Caminho de condenado

Estava escuro, estava silencioso. Os cachorros estavam calados, os carros estavam nas garagens e as pessoas se encolhiam em suas camas pensando no por que de tal sensação que sentiam em seus peitos, como se as sombras tivessem penetrados tão fundo em suas paredes que a luz nunca mais poderia retornar para salvá-los. Aqueles que podiam procuravam por seus parceiros na cama, em busca de um abraço acolhedor e da certeza de ainda estarem vivos.

Em um ponto da cidade um homem se encontrava curvado perante um muro, com uma expressão de sofrimento enquanto despejava na calçada tudo o que comera naquele dia em forma de jatos, ora verdes, ora amarelos. Seu abdômen se contraía e o deixava sem respirar por tanto tempo que por alguns segundos pensou que morreria ali mesmo, estendido naquela calçada suja para ser comido por ratos e outras tantas criaturas asquerosas. Ao terminar de expelir o conteúdo indigerível de seu estômago estava tão cansado que se largou sob a própria poça que havia criado ali. Não havia mais nada para vomitar e estava cansado demais para se erguer. Colocou a mão por dentro de seu paletó e sentiu algo pegajoso. Aquele homem sangrava.

Seus cabelos eram escuros com fios grisalhos acima da orelha. Tinha um grande nariz torto e uma pequena boca com alguns dentes tortos. Suas bochechas lisas por um barbear recente e os olhos injetados por razões desconhecidas.

Depois de alguns minutos reuniu forças para se levantar e caminhou com uma mão na parede e outra no ferimento próximo ao umbigo. As pessoas passavam e olhavam incomodadas, pois apesar de sua aparência deplorável, suas roupas eram caras. Logo que encontrou um beco escuro entrou e sentou-se no chão novamente. Ele tremia e seu ferimento doía terrivelmente. Olhou para o lado e viu que havia um casal a alguns metros de distância, o homem sorria e tentava beijar a mulher, que também sorria e evitava suas tentativas no último momento. Durante toda sua vida viu muito daquilo, e ele sabia que uma hora a mulher cederia e apenas ficou lá olhando, despercebido na escuridão, obrigando-se a esquecer de todo o resto por um minuto e focando-se naquele simples acontecimento do cotidiano.

Mas estava cansado, e sua visão começou a oscilar. Por um instante tudo ficava escuro, e antes que ele percebesse que estava prestes a desmaiar tudo ficava claro novamente. Em determinado ponto apagou por alguns segundos, e quando abriu os olhos novamente viu que o casal andava apressadamente, o homem puxando a mulher firmemente pelo pulso. Três homens de ternos pretos caminhavam da outra extremidade do beco, seus olhos estavam engolidos pelas sombras daquelas luzes artificiais amarelas. Era hora de partir. Moveu seu corpo para voltar para as ruas antes de olhar para onde ia, mas assim que o fez viu mais três homens parados a sua frente a menos de um metro. Seus olhos também estavam invisíveis. Estava cercado.

Dos três que estavam mais próximos, o do meio se movimentou, dando alguns passos a frente. Seu terno era vinho e ele não usava gravata. Seus sapatos ressoavam altos demais naquele pequeno espaço de ar estagnado. O homem no chão tinha os olhos selvagens de um animal encurralado.

- Boa noite, Sr. Robinson. Pronto para conversarmos? – Disse o homem de terno vinho.

Aquele sorriso psicopata acompanhado daquela voz doce. O cheiro de perfume caro misturado ao cheiro de lixo do beco. Tudo isso era captado por Robinson, mas seu cérebro simplesmente ignorava. Não havia tempo para pensar em contradições.

Sua mão foi lentamente buscando o objeto que tinha na cintura.

- Oh, não, não, Sr. Robinson. Isso não seria inteligente de sua parte.

Ouviu vários cliques vindos dos outros homens em ternos pretos e sua mão estacou.

- Estamos entre cavalheiros, Sr. Robinson. Não há necessidade de hostilidade.

Ele se agachou e havia uma expressão da mais genuína piedade que Robinson já vira em toda sua vida.

- Oh, vejo que está sangrando. Esse mundo está terrível nos dias de hoje! Como isso aconteceu? Algum assalto? Oh, mas isso deve doer muito!

Robinson não disse nada. Apesar da expressão de piedade do homem de terno vinho as sombras de alguma forma modelavam seu rosto de outra forma, deixando-o com um sorriso digno do Diabo. Ele levou sua mão a um de seus bolsos internos e Robinson tremeu discretamente. Quando ela apareceu novamente segurava um maço de cigarros.

- Não se importa se eu fumar, não é mesmo, Sr. Robinson?

