A Aparição

Uma casual conversa de bar, passando por uma incidental visita a uma cena de crime, até ser surpreendido por uma aparição fantasmagórica. Às vezes, quando a gente está procurando uma coisa, na base do acaso, acaba sendo encontrado por outra, afinal é impossível delinear os preceitos regidos pelo destino.

Aquela se anunciava como uma tarde diferente. Meu pai, padrinho e eu estávamos numa mesa de bar, jogando conversa fora enquanto transcorria o tempo. Entre goles de cerveja gelada, os dois conversavam sobre economia, evolução e queda abissal do mercado financeiro, um pouco sobre futebol, enquanto eu tentava sair incólume daqueles assuntos pouco inspiradores, preferia vislumbrar o suculento pastel de queijo, devorado com volúpia enquanto sanava a sede deglutindo generosos sorvos de coca-cola.

O pastel oleoso proporcionava uma gula verdadeiramente lasciva, que acabou sendo rompida pelo garçom, ah aquele maldito garçom, surpreendeu a todos com uma notícia nada jubilosa.

- Acabaram de assassinar a Jéssica! E você não vai acreditar seu Carlos, o pai dela, o professor Manuel, é acusado de ter praticado o crime! Tudo indica ser por causa de uma gravidez acidental. Vocês acreditam? – disparou o rapaz, arfante! Após resfolegar por alguns segundos, mencionou ainda a prisão do suposto autor daquele crime bárbaro.

- Quem é Jéssica afinal? – indaguei. Aquela altura o pastel descia de forma nauseante, azando inconveniente vertigem.

- Eu conheço toda família! Manuel foi meu cliente, inclusive. Como pode fazer uma coisa dessas? – lamentava o padrinho, desolado, mencionando o desejo de prestar condolências à família, diante de um momento indubitavelmente tão adverso e violento. Sugerindo que o acompanhássemos naquele penoso propósito, assisti meu pai aceitar o convite de prontidão. Para não me caracterizarem como uma figura dotada de preceitos egóicos, não hesitei em seguir com eles.

No curto percurso até ao apartamento onde moravam, pensei na garota, que teve a vida dizimada por uma mostra de violência tão desmedida, impulsionada por razão tão banal. A família até poderia reunir forças para seguir em frente, dar a volta por cima, mas o alicerce familiar permaneceria eivado.

Na portaria do condomínio onde residiam, foi autorizada nossa entrada. Ainda no hall do luxuoso edifício, meu padrinho mostrou a foto da garota morta, uma jovem com aparentemente menos de 18 anos, seu semblante revelava uma pureza singular, agora maculada pela ira descomunal de um pai tresloucado. Pensava que com o mundo habitado por figuras tão nefandas, o demônio é representado em sua essência natural!

Na porta de entrada para o apartamento, logo após tocar a campainha, lamentava ter que visualizar o local onde repousava a jovem, aquela trama sórdida e com traços obscenos. Uma mulher, possivelmente a secretária, atendeu e permitiu nossa entrada naquele apartamento com energia tão onusta, capaz de despertar inquietude. Mal entrara e estranhamente me sentia confinado naquela caixa de tijolos, areia, cimento, argamassa....

- A dona Vera pode nos receber? - Perguntou meu padrinho, me levando a concluir que a pessoa citada seria esposa do tal assassino e mãe da menina que momentos atrás teve a vida ordinariamente ceifada. – Não sei se chegamos em boa hora. Como amigos, viemos para prestar comiseração nesse...

- A dona Vera saiu para tratar do velório e enterro da filha – interrompeu a secretária. Demonstrando estar muito chocada, lamentou o triste fim imputado à garota por um pai impelido de puro ódio e vaidade! – Tantas meninas engravidam nessa idade. Ainda posso ouvir os gritos dela, enquanto o miserável cravava as facadas contra seu corpo – expôs com os olhos marejados. Antecipando as respostas para outras perguntas, confirmou que Manuel já havia sido preso e o corpo da garota recolhido há poucos minutos.

