O Macabro Caso de Jorge Monteiro

“Vê! É revelado por Aiwass o ministro de Hoor-paar-kraat!”

Liber AL vel LEGIS I:7

Vocês realmente parecem não acreditar em nada do que falo, ou sequer fazem o mínimo esforço para tal. Já perdi a conta nas inúmeras vezes em que expliquei o tal ocorrido para vocês e seu detetive, e toda vez que sou obrigado a repetir os malditos detalhes sinto meu corpo todo gelar. Aquilo que tirou a vida de Jorge Monteiro não era humano! Então, se nada do que lhes falei agora não serve para os fins de investigação, creio que me condenarem à forca pela morte brutal do homem será a primeira coisa que farão por falta de provas. Porém, digo mais uma vez: mandarão para a cadeira elétrica um homem inocente.

Como eu disse antes, Jorge não parecia ser alguém com tantos segredos medonhos para esconder. Apesar de não conhecê-lo tão profundamente como eu achava que conhecia, nós éramos colegas desde a época da faculdade e trocamos algumas poucas cartas nesse meio tempo. Quando ele me escreveu informando que estava retornando para esta cidade, nós nos encontramos umas duas vezes para tomar umas cervejas e colocar a conversa em dia. Ele estava bastante diferente fisicamente comparado a última vez que nos vimos, pois tinha deixado o bigode crescer, vestia roupas de grife e tinha adquirido o hábito de fumar charuto. Os tempos pareciam ter sido bons para ele depois dos tempos de faculdade. Era como estar na presença de um aristocrata.

Eu já tinha ciência de que ele possuía uma curiosidade por ocultismo quando mais jovem, e isso deve ter ficado bastante claro quando vocês entraram na casa dele hoje pela manhã. Porém, eu nunca tinha conversado sobre essas coisas com ele naquela época porque nunca me senti à vontade com este tipo de assunto.

Próximo às onze horas da noite de ontem, o meu telefone tocou. Era o Jorge. Até aquele momento eu já estava dormindo por conta do meu trabalho na universidade, que começa às seis horas da manhã em ponto. Mesmo eu informando-lhe sobre esse detalhe pertinente, insistiu para que eu me encontrasse com ele o mais rápido possível em sua casa. Obviamente fiquei sem entender toda aquela situação repentina e sem nenhum nexo, assim como vocês também ficaram em todas as vezes que lhes expliquei esta mesma história. Mas eu digo e repito: ele era meu amigo; e, como imaginei que fosse uma situação bastante importante para que ele me importunasse em um horário tão inconveniente como aquele, simplesmente vesti as minhas roupas, peguei a bicicleta e fui direto até a casa dele. Acredito que vocês também fariam o mesmo para ajudar algum amigo ou parente – mas digo agora com toda a sinceridade que há em mim que me arrependo infinitamente de tê-lo feito.

Finalmente chegando em sua casa após cerca de uns quinze a vinte minutos, deparo-me com um Jorge bastante inquieto, quase como se estivesse fora de si. O homem estava uma pilha de nervos. Quando ele me chamou e eu adentrei a sua residência, de cara deparei-me com todo aquele cenário sepulcral – vocês também devem ter percebido que o odor de mofo daquele lugar era aterrador e que quase não dava para enxergar a cor daquelas paredes de tantas estátuas que decoravam aquele recinto satânico. Haviam todas aquelas máscaras tribais, as imagens pútridas de santos sem nome, as diversas inscrições em línguas há muito esquecidas nas paredes, os incontáveis livros de inspiração demoníaca nas estantes e também aquelas medonhas figuras humanoides retorcidas – quase como se tivessem sido queimadas a altas temperaturas e retiradas do fogo apenas quando ficassem totalmente irreconhecíveis. Talvez representassem todos os antigos demônios que assolaram este mundo nos milênios imemoriais, não sei. Só sei que, para mim, existia um sentimento terrivelmente opressor naquele lugar; e que me dava arrepios. Jorge logo pediu-me para sentar em um sofá e informou que precisava muito do meu auxílio naquele momento. Lembro de não ter conseguido sequer respondê-lo de forma inteligível, pois aquela situação toda tinha me deixado bastante confuso; logo sentou-se ao meu lado e então começou a falar todas aquelas coisas.

Embora estando visivelmente alterado, foi friamente direto em suas palavras. Em resumo, explicou-me que tinha estudado muito nos últimos dois anos sobre a história de um livro proibido escrito há algumas décadas por um sacerdote no Egito. Segundo ele, o tal livro foi psicografado sob as orientações de uma das entidades que há vários milênios caminhavam sobre a Terra – Aiwass, o filho de Nut. Tudo o que foi escrito em suas folhas ainda hoje é um mistério absoluto, mas haviam indícios de que o conteúdo englobasse infinitas formas para conectar-se com estas tais entidades, e talvez até com outras civilizações. Em uma das suas viagens de pesquisa, Jorge finalmente conseguiu cópias de algumas das suas páginas e obteve êxito em traduzir parte dos textos que estavam contidos nelas. Confirmou-se que realmente eram rituais para fazer contato com seres ancestrais específicos, que os cristãos praguejavam como “demônios” desde os primórdios dos tempos.

Na hora, achei aquilo tudo uma terrível loucura e protestei o motivo dele estar revelando-me toda aquela história. Era simplesmente a situação mais insana que eu já havia presenciado na minha vida até aquele momento. Ele hesitou por alguns instantes, quase como se estivesse esperando o momento certo para falar; e sabem os céus o quanto aquele silêncio foi-me perturbador.