Ele tirou um isqueiro dourado de outro bolso e acendeu o cigarro.

- Por favor, Sr. Wright. Mais um dia, apenas um dia! – Robinson disse com a voz meio rouca, num sussurro.

Wright nada falou, continuou agachado, sorrindo, soprando baforadas em direção a Robinson.

- Sr. Wright, por favor, por favor...

- Muito bem.

Wright se levantou e parecia muito bem humorado.

- Eu entendo, Sr. Robinson. Realmente entendo sua situação. Veja bem, sou um homem experiente, digamos assim, e já vi muitas coisas no ramo que trabalho. Coisas realmente horríveis, que fariam uma pessoa perder o sono por semanas. Mas eu gosto de você, você me parece um sujeito honesto. Por isso vou abrir uma exceção e ajudá-lo.

Robinson suspirou de alívio. Seu corpo relaxou e seu rosto se desanuviou.

- Obrigado, Sr. Wright, muito obrig...

- Eu realmente entendo que você não queira conversar comigo, Robinson. Não é fácil falar quando se está sangrando desse jeito, o trauma que se fica de um assalto realmente é grande.

Os olhos de Robinson se arregalaram novamente. Ele tentou se mover em direção a Wright mas não conseguiu.

- Não! Não! Por favor!

- Eu estou aqui para tranqüilizá-lo, meu amigo. Não precisa se preocupar, suas dívidas não são mais suas. O Chefe ouviu várias coisas boas sobre sua mulher e resolveu conhecê-la pessoalmente. Explicará toda a situação e eles decidirão juntos o que fazer.

Wright deu alguns passos para a saída do beco e voltou-se.

- Por isso, Sr. Robinson, vou fazer-lhe o favor de livrá-lo dessa dor e peço que fique tranqüilo, pois seus problemas acabaram.

Robinson chorava ruidosamente. Lágrimas cristalinas se misturavam ao muco que saía de seu nariz. Estendeu a mão em direção ao homem de terno vinho.

- Por favor! Wright! Eu pagarei, me dê apenas um dia!

Um dos homens de terno preto se adiantou e parou na frente de Robinson. Ergueu o braço e tinha uma pistola com um silenciador na mão.

Naquele momento Robinson abaixou a cabeça em meio a solavancos por conta de seus soluços desolados. Em seu caminho encontrara uma barreira instransponível colocada lá por ele mesmo, e agora deixaria esse mundo para trás e a falta de respostas sobre o que havia depois agia em sua mente como um gigantesco buraco, e nesse buraco Robinson se afogava e rebatia-se em busca de uma vã esperança que não tardaria a desaparecer com o resto de seu ser.

Robinson nunca fora um homem religioso: freqüentou a igreja até atingir a adolescência e ter condições de perceber que nada daquela ladainha fazia muito sentido. Grandes problemas começaram a surgir e ocupar sua mente e um caminho de sucessivas derrotas estava à espera. Mas ali, naqueles curtos segundos enquanto o buraco do silenciador crescia como a boca de um vulto gigantesco a engoli-lo ele obrigou-se a lembrar de suas antigas orações. Fechou seus olhos e lembrou-se do banco da velha igreja de seu bairro de classe média que agora era um gigantesco shopping cheio de uma realidade que parecia totalmente distante e praticamente inexistente. Seu pai estava ao seu lado, de olhos fechados e dizendo uma oração silenciosa, movendo apenas os lábios rodeados de pêlos negros e bem aparados. Sua mãe lia o folheto da missa e quando encontrou seu olhar sorriu o sorriso que o perturbaria em toda sua vida como um tesouro que talvez nunca mais fosse encontrado. Lembrou-se da pequena menina segurando um ursinho marrom que acenava do outro lado da Igreja, com olhinhos tão brilhantes que transformavam em pouco mais que um devaneio qualquer pensamento metafísico que qualquer desocupado pudesse um dia ter.

Sua breve lembrança se limitou a isso, mas a partir daí sentiu um aperto no peito, ao mesmo tempo em que sua mente parecia se expandir em todas as direções e subitamente compreender o quão incompreensível era tudo aquilo que o cercava. Um vazio o preencheu e novamente ele temeu. Não havia Deus algum. Não havia segredo algum, havia apenas fatos que não podiam ser compreendidos. O que aconteceria? Por favor... por favor!