Embora nos tratasse de maneira amistosa, era perceptível que a secretária estava acometida pela tragédia. Pensei em preencher algumas lacunas, dúvidas a saltar sobre meus olhos, como saber se o tal Manuel demonstrava antes comportamento violento ou se havia alguma rusga entre família e o pai da criança. Mas não tive coragem de ser tão invasivo e petulante.

- Eu vou passar um café para vocês. Se quiserem ver o local do assassinato, foi no segundo quarto à direita – comentou. Antes de seguir para a cozinha, frisou que os investigadores orientaram a entrada de uma pessoa por vez, pedindo ainda para o cômodo ser mantido climatizado, visando a preservação da cena do crime!

- Quem, em sã consciência, teria o mau gosto de visitar o aposento, pano de fundo para um assassinato tão brutal? – refletia assistindo meu padrinho se mover pelo corredor. Torci para ser um alarme falso, naturalmente estava procurando o banheiro, até seus passos lhe levarem precisamente ao segundo corredor à direita. Com a saída do padrinho, foi a vez de meu pai entrar. Como sempre acreditei que é sempre melhor nos arrependemos pelo que fizemos, assim que deixou os aposentos resolvi bisbilhotar também.

A primeira impressão, ao ocupar o dormitório, foi de ter sido alvejado por um choque térmico, afinal a temperatura estava bem álgida em relação a sala de estar. O aposento da jovem era bastante amplo e, como em muitos outros quartos de garotas, tinha a decoração baseada nas cores branco e rosa. Havia ursos de pelúcia sobre vários nichos montados na parede, prateleiras adornadas por livros, além de um televisor tamanho médio pendurado na parede.

A direita ficava o extenso guarda roupa, praticamente caberia uma boutique ali dentro. Dividido em duas partes, a cama ficava entre elas, havendo um criado-mudo de pequenas dimensões no canto esquerdo. De frente a cama, uma escrivaninha, com algumas gotas de sangue que formavam um caminho até ao leito, encharcado pelo líquido.

A despeito de não despontar como um especialista em assassinatos era possível presumir: Jéssica estava sentada na cadeira, de frente ao computador quando foi surpreendida pelo pai. Empunhando uma faca, desferiu os primeiros golpes contra a filha, que, ferida, tentou se desvencilhar do agressor. Havia um ponto no qual era mais concentrada a abundância de sangue, possivelmente ali foram desferidos os golpes mais profundos. Sem forças, a garota tombou sobre a cama, onde permaneceu sofrendo a investida até sucumbir completamente.

Há alguns metros da cama, uma das portas do roupeiro estava aberta e lá havia um espelho. Estranhamente o objeto refletia uma nevoaça, somente visualizada através do reflexo. Observando atentamente, da neblina vi emergir uma garota, coberta por sangue que escorria pelos longos cabelos. Ardilosa nas sombras, ostentava olhos cerrados, negrumes, carregando nas mãos um amontoado de carne humana, semelhante a um feto, completamente desfigurado, exalando um choro pavoroso, mais semelhante a um sussurro agudo.

- Salve o meu bebê, salve o meu bebê, salve o meu bebê, salve o meu... – vociferava cada vez mais alto. A misteriosa e desvairada aparição se aproximava, lentamente. O choro da criança ficava mais intenso, enquanto permanecia se aproximando, bem lentamente... Os passos seguintes deixaram-na tão próximo a ponto de, na tentativa de correr com todas as forças, acabei foi despertando do sono, deveras assustado, como se escapasse da masmorra do inferno.

No mundo real, narrei a trama para amigos. Alguns argumentaram que meu subconsciente armou uma arapuca previsível, nítida pela forma como o enredo foi costurado. Já que tudo não passava de um sonho, lamentei não ter sido capaz de salvar a Jéssica dentro de meu próprio estranho mundo. Por que diabos, o inconsciente preteriu a oportunidade de me tornar herói, apenas para idear uma personagem morta, vivendo tão somente para me assombrar!

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 14/06/2019
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