Quando finalmente pôs-se a interagir novamente, contou-me que estava planejando fazer contato com uma entidade naquela noite. Ele se confinaria durante algum tempo no quarto de hóspedes enquanto eu ficaria do lado de fora com um caderno e caneta em mãos anotando tudo o que ele dissesse. Todavia, os detalhes do ritual ele não ousou me contar, e talvez jamais saberei o que exatamente ele fez dentro daquele cômodo – e admito perante vocês que, no fundo, prefiro que continue assim. Nas palavras dele, eu era o único ser humano que ele confiava o bastante para poder transcrever todas as coisas que ele falaria durante o encontro com a entidade milenar. Como Jorge chegou a esta conclusão precipitada para tal afirmação, é algo tão desprovido de sentido para mim quanto todas aquelas coisas que eu ouvi até aquele momento. Adianto que, dos diálogos que se sucederam dali em diante, eu não me recordo muito bem; e lhes juro por tudo o que é mais sagrado neste mundo que não sei como fui convencido por aquele homem mentalmente perturbado a fazer o que fiz.

Depois de ter a aquiescência absoluta de ter-me como comparsa em sua busca, deu-me o caderno e a caneta. Fomos em direção ao cômodo onde o evento macabro tomaria início e, seguindo sua indicação, pus me próximo a cadeira que encontrava-se defronte à porta do quarto. Agradeceu-me pela ajuda com um enorme sorriso em seu rosto, apertou a minha mão e finalmente trancou-se lá dentro. Foi a última vez que o vi com vida.

Sentei-me e, após alguns poucos minutos, o som nauseante do silêncio era a única coisa que prevalecia naquela propriedade. Evitei olhar para todas aquelas alegorias fantasmagóricas que preenchiam aquela casa, pois o simples vislumbre já me exalava medo completo jamais sentido. Todavia, a luz da lua cheia que atingia tais estátuas projetavam diante de mim sombras tão amorfas quanto as formas medonhas daquelas coisas, tal qual um bacanal blasfemo de demônios deformados. A ansiedade que estava sentindo estava me fazendo refletir sobre a situação idiota em que eu estava protagonizando; e realmente não havia nada que me impedisse de ir embora dali sem precisar dar alguma satisfação. Logo então levantei-me da cadeira sem fazer barulho algum e patinei por alguns poucos metros antes de ouvir o berro mais horripilante que já ouvi vindo de um ser humano:

“Que merda é essa!? SOCORRO!”

Minhas pernas falharam, e creio eu que qualquer outra pessoa em meu lugar teria enlouquecido na hora. Senti meu coração explodir dentro de minha caixa torácica e minha visão ficar turva por alguns poucos segundos. Mesmo embargado pelo medo e pelo desespero, minha única reação foi correr em direção àquela porta em minha frente e tentar abri-la a todo custo. Não sei por quantos séculos infindáveis permaneci tentando arrombá-la para ajudá-lo. Enquanto tentava adentrar o quarto, palavras desconhecidas eram profanadas lá de dentro pela voz do outro ser que se encontrava junto de meu amigo, e que se misturava com seus gritos agonizantes de sofrimento.

Caros senhores, o que aconteceu a seguir nunca sequer conseguirei explicar completamente com palavras para vocês. O que pouco consegui discernir naquela situação inacreditável em que me encontrava é que, em meio aos horrendos gritos de Jorge, o ser desprovido de forma lógica que se encontrava no quarto com ele continuava a entoar aquele dialeto agourento que ouvi antes. Som algum poderia comparar-se com aquele retumbar diabólico que ressoava naquele ambiente, fazendo meu corpo todo congelar-se automaticamente de horror ancestral. Antes mesmo de conseguir pensar em fechar as órbitas dos olhos, vi meu amigo retorcer-se completamente várias e várias vezes no ar em posições impossíveis para um ser humano fazê-lo e sobreviver. Os sons de seus gritos transformaram-se em risadas histéricas; e que logo deram lugar para o nauseante barulho dos seus ossos e músculos estraçalhando-se, no cúmulo de tal terror doentio. Sinto vontade até de chorar quando detalho isto!

Praguejei aquela situação e forcei minhas pernas desesperadamente a correrem para a porta da sala, em um sentimento misto de abominação e incredulidade que ser humano algum talvez jamais tenha experienciado antes – e, se experimentou, não manteve a sanidade muito tempo depois para compartilhá-lo com outrem. Ainda cheguei a ouvir o baque úmido no solo ocasionado pelo cadáver desfigurado de Jorge antes de abandonar aquela casa. Antes mesmo deste momento, o populacho instintivamente já havia acionado as autoridades para que pudessem intervir na situação, mas infelizmente compareceram apenas para apanhar o réu errado, como podem ver.

Digo-lhes pela última vez que o culpado da tal atrocidade macabra para com Jorge Monteiro estará para sempre à solta, a monstruosidade estelar desencarnada que não pertence mais a este mundo, mas que há muito assolou os quatro cantos da Terra – milênios antes mesmo da sopa primordial ser concebida. Agora encontro-me em uma situação tão inacreditável quanto o relato que lhes foi conduzido por mim; mas admito que talvez na morte eu finalmente encontre a paz e o amparo que a minha consciência necessita agora para esquecer para sempre toda a danação diabólica que tive o desprazer de presenciar na noite passada. Que a morte seja misericordiosa comigo!