Ao abrir os olhos, Robinson não sabia ao certo se suas reflexões haviam tomado muito tempo, mas logo viu que a cena continuava a mesma. O cano da arma o encarando friamente assim como o homem de olhos invisíveis que a segurava. O resto dos capangas sem qualquer expressão e Wright com apenas um sorrisinho discreto de canto de boca enquanto as brasas de seu cigarro caro brilhavam. Mas havia algo errado. Sobre o beco caía um silêncio tão profundo que parecia pesar toneladas. Nada de buzinas de carros seguindo seus rumos, nada de músicas abafadas de distantes boates e nada de conversas animadas ao longe. Nem mesmo o suave sussurrar do vento a caminhar pela cidade conferindo alento aos jovens amaldiçoados. Levou pouco tempo para perceber que nada se movia. Até onde seus olhos podiam ver o mundo havia parado, congelado em um único momento de milhões de expressões e sentimentos.

Sem que nada acontecesse Robinson começou a tentar se levantar, apoiando-se na parede de tijolos sujos e cinzentos e gemendo a cada pontada recebida de seu irritante e profundo ferimento. Quando conseguiu viu que agora a arma era apontada para algum lugar entre sua virilha e seus joelhos. Andou cuidadosamente de lado, como se a qualquer momento tudo pudesse voltar ao normal, e quando saiu da trajetória da bala estacou, olhando maravilhado aquilo tudo. Estaria louco? Estaria morto? Esticou lentamente o dedo indicador em direção a arma que o capanga corpulento carregava e quando fez contato sentiu apenas o frio metal. Nada de a imagem se partir em mil pedaços revelando a óbvia loucura de uma mente em frangalhos.

E então, prestes a tocar o rosto do capanga, Robinson ouviu passos vindos de alguma rua por perto e olhou para o lado assustado. Sentia seu coração batendo forte como se estivesse em sua garganta e o movimento que fez para buscar sua arma pareceu tão alto quanto uma granada explodindo num templo budista. Começou a suar frio por ter revelado sua posição a o que quer que fosse aquilo que estava caminhando. Um medo primitivo se apossou de seu coração e ele se perguntou o quanto a situação que estava poderia ser pior que a anterior. Sua mente de forma vaga já havia feito a conexão entre a imobilidade do tempo e o ser que caminhava em sua direção.

Inconscientemente encolhido e com os olhos úmidos Robinson esperou, e quando um vulto surgiu na extremidade do beco suas pernas perderam parte da força substituindo-a por uma incontrolável tremedeira aparentemente injustificada, pois o que vinha em sua direção era apenas um jovem de aparência comum e roupas comuns, sorridente como se tivesse dado o primeiro em beijo no amor de sua vida. Vinha com as mãos nos bolsos de seus jeans e caminhava sem pressa, usando apenas uma camisa azul sem qualquer detalhe especial. Quanto mais o rapaz se aproximava mais seu peito parecia pesar e se apertar, e apesar de sua compreensão limitada Robinson soube que ali estava algo muito diferente de qualquer coisa que já vira em toda sua vida, algo em outro patamar de existência. Era uma presença opressora, dominadora, possivelmente capaz de fazê-lo desaparecer com um estalar de dedos.

- Boa noite, Sr. Robinson. É uma bela noite, não é mesmo?

O rapaz tinha uma voz grossa e bela, assim como seus cabelos castanhos revoltos e a barba milimetricamente aparada.

- Quem... quem é você?

A voz do pobre Robinson saiu fraca, mas ele mal percebeu. Lutava contra uma vontade ferrenha de correr como um diabo para longe daquele beco.

- Ora, essa é sempre a pergunta. E minha resposta será categórica, pobre homem: isso não importa. Um mendigo não pergunta ao seu bem-feitor por um nome, mas apenas agradece e deixa que o outro siga seu caminho, e é isso que eu espero que você faça.

À medida que se pronunciava seu rosto de fechava tornando-se assustadoramente sério, assustadoramente mau. Ao final ele suspirou e sorriu:

- Desculpe-me, Sr. Robinson. Parece que me exaltei um pouco. Vamos começar novamente.

Ele caminhou em direção a uma pilha de lixo e tirou de lá um velho caixote, colocando-o no chão e sentando-se com suspiro.

- Estou aqui para ajudá-lo. As conversas à noite são muito, muito interessantes, e hoje você é a atração principal do circo, consegue acreditar nisso? Bem, talvez seja o tédio, já que mais nada interessante acontece nesse buraco, talvez seja a comicidade de sua situação e a humilhação da qual as criaturas ocultas estão a rir nesse momento.

“Mas eu não sou do tipo que ri da desgraça alheia, caro amigo, eu sou do tipo que acredita que todos os derrotados merecem uma segunda chance. E é por esse motivo que cá estamos agora, eu e você, tendo essa agradável conversa enquanto o mundo inteiro descansa um pouco dessa interminável teia de tragédias e pequenas intrigas em nome do grande Senhor.”

Robinson continuava congelado em seu silêncio assustado.

