Olho Mágico - CLTS 07
 
 
          O carro cruzou o pórtico da cidadezinha. No tronco partido que o sombreava, uma ave-fantasma se camuflava. Quase invisível, estátua de pedra. Perfeita imobilidade, despercebida, de olho para a lua. Então, ouvi o canto bruxuleante. Hu-hu-hu, u–ru– tau, lamentava a boca rasgada.  
 
            As centenas de tons das casas tornaram-se uma negritude só. A cidade se mostrava densa, até primitiva; muito diferente da versão diurna a que me acostumara. Era como se tivessem puxado ali uma cortina. Os faróis apontavam para a rua de paralelepípedos (Não era asfalto, agora?) e, em cada sacolejo, reflexos vermelhos cintilavam, um brilho tenebroso, que se refletia no olhar do pássaro solitário.
 
           — Dormi toda a viagem, Jota? Não me lembro de nada — minha voz saiu estranha. E, mais estranho ainda: ele não me respondeu. Não teria me ouvido?
     
             — Por que parou aqui? — ele, calado, virou-se para mim e eu estremeci. Olhos vazios nas faces cadavéricas, cabelos ralos e raiva na expressão. Parecia acometido por uma ira profunda e irremediável, como se tivessem lhe absorvido toda a vitalidade. Era como se carregasse um fardo insuportável. Espremi os olhos com força, na tentativa de expulsar aquela visão. E resolveu. Quando os abri, vi apenas o mesmo homem, que com um gesto rude me mandava descer.
 
            — Não to-toma mais con-conta de mim? — gaguejei. Era como se Jota soubesse tudo, mas nada falava. Notei um sorrisinho sarcástico no seu rosto.
 
            Com um sentimento de impotência, segui a melodia queixosa que vinha da rua.  O motorista sinalizava irredutível e eu desci do Focus batendo a porta com força, ao mesmo tempo que ele também descia.
 
                  — Vou dormir aqui? — ele teria tempo para inventar uma explicação? Somente me encarava de um jeito macabro.  Deu um passo em minha direção, tentando firmar as pernas. Acuava-me...
 
                   — Não. Você tem muito o que ver. O tempo é pouco... — ouvi e entendi. Só não percebi os movimentos da boca, quando ele levantou o rosto enfeitado por um hematoma entre olho e testa. O frio era áspero e torturante.
 
 
               Meu corpo fraquejou. Foi então que, avistei algo pavoroso e me dei conta de que havia ido longe demais. Por que voltar àquele lugar, depois de tanto tempo? Um facho de luz, como se passasse através de um buraco estreito num papelão, refletia-se em várias arestas e anéis escuros, refratando a luz de maneira inesperada, mostrava-me, uma carcaça vil que se revolvia na calçada, entre vermes e dejetos. Estava com a cabeça enfiada em uma poça da própria saliva. Olhos vidrados, bile escorria dos lábios pálidos. Vermes, baratas, ratos o rodeavam, compondo um nojento quadro. Eu tinha medo de perguntar sobre aquele abismo, tinha medo de confirmar que aquela segunda ruptura com a lógica era verdade e não um sonho extraordinariamente real, como preferia acreditar.
 
               Corri para a casa. Quando tentei entrar, senti que algo me impedia, puxando-me de volta. Com isso, metade de meu corpo ficou paralisado, doía como se fosse estourar. A fraca luz da lua e o som plangente que entrava pela fresta meio aberta é que me trazia aquela dor, um cansaço avassalador no corpo e um vazio na alma. Lutei para me mover naquele caos. Algo fazia peso retendo-me. Assustei-me e, na agitação, bati a cabeça no portal, quando ouvi a risada estridente de Jota. Lá fora, ele, trazia outra faceta: agora, o rosto cheio de cicatrizes, parte de uma das orelhas faltava e filetes de sangue escorriam para o tronco. Não havia notado, ainda, que ele tinha as roupas rasgadas, encardidas...
 
             Meus olhos estudaram o espaço, um tanto ansiosos, um tanto frustrados por antecipação. Tudo igual e tudo diferente, como se olhasse para dentro através de um olho mágico. De início, senti a sensação de despertar. Em seguida, o torpor impreciso do adormecimento. Fui me dominando e entrei para a sala de paredes cinzas, cubículo abafado e a única coisa que estava ali era uma televisão de tubo estática, com ruído e chiado constante. Não iluminava nada, senão a parede e, vez ou outra, lançava sombras na superfície atrás de mim. A noção de tempo se distorcia, a percepção era péssima. Havia um cheiro horrível, pior do que o gosto de vômito na minha boca e aquele canto, lá fora, dolorido, incessante. Ar mofado. Nem um beijo de lábios frios ou soluços para me receber no lar?
 
