luva. Ela ofereceu certa resistência, como se estivesse meio colada, mas no fim ela cedeu. Lá fora o vento uivava.

O choque provocou uma ânsia de vômito e meus olhos se arregalaram. Olhos. Dois olhos castanhos no fundo da caixa. Levantei-me num impulso e meu pé acertou a caixa, virando-a de cabeça para baixo.

Impossível. Impossível

Tomando coragem e apelando para a razão, lentamente me abaixei e coloquei minha mão na caixa. Respirando profundamente puxei-a de uma vez.

Não havia nada lá, apenas meu velho tapete verde. Meu coração estava disparado e respirei de alívio ao nada encontrar. Sorri de minha tolice.

Coloquei a caixa novamente no chão para juntar as coisas de novo e tudo retornou.

O fundo da caixa ainda estava com aquele líquido vermelho e pegajoso.

Acho que já estava na hora de concordar com Lucy, talvez eu estivesse de fato ficando louco. Caminhei até a cozinha e joguei a caixa no lixo, não havia mais nada a ser feito. Pensei em ligar para Joe, perguntar se ele havia feito aquilo, mas não parecia o tipo de coisa que ele faria.

Fui até o telefone. Talvez Lucy merecesse uma segunda chance, lavada em lágrimas ela se jogou aos meus pés e implorou por perdão. Ela havia sido boa para mim antes de toda aquela tragédia. Talvez valesse a pena perdoar.

Disquei seu número e enquanto esperava por sua voz botei meus olhos novamente no quadro.

- Alô?

- Oh, meu Deus...

- Mike, é você?

Larguei o fone e ele ficou lá, balançando-se desolado no fio como um relógio de hipnotizador.

Caminhei lentamente e a cada passo meu terror aumentava.

Os olhos da mulher no quadro não estavam mais lá, e ela não olhava mais para baixo. Olhava diretamente para mim com aquelas órbitas vazias, como se tivesse descoberto o espião por trás das moitas.

- Oh, meu Deus...

Do telefone ainda vinha uma voz fraca.

- Mike, Mike...

Corri até lá, tudo se passava em minha mente num ritmo alucinado.

- Lucy, você está ai? Lucy?!

A voz fria e ao mesmo tempo sexy que eu havia escutado antes falou novamente.

- Mike, o que acha de mim agora? O que acha de mim agora?

- Quem é você? O que quer de mim?

- Olhe para nós Mike, não gosta mais de mim?

Eu não precisava que ela dissesse quem era. Eu já sabia muito bem quem era.

O telefone ficou mudo e mudo fiquei a encarar aquele quadro maldito. A mulher não mais estava sentada, sequer estava vestida. Estava nua arrancando seus próprios cabelos num sorriso diabólico que eu não vira em lugar algum entre os vivos. Seu vestido não estava em lugar algum do quadro.

Um barulho se fez em meu quarto. Eu não sabia exatamente se queria ir lá para entender tudo aquilo ou simplesmente queria fugir dali e nunca mais voltar. Mas o destino declarou sua sentença.

Corri até meu quarto esperando encontrar o que quer que fosse e acabar com toda aquela situação irreal.

Não havia nada lá, o que não chegou a me surpreender. Na verdade não havia nada de errado, o quarto estava da mesma forma como deixei.

Era hora de dar o fora dali.

Prestes a sair do quarto me lembrei de algo que tinha feito antes. Suando e tremendo eu caminhei até a cama. Lentamente me abaixei.

Lá estava. O vestido da mulher.

Aquilo era a gota d’água. Eu sequer toquei naquele pano amaldiçoado, simplesmente saí correndo derrubando o que estivesse em meu caminho. Iria sair daquele ninho de loucura, procuraria ajuda e nunca mais passaria por tanto medo assim.

O caminho até a sala foi rápido, mas quando cheguei lá vi algo que gelou minha alma, e naquele momento eu soube que não haveria escapatória.

Todas as janelas haviam desaparecido, assim como a porta. No lugar delas uma parede branca como se fosse nova exibia-se em triunfo. Lágrimas vieram a meus olhos. Não era justo eu morrer louco, não depois de tudo que vi, tudo que pude ter e todos que um dia conheci.

A paisagem no quadro estava mudada. Alguns pedaços da casa ao fundo haviam desaparecido sem que fosse difícil imaginar seu paradeiro. Todas as partes que não estavam mais em minha casa estavam apoiados nas árvores ou simplesmente largados no chão perto na mulher que uma vez eu admirei com tanta avidez. Sua pele estava transformada em algo pútrido, como um cadáver velho. Ela estava de pé, com as mãos na cintura, sorrindo de escárnio, observando-me calmamente.

Olhando com mais atenção percebi que algo mais faltava na imagem.

A chama que estivera na janela da casa ao fundo não estava mais.

Atrás de mim o cheiro de fumaça já havia tomado todo o lugar, assim como as chamas. Cortinas, minha poltrona, a televisão, meu quarto e todo o resto queimavam sem um lamento sequer.

O fogo começava a tomar o colchão próximo a mim, e antes que derretesse a imagem de minha mãe e irmã eu a peguei.

Troquei os quadros de lugar, não antes de perceber que a mulher defunta não estava mais lá na tela.

Um calor infernal já queimava minhas costas e faltava pouco para que eu desmaiasse devido a fumaça. Senti um toque em meu ombro, mas já sabia muito bem que era.

- E então Mike, você já sabe o que estava escrito no chão a meus pés?

Eu tapei meus ouvidos para aquela voz do demônio, mas ainda pude ouvir sua risada abafada.

A parede começou a se quebrar, formando letras. Mantive meu olhar na foto a minha frente. Um pedaço da realidade naquele quarto de loucura. Mas e se eu não estivesse louco?

Em pouco tempo meu corpo tombou, intoxicado e mesmo sob o prisma de minhas lágrimas eu pude ler o que estava na parede, antes que eu fosse dali para o escuro infinito.

“... o abismo olha para você.”