“Veja bem como são as coisas: você nasce por obra do Todo-Poderoso e vive sem pensar direito no que faz, acreditando nessa besteira que ouve todos os dias de que no fim tudo dá certo. Os sinais começam cedo: você vê seu amigo na escola ficando com a garota mais bonita, vê seu companheiro de trabalho conseguindo o melhor carro, sendo promovido e andando por esta terra como algum tipo de rei que esqueceu a coroa em casa. Enquanto isso você se deita em sua cama todos os dias, aquele santuário amaldiçoado, pensando em tudo que fez no seu dia, tudo o que disse para os outros, sem perceber que ninguém dá a mínima para isso, os guardiões ingênuos dessas memórias são apenas você mesmo e as sombras que o acariciam enquanto você se encolhe na cama. Seu travesseiro úmido e sua alma em pedaços, naquele fugaz momento que um ódio inigualável se inflama nas profundezas, cuspindo em sua cara o asco que você tem de você mesmo e de todo esse mar de podridão que é a sociedade.”

“É ai então que outra palavra surge em sua mente como uma placa luminosa de Las Vegas: ‘Justiça’. Onde mais essa palavra poderia existir senão em livros e hipocrisias do dia-a-dia? Ainda sim você formula perguntas: ‘o que eu poderia ter feito de errado para merecer isso? O que aquele homem vitorioso tem guardado em si que o diferencia de mim? Eu nunca fiz algo de errado, nunca inventei mentiras, nunca chutei um cachorro, nem nunca gritei com minha mãe. Nunca roubei, nunca matei, nunca blasfemei. E no que isso me transformou? Uma piada. Um exemplo de como não se proceder.”

- Esse é você Robinson, essa é a imagem que viaja pelo imaginário comum. Eu sei, eu vi. Você foi abandonado, você está sozinho.

Robinson escutava tudo com olhos muito abertos, como se hipnotizado. Aquele rapaz havia dito palavras certeiras, palavras que se transformaram em cenas perfeitas retratando a vida nojenta que tivera até hoje. Mas não havia apenas derrotas, ele tinha um bom emprego e era casado com uma boa mulher, tinha uma boa casa e um bom carro. Sua mente balbuciava sem parar, como se quisesse reforçar idéias não muito fixas. Ao dizer isso em voz alta a resposta do jovem foi rápida.

- Olhe para você mesmo, homem. Prestes a receber uma bala direto no crânio por conta de dívidas. O que esses homens fazem é praticamente roubar o chapéu de esmolas de um sem-teto. Tudo o que você um dia possuiu já foi tomado, e como não foi o suficiente eles agora tomarão sua vida. O que falar sobre sua mulher então, a boa e velha Silvia? Contarei apenas uma história, e sinta-se a vontade para conferir sua veracidade quando terminarmos por aqui.

“Você se lembra do verão passado, no qual contratou um jovem vizinho chamado Danny para cortar sua grama? Aquele jovem do ensino médio que precisava de dinheiro para comprar seu terno de formatura. Pois então, você se lembra que algum tempo depois sua amada esposa viajou com aquelas velhas murchas da igreja para ajudar alguns feridos na cidade vizinha por conta daquela terrível enchente? Caro amigo, ela de fato fez uma viagem, mas nenhum desabrigado ou necessitado viu o rosto de Silvia naquele dia, quem o viu foi o médico com diploma falsificado de uma clínica clandestina nas sujas periferias da cidade vizinha. Uma massa disforme vermelha sugada como sujeira por um aparelho pouco mais sofisticado que um aspirador de pó foi o que sobrou da sementinha que o jovem Danny plantara no âmago de sua íntegra esposa.”

Robinson encarava o chão com incredulidade. Aquilo não podia ser verdade, ele se recusava a acreditar. Mas ele se lembrava vagamente de que por um bom tempo naquele verão Silvia se recusou a fazer amor com ele e que Danny estranhamente largara o emprego sem motivo algum e sempre que encontrava Robinson na vizinhança passava com a cabeça baixa como se estivesse envergonhado. Teria mesmo ele visto isso ou era apenas sua mente pregando peças por conta de uma idéia implantada por aquele estranho homem?

- Eu não minto, Robinson, quem mente são aqueles missionários que batem à sua porta para dizer que Ele o ama. Ele está lá em cima, cuidando de seus próprios assuntos, e duvido que esteja preocupado com suas lágrimas e seu sofrimento. Desista, Robinson, largue esse fio de esperança o qual ninguém segura do outro lado. Ouça de uma vez e você poderá ser um deus por si mesmo. Você terá tudo nessa vida, ninguém poderá matá-lo. Você olhará seus inimigos de seu trono, rindo de seus olhos assustados enquanto pisa em seus corações. Eles pagarão por tudo que fizeram e a justiça finalmente prevalecerá.