 
            Sombras fantasmagóricas ocupavam o corredor. Atravessei-o, sob abalo de carga indescritível. A primeira porta se abriu. Surpreendi-me com as diferenças do cômodo. Quando o conheci, quando morei naquela casa, aquele era um quarto de menina. Era algo além da cor suave das paredes e do rodapé branco salpicado de motivos celestes; além das cortinas delicadas, do armário branco como os rodapés e a escrivaninha ao lado da janela. Além das bonecas e brinquedos coloridos, além do especial perfume que emanava. O que fazia aquele quarto ser de menina era um brilho, uma luminescência que parecia pairar em pleno ar, tomando conta do ambiente, ressaltando os contornos, banhando tudo em uma meia-luz.

               Então vi a cena. Completa incredulidade: eu-menina escrevia no diário, concentrada. A garota imaginava coisas nas silhuetas criadas pelas sombras das cortinas projetadas nas paredes. Pela manhã, quando as janelas eram abertas, as cobertas descobriam o sono infantil. Aquele brilho, aquela luminescência, era o que faltava. O quarto havia perdido aquela pureza que fazia a própria inocência ser inocente. Revirei cada centímetro daquele quarto, em busca de mistérios ocultos, passagens secretas. Talvez encontrasse o tesouro escondido que eu própria procurava.  
 
                   Num piscar de olhos, voltava para o inferno, eu-mulher, sozinha, suspirei, com pesar. A mente divagou por instantes; a percepção da perda retornou. Um clima úmido de sofrimento me questionava, se aquilo era real ou não. E, se não fosse real, de onde meu cérebro teria tirado tantos detalhes?
    
               Nervosa e amaldiçoando-me por estar ali, voltei para o corredor como um personagem de desenho animado, esmagada por um rolo compressor. Foi quando ouvi um barulho ruim, arrastado e pesado, um tanto asfixiante. A porta do amplo aposento foi aberta rapidamente e uma luz forte irrompeu. Meus olhos doeram por um momento. Eu demorei para começar a perceber os pormenores, algo impedia a luz de iluminar o resto do quarto, o que me fazia sentir pior.
 
                Notei, pouco tempo depois, que se delineava uma figura alta, encurvada. Jota, na verdade. Eu olhei nos olhos dele e eles olharam de volta. Estava com as costas arqueadas um pouco e os joelhos dobrados, as mãos peludas tinham dedos longos escorridos e com a direita levantava um revólver e uma corda que ele balançava constante, pendendo-a. O pior de tudo era a cara grande, redonda e larga, pálida. Eu via os olhos, vidrados e castanhos, mortos, rodando de um lado para outro, sem piscar. Ele me olhava, encarava-me no fundo da alma. Eu deveria tê-lo enfrentado ou saído, mas não conseguia, estava paralisada.
 
 
               No canto do quarto, abraçando as pernas contra o peito, estava minha mãe, entre tremores e espasmos. A única coisa que a separava da saída iluminada era ele. Deveria ter ido até ela, mas congelava-me o simples pensamento de me aproximar um passo que fosse da terrível escuridão. Um gosto azedo na boca.
 
              Pressentia que a situação era peculiar . Estava dentro de um poço colossal de maldade, que, de alguma forma eu sabia, ocultava-me segredos.  A esse medo, somou-se o mais brutal desespero, quando vi outra mulher sendo atraída para as trevas, como um inseto atraído pela luz.  Delgada, insubstancial, seminua. Esperava algo de mim.
 
                — Ah, sinto muito, não posso… — sacudi a cabeça.
 
 ***

               Mamãe chegara mais cedo do serviço. Deparou com o bloco compacto suando rítmico, no seu leito conjugal. Ele descobrira uma nova beleza, impetuoso, em êxtase. Pego em flagrante.
 
              — Ela não é nada para mim. Amo é você. Dou um fim nisto já, já! — justificou-se, ergueu-se rápido, caminhou até a esposa, quis abraçá-la. No ímpeto de empurrar o traidor, ela caiu.  
 