O homem jovem interrompeu seu longo discurso já com a certeza que alcançara seu objetivo. Os olhos do de Robinson denunciavam sua desolação, por isso acrescentou essa discreta linha em sua fala:

- Você é livre para recusar minha ajuda, caro amigo, mas saiba que nunca a oferecerei outra vez. Escolha não me escutar, e eu nunca mais o escutarei.

Robinson ergueu o olhar e imperceptíveis risinhos ecoaram dos cantos escuros daquele lugar.

- O que você pede em troca?

O jovem sorriu.

- Bem, nada de mais. Eu apenas gosto de boas histórias e não quero que a sua termine agora, pois nessa noite ela é a mais promissora. A única coisa que você terá que fazer é se vingar, sua dívida deve ser paga em sangue. Chega de dor para você, eu garanto que você não mais conhecerá esse sentimento.

Dito isso o jovem se levantou e andou em direção ao final do beco.

- Tenha uma boa noite, Sr. Robinson. Teremos outro encontro muito brevemente.

Robinson encarava o chão, achando interessante um novo sentimento que inundava seu interior, algo como se estivesse ligeiramente bêbado, uma confiança e tranqüilidade sem bases racionais. Um pequeno sorriso se pronunciou em sua face castigada, ele tinha certeza que alcançaria seu objetivo. Ele faria o mundo se curvar, ele veria todos aqueles que o humilharam chorarem torrentes imundas em arrependimento.

Mas um certo temor ainda assombrava seu coração, as palavras daquele jovem não haviam sido muito claras, como funcionaria aquela espécie de contrato? O quanto ele sofreria por ter aceitado aquela oportunidade maldita e antinatural?

De repente Robinson percebeu que tudo voltara ao normal, os barulhos da noite estavam novamente varrendo o beco e tudo se movia como o esperado. Ele ouviu um clique, depois mais outro e um terceiro. Era o som da arma do capanga se recusando a cuspir a bala que seria a sentença de morte de Robinson. O homem truculento fez uma expressão de dúvida e mexeu de várias formas na arma, engatilhando-a novamente e apontando para Robinson, que não se movia e apenas o fitava com um sorriso no rosto.

- Oh Deus do céu, será que nem isso vocês idiotas conseguem fazer? – Praguejou Wright, levando a mão à cintura e tirando de lá uma pistola prateada muito grande e reluzente.

Robinson fez o mesmo, tirando sua pistola calibre 22, muito menos majestosa que a Desert Eagle de Wright, e fazendo mira para o capanga que ainda tentava ajeitar sua arma, pressionou levemente o gatilho e acertou um tiro em cheio na cabeça careca do pobre homem, espalhando pele, ossos e cérebro pelo sujo chão do beco. Enquanto isso Wright tentava fazer sua arma funcionar, mas da mesma forma ela se recusava a disparar. O jovem homem de azul já cumpria sua parte no trato. Os outros quatro capangas não puderam oferecer grande resistência com suas armas defeituosas e foram rapidamente eliminados por Robinson. Era hora da diversão.

Robinson caminhou lentamente e quando Wright ameaçou fugir ele atirou em sua perna direita, fazendo o homem tombar ruidosamente. Sua munição havia acabado, por isso se abaixou e pegou uma das pistolas do chão que não haviam funcionado antes. Apontou para a perna esquerda de Wright e pressionou o gatilho. Com um grande estrondo a arma disparou e fez um grande estrago, evidenciado pelos gritos desesperados do homem choroso no chão.

- Veja só, Wright, parece que a situação se inverteu, não é mesmo?

- Seu filho da puta, você não vai escapar dessa. Você será caçado pelo resto de sua vida miserável se me matar. Pense bem no que fará.

- Como é? Não consigo lhe escutar, Sr. Wright.

O homem agarrou o colarinho de Robinson.

- Por favor, não me mate. Por favor.

Robinson sentiu o hálito podre do homem e viu as lágrimas em seus olhos, e por um momento sentiu pena. Levantou-se lentamente, caminhou até a lateral do beco onde havia uma pilha de lixo e se agachou, ficando de costas para Wright.

- Hei, Robinson, o que está fazendo? Nós podemos fazer um acordo, eu tenho dinheiro, posso lhe dar o quanto quiser. Talvez até consiga falar com o chefe para que sua dívida seja perdoada. Vamos conversar, você tem muito mais a ganhar se me deixar vivo.

- O.K, Wright. Vamos fazer um acordo. – Disse Robinson enquanto revirava o lixo.

- Sim, Sim. Peça o que quiser e prometo que farei o melhor para conseguir o que deseja.

Alguns segundos se passaram sem que Robinson dissesse qualquer coisa.

- E então, Robinson, vamos conversar?

- Claro, claro. Espere apenas um minuto.

As pernas de Wright doíam terrivelmente e ele sentia a todo momento que estava prestes a desmaiar. Ninguém parecia ter ouvido os disparos no beco, e as pessoas que passavam não olhavam para seu interior. Ele pensou em gritar, mas sabia que isso apenas enfureceria o homem que tinha sua vida nas mãos.

Passados três minutos Robinson se levantou.

- Bem, acho que isso servirá.

Quando ele se virou Wright viu que segurava um pedaço de madeira com um prego na ponta. Seus olhos se arregalaram e ele começou a suar.

- Hei, Rob-Robinson, o que pr-pretende f-fazer com isso?

- Nada demais, companheiro. Apenas relaxe e aproveite o show.

Robinson caminhou e golpeou a cabeça de Wright com toda a força que conseguiu várias e várias vezes. Os gritos não duraram muito, mas o sangue jorrou até que Robinson caiu sentado, ofegante e livre de toda a frustração acumulada nos últimos meses.

Certa vez um homem disse que devemos tomar cuidado ao enfrentar monstros para não nos tornarmos como eles. Bem, alguém acabava de negligenciar esse bom conselho.

***

Alguns minutos depois Robinson caminhava por uma calçada de cimento quadriculado, ocupado em não pisar nas linhas. Cada bloco tinha o tamanho quase exato de seu pé, o que dificultava a tarefa. Seu espanto pelas mudanças ainda não havia passado, principalmente pela visão nebulosa – o melhor termo que encontrara para defini-la – que adquirira, como se pudesse enxergar por trás de todo e qualquer véu de suposta realidade e vislumbrar as entranhas da mais desoladora falta de sentido em amor, ódio, sociedade e aparência. Era como se saísse de si mesmo e logo sentia medo de esquecer sua meta e simplesmente vagar pelas ruas que mais pareciam esgotos e morrer por inanição. O mar tempestuoso que era sua mente há algumas horas atrás havia se acalmado, e agora finalmente era possível enxergar em sua superfície verdades que haviam passado despercebidas e memórias injustamente ignoradas por trazerem consigo resquícios da mais dolorosa melancolia. Lembrava-se dos tempos da faculdade, das pessoas que conhecera, dos amigos que tivera. Tudo perdido no imenso corredor do tempo, onde nunca se pode voltar atrás para se resgatar a felicidade esquecida em algum ponto da caminhada.

A seu redor todo tipo de sujeira e devassidão dignas das lágrimas do mais perverso demônio. Retratos da sociedade. Um homem sentado em um banco da praça, com a cabeça baixa tendo sua vida sugada pelas sombras de árvores que não encontram mais alegria para crescer. Uma prostituta de aparência ofensiva escurecendo a própria luz de sua alma imortal por ausência de ajuda num mundo onde se matam crianças e se constrói palácios para reis perversos. Uma senhora suja e de olhos doentes carregando um bebê choroso tão injustiçado pelo destino que os corvos gritam em desespero. Mas não há ninguém para escutar, estão todos em algum lugar ornamentando o local da própria queda com pilares de papel para algum ingênuo de tempos distantes acreditar que era daquilo que éramos feitos. Não importa o quanto de luz se use para disfarçar, ou o quanto de sombra se use para se esconder, somos apenas um amontoado de carne animada por podridão e medo, prontos para a qualquer momento ceifar o mais fraco e lamber os pés do mais forte.

- Olá, querido, procurando por uma noite de diversão?

Robinson ignorou a mulher loira de roupa vulgar, pois seus olhos eram assustadores, mais até que seu sorriso.

Olhar para frente era assustador, e cansado da vista de seus próprios pés o homem que sangrava olhou para o céu que também parecia sangrar. As luzes do circo de mesquinharias ofuscavam a limpidez do infinito de estrelas prateadas. Ele desejou do fundo do coração poder visualizar por uma última vez aquela única imagem que parecia de fato fazer jus à palavra “paraíso”, mas aparentemente nem todos seus desejos seriam atendidos.

Antes que pudesse se dar conta ele viu o gramado de sua casa, uma casa bonita, com duas cadeiras na varanda e uma bandeira vermelha, azul e branca ao lado da porta. Tipicamente sem atrativos, mas ainda sim agradável. Todas as luzes estavam acesas, com exceção do sótão, que protegendo coisas que ninguém mais gostaria de usar permanecia escuro como breu. Ele caminhou lentamente pelo gramado olhando vagamente para um pequeno gnomo que comprara no último verão, pois sua mulher o havia achado “fofo”, nas palavras dela. Oco como seu coração.