            Jota voltou-se para a amante, com pés leves, pernas longas, passos largos, caminhando como um lagarto sobre as águas. A mulher abrasava-se inquieta, na cama. Ocre como a lama. Vasta cabeleira desgrenhada. Lábios vermelhos. A corda apertou o pescoço, o pulmão ainda inflava. O homem ergueu o pesado cinzeiro para um golpe rápido na lateral esquerda da cabeça. Pronto, nada mais a palpitar. Geleia orgânica. O cheiro pungente dos próprios líquidos e os mosquitos a sobrevoar. As paredes do quarto ficaram silenciadas. A mundana esmagada, pisada, em suas carnes. O homem sentiu o ombro. Ensaiou um alongamento e deu um bocejo.  O canto incessante da ave enigmática me provocava espanto e piedade...
 
            Inundada de suores, só pude chorar e desejar que tudo acabasse logo. Mas não acabou. O bruto voltou-se para a mamãe. Pôs, em suas mãos, a arma que ergueu até a boca. O que eu poderia fazer? Meus braços finos, galhos secos, esfacelariam ao simples toque. Não poderia puxá-la para fora, não poderia salvá-la. Se ela ficasse em silêncio, se prendesse a respiração, se não tivesse vontades... A mão envolta em plástico forçou o gatilho. Sei que a morte não lhe trouxe alívio, pois, agora, sua alma está sendo levada ao abismo depois do infinito. Segui aqueles traços, os olhos amendoados, com uma iminência íntima.

 
***
 
           Poderia gritar, que ninguém ouviria. Arvoredo imóvel, pássaro em arrepio. Mãe-da-lua cantava alto demais. Poderia tentar escutar o que dizia; de repente seria de alguma ajuda. Mas, mesmo assim, percebi o que acontecia ali. O sangue seco no piso era a prova do ataque.
 
             Comecei a gritar e saí correndo, quebrando cadeiras, ferindo as pernas. Minha angústia estalava sob meus passos que não se retiravam para outro lugar, mas para algum tempo, onde a vida renascia e tomava forma. Estava na penumbra do caminho das mágicas. O mundo insuspeito dos transes, onde poderia me perder por espaços ilimitados. Os receios se misturavam, sem sustos.
 
                   O pássaro, na árvore que adornava o portal, levantou a cabeça chata até a cauda tocar o tronco. Seus sons indistinguíveis ressoavam na escuridão.  Agora, podia dormir, totalmente seguro; calar o grito pavoroso.

 
                  Foi quando senti um tranco na nuca, como se alguém me puxasse pelo cabelo e comecei a, literalmente, ser tragada de volta para o corpo físico. Desnorteada, buscava oxigênio como se tivesse acabado de escapar de um naufrágio, quando me recuperei minimamente e consegui voltar a raciocinar.
 
 
                      — Bem, sei que ainda está fraca, meio assustada para reviver um pesadelo, mas há muitas novidades relacionadas a sua família. Seu pai fez uma confissão antes de morrer. Você viajava com ele para sua cidade natal. Lembra que o carro capotou? — Com a voz rouca meu marido ia me ajudando a reintegrar à vida. Olhei para ele e, de forma arrastada e gutural, veio a resposta:
 
              — Não precisa dizer nada. Eu vi tudo — sentia a natureza abraçar-me. O frio da noite se convertia num calor úmido. — Nunca aceitei que minha mãe tivesse me abandonado. Sei a verdade agora. Jota matou a ficante e depois a esposa, que, sem querer, testemunhou o caso amoroso e o crime. Então simulou o suicídio. Ficou por mais de vinte anos impune. O instinto me dizia alguma coisa, convivia com ele, mas o temia, não o queria próximo de nossos filhos... Vulnerável às tentações das paixões desonestas... Não podia chamá-lo pai. Bateu com a confissão do velho?
 
            — É. Perdido, ele se deu alguns instantes para se repreender pelos erros cometidos. Entendo… Um fim tão imprevisível, tão antinatural — meu companheiro disse, dispensando mais detalhes.
 
          — De algum ponto, no fundo dele, surgiu uma ânsia primitiva. Pensou que eu morreria também e buscou meu espírito para ver o passado.
 
         — Mas, como sabe tudo? Está desacordada a noite toda, desde que foram resgatados na estrada.
 
         — Vamos dizer que, lá ao longe, o piado de uma ave fantástica me guiou. Provavelmente, mesclado à voz da mãe, ainda que estivesse morta… Tive a oportunidade de ver as coisas em outra dimensão, na totalidade consciente e inconsciente. Não se trata de ingenuidade: foi uma forma diversa de prover explicações e sentir que existe, entre os fatos, uma relação outra de causa e efeito. A jornada termina...


 
“Urutau, que tristeza a sua,
por querer, por amar a lua...
 Urutau, quanta gente existe,
 que também é triste...
Urutau chorou, chorou...”


 
 
 
Tema: Dimensões paralelas