Subindo os degraus da varanda ele pôde escutar as vozes que vinham lá de dentro. Uma delas muito alta e grave, típica de homens espirituosos. Sua visão escureceu por um momento e uma gota de suor pingou de seu rosto. Escutou uma rápida risada de sua mulher e mais alguma outra voz que não reconheceu de imediato. Ainda não era possível saber do que falavam. Com uma mão apoiada no pilar de madeira ao lado do fim da escada ele parou por alguns segundos, ciente de sua condição precária e estranha ausência de dor naquele ferimento que não se cansava de sujar sua camisa de vermelho.

Quando sua mão encostou na maçaneta ele se assustou com tamanha frieza do metal. Uma sensação de fatalidade sussurrava em sua mente, mas não causava ansiedade ou qualquer tipo de medo. Seria o que deveria ser. Não havia muito para se perder, não havia nada para se ganhar. Com um ligeiro suspiro girou a maçaneta e com passos decididos adentrou seu velho santuário profanado pelo algoz trazido por seu próprio descuido.

- Oh, querido! O que aconteceu com você? – Disse Silvia se levantando enquanto Robinson trancava a porta e guardava a chave no bolso.

- Nada demais, apenas uma dupla de delinqüentes ambiciosos.

Silvia colocou as duas mãos na bochecha de Robinson, um ato carinhoso que um dia atrás pareceria verdadeiro. Seu perfume invadiu furiosamente as narinas de Robinson trazendo memórias de volta do cemitério para serem rapidamente caladas novamente. Ela usava o vestido de flores que ganhara de presente de seu marido no segundo ano de casamento. Linda como sempre. Olhos brilhantes capazes de fazer um sábio homem se perder. Ou um sábio adolescente.

- Você está machucado?

Por sobre o ombro de sua esposa Robinson viu quatro homens sentados nos dois sofás azuis de sua sala de estar. Na mesinha entre os sofás havia cinco xícaras e um bule ainda soltando fumaça. Dois homens de ternos pretos e rostos severos, um senhor idoso e careca com calça social branca e camisa preta que sem dúvida alguma tinha um olhar de incredulidade no rosto. No outro havia Jimmy, um velho conhecido do escritório. Não tinha a menor idéia da razão de sua presença no local.

- Não se preocupe Sil, eu estou bem. Pelo jeito temos convidados, não é mesmo?

- Ah sim, o Sr. Parker passou aqui para me tranqüilizar sobre seu paradeiro, já que não conseguia lhe encontrar pelo celular.

- É mesmo? Então ele lhe disse onde eu estava?

- Sim, você estava em uma negociação com um dos sócios do Sr. Parker para comprar ações na nova companhia elétrica da cidade, certo?

Robinson sorriu.

- Isso mesmo, querida.

E andou em direção aos homens no sofá, que se levantaram rapidamente. Estendendo a mão Robinson disse:

- É um prazer vê-lo por aqui, Sr. Parker.

- Igualmente.

Atrás dele Silvia disse:

- E então, como foi a negociação?

- Ah sim, melhor do que qualquer um de nós poderia imaginar. Mas por favor, sentem-se, vamos conversar mais um pouco.

- Mas, amor, você está todo sujo e suado. Não parece em condições de conversar agora.

- Sente-se, Sil, tenho um comunicado a fazer.

Robinson andou até Jimmy e estendeu sua mão.

- E você, amigo, a que devemos sua presença por aqui?

Sorrindo, o amigo de careca brilhante e bigode bem aparado respondeu:

- Silvia me ligou assim que pensou que havia algo errado com sua demora, então vim para cá ajudá-la de alguma forma. Mas pouco depois que cheguei o Sr. Parker apareceu, explicando toda a situação.

- Compreendo. – E aproximando-se o suficiente para cochichar no ouvido de Jimmy Robinson disse: - Hei, sua braguilha está aberta. Será que andou fazendo algo por aqui enquanto estive fora?

Quando Robinson se afastou pode ver os olhos do amigo gordo arregalados e sua cor desaparecer rapidamente.

- Eu... Eu não... – Ele respondeu tentando inutilmente fechar a braguilha, pois ela já estava fechada.

Robinson sorriu como um santo.

- Sentem-se todos, por favor. Tenho ótimas noticias e quero compartilhar minha alegria – disse enquanto desabotoava o paletó.

O velho careca, Sr. Parker, parecia comicamente desconfortável, se remexendo no sofá e olhando para seus capangas em busca de uma explicação. Robinson não deveria estar ali, suas ordens haviam sido expressas.

- Bem, vocês terão que me perdoar, mas tenho ainda alguns compromissos e não posso me demorar mais – disse, enfiando a mão no bolso e tirando de lá um celular.

- Oh, não, não, Sr. Parker. O senhor ficará onde está.

Robinson expôs sua camisa manchada e tirou a pistola Desert Eagle que tomara do falecido Sr. Wright. Em questão de segundos sua esposa gritou, Jimmy arregalou os olhos, Parker ficou imóvel e seus dois capangas enfiaram as mãos em seus paletós em busca de suas próprias armas.

Dois disparos foram feitos e duas pessoas perderam a vida.

- MEU DEUS, O QUE ESTÁ FAZENDO? – gritou Silvia histérica, encolhendo-se no sofá, com as mãos tapando os ouvidos.

- Eu disse que queria compartilhar minha alegria com todos e não pretendo deixar que ninguém faça pouco caso de minha felicidade. Sente-se agora, Sr. Parker.

Hesitante, o velho se sentou e ficou imóvel, olhando com olhos frios e raivosos esperando apenas uma pequena brecha para inverter a situação a seu favor. Silvia já tinha grandes lágrimas escorrendo pelo rosto e Jimmy se apertava contra o sofá agarrando-o até seus dedos ficarem brancos. O cheiro de medo já tomava o lugar.

- Hoje fiz algumas descobertas no mínimo interessantes, digamos assim. Descobri que alguém decretara esse dia como sendo meu último nesta terra, que minha esposa me traiu e pelo jeito continua me traindo, e até mesmo que já tive um filho assassinado antes mesmo de dar seu primeiro suspiro. Descobertas chocantes, não é mesmo? Confesso que fiquei chocado no começo e quase perdi a cabeça, mas por conta da ajuda de um amigo pude ver um novo caminho, tão pouco conhecido por mim: o caminho da satisfação. Foi um caminho curto e já está quase no fim e vocês são meu prêmio no fim da caminhada.

- Oh meu Deus, oh meu Deus... – Silvia continuava a repetir sem pensar em nada melhor pra dizer.

- Digam-me, vocês se arrependem de tudo o que fizeram contra mim?

- Querido, vamos conversar, por favor. – Era difícil entender as palavras de Silvia por conta de seus soluços desolados. – Quem quer que tenha lhe contado tudo isso, eu posso explicar. Eu posso explicar. Largue essa arma. Por favor.

- Claro, querida. Sou todo ouvidos.

***

Em um ponto da cidade um homem se encontrava curvado perante uma caixa, com uma expressão sonhadora enquanto procurava um antigo pedaço de papel. O homem arquejava e pingava suor. Seus olhos estavam perdidos e um sorriso bobo enfeitava seu rosto. No andar de baixo havia cinco corpos ensangüentados, e ele mal sabia que acabara de tirar a vida de seu primogênito quando atirou na barriga da infiel mulher.

Depois de algum tempo procurando encontrou um envelope e tirou de dentro uma folha de papel envelhecida e com cheiro de naftalina. Colocou dentro de seu bolso e desceu vagarosamente as escadas, saindo pela porta dos fundos para não ter que encarar o cenário vermelho que era sua sala de estar.

Seu corpo estava por um fio de ceder ao cansaço e ao ferimento que não mais incomodava em seu abdômen, mas o sorriso bobo ainda continuava em seu rosto. Por várias vezes sua visão escureceu e ele tropeçou em algo no caminho, mas usava suas últimas forças para evitar uma queda, pois assim que caísse não mais levantaria. Era uma certeza instintiva, as únicas que podem realmente serem chamadas de certezas.

Minutos depois chegou a um parque que em sua memória era um cenário formado puramente de luz e alegria, mas não naquela noite. Naquela noite era escuro e silencioso. Atravessando uma pequena ponte sobre um pequeno riacho ele parou. Olhou para o céu e viu a Via Láctea cortar o céu como uma veia de prata e seu coração se apertou. O além, o infinito. Ele estava pronto para o que viesse.

Colocou a mão no bolso e tirou de dentro o papel e leu aquela sucessão de palavras apenas uma vez antes de sucumbir.

“Eu não tenho muito, mas tudo o que tenho ofereço a você

Com eterno amor,

Sil.”

Por que palavras tão belas? Por que correr em círculos numa tragédia sem fim, onde no fim todos terminam chorosos e saudosos por tempos que nunca existiram?

Sem forças o homem pendeu para o lado e passou pelo parapeito, caindo sem forças no riacho que seguia sua trajetória sem se importar com seu caminho. A antiga carta de amor ficara no chão de pedra da ponte e logo o vento se encarregou de levá-la a lugares distantes, onde ela terminou sob os pés de um homem risonho vestindo uma camiseta azul.