O Corredor da minha casa

Comprei em 2005 uma casa de um quarto, sala, cozinha, banheiro e área de serviço com um dinheiro que herdei da minha falecida avó. Eu já tinha uma casa que eu mesmo havia conquistado com o suor do meu esforço, porém eu já estava farto daquele lugar e a minha casa nova seria a minha moradia de 2006 em diante, quando eu me mudaria. Planejei tudo direitinho, onde ficaria cada objeto e como eu arrumaria a casa. Mudei-me em janeiro de 2006, a princípio dormindo no sofá da sala por preguiça de montar a cama que estava toda desmontada no quarto esperando eu espantar a preguiça e montá-la.

Em 2007 montei a cama e coincidentemente alguém deixou na minha porta uma gata com dois filhotes “adolescentes”. Eu sempre gostei de gatos e os levei pra dentro. A gata-mãe foi logo defecando a casa toda (Marcando território? Talvez...) e sobrou pra eu limpar a casa e tirar as fezes até mesmo de cima do meu cobertor, quando ela deitou com seus filhotes na minha cama e defecou sem dó nem piedade na cama toda. Arrumei uma enorme caixa de papelão com um pano e um pedaço de colchão velho fazendo uma “caminha” pra eles. Arrumei uma caixa de areia, mas ainda assim, só os filhotes faziam suas necessidades fisiológicas na caixa, a gata-mãe insistia em defecar no meu cobertor. Depois de uma semana lavando as cobertas e tentando em vão fazer a gata-mãe defecar na caixa de areia, eu pensei: “Tenho que me livrar no mínimo da gata-mãe, pois ela é problemática ou pedir ajuda a um veterinário para tentar reeducá-la.” Conversei com um amigo e ele de bom grado quis ficar com a gata, mesmo ciente da estranha mania dela de defecar em cobertores. Doei pra ele sem pensar duas vezes, acreditando que o meu amigo seria feliz com ela. Mas o amigo virou inimigo quando eu soube, uma semana depois, que ele comia carne de gato e aquela gata ele matou e devorou no mesmo dia. Fiquei tão mal ao descobrir que sem querer, sem saber, eu entreguei aquela doce criatura indefesa nas mãos da morte, por preguiça minha de tentar buscar ajuda pra tentar reeducá-la, que entrei em depressão profunda. Nada mais fazia sentido pra mim, nada mais tinha graça. Os filhotes, todos os dias me acariciavam, a me ver triste e choroso, tentavam me consolar, dizendo sem palavras com seus miados e carinhos: “Você não teve culpa. Você não sabia o que estava fazendo. Agora o que está feito não tem mais volta.”

Com o decorrer dos anos, a minha depressão foi embora e eu voltei a ter uma vida normal. Montei a minha cama, e os gatos, como sempre dormiam comigo. Estranhamente, enquanto eu jogava videogame na sala antes de ir dormir, eu percebia que enquanto o gato macho dormia enroladinho no meu colo, a fêmea ficava olhando para o corredor escuro, que dava aceso à cozinha, ao meu quarto, ao banheiro e por fim à área de serviço que ficava no final do corredor. A gata olhava e mexia a cabeça como se estivesse vendo alguma coisa. Eu olhava para o corredor e não via coisa alguma. Instantaneamente, me lembrei de histórias que vi não só na internet como também em filmes antigos que diziam que gatos vêem espíritos e/ou demônios. Um dia, eu me lembrei de ter visto filmes de terror onde as pessoas fotografavam a filmavam fantasmas e/ou espíritos que eram invisíveis aos humanos, mas eram visíveis diante das lentes de câmeras, fossem estas câmeras eletrônicas ou não. Ao ver a gata olhando para o corredor daquele jeito, eu tomei coragem e acionei a câmera do celular, tirei algumas fotos do corredor escuro, filmei e nada apareceu. Naquela noite, eu sonhei com uma mulher de pele parda, 170m de altura, com o corpo visivelmente malhado de academia, sem exageros, cabelos longos negros e ondulados, trajando um vestido preto curto e descalça, mas e com estranhas enormes a afiadíssimas unhas pretas tanto nas mãos quanto nos pés. Aquela estranha mulher me olhou nos olhos com seus belos e hipnotizantes olhos verde-claros e disse:

- Canalha! Entregaste-me nas mãos da morte!

- Se você é quem estou pensando, por favor, me perdoa! Eu não sabia o que estava fazendo! Eu nem tinha ideia de que aquele cara comia carne de gato.

Olhando-me com uma expressão facial que misturava ódio, nojo e desprezo, ela disse:

- Você me separou dos meus filhos, só porque não entendeu que tudo o que eu queria era deixar um pouco de mim no teu cobertor através das minhas fezes. Isso é linguagem de gato, nenhum humano entende. Você não poderia mesmo ser diferente daqueles que nos esterilizam para evitar que nos reproduzamos enquanto que vocês fazem sexo com parceiras aleatórias e depois ficam enrolados com suas fêmeas entrando na justiça contra os machos para garantir através de pensão alimentícia o sustento de suas indesejadas crias. Aliás, crias estas que são muitas vezes programadas pelas fêmeas da tua espécie para extorquir a devida pensão alimentícia, que muitas vezes é extorsiva a ponto de quase matar o macho de fome. Ou seja, enquanto vocês por conforto e comodidade você nos impedem de reproduzir, alguns machos e fêmeas da tua espécie fazem sexo por prazer enquanto algumas fêmeas da tua espécie o fazem para tentar ganhar dinheiro fácil. Resumindo, vocês humanos são medíocres em toda a sua essência! No meu caso, mesmo que o sujeito que você pensou que fosse amigo cuidasse de mim, como prometeu ao invés de enganar você para ter mais uma refeição na mesa, ainda assim eu estaria muito triste por estar longe dos meus filhos e por ter confiado a minha vida a você. Não custava nada, ou se vamos falar de finanças, quase nada ante o salário que você ganha como programador, me levar a um veterinário, onde ele me ensinaria o quanto eu estava te prejudicando ao defecar no teu precioso cobertor e, portanto eu passaria a usar a caixa de areia. Não precisava me separar dos meus filhos por isso! Aquilo que a minha filha viu no corredor da tua casa era eu me comunicando com ela e alertando-a para o fato de que você é tão egocêntrico e individualista quanto todos os da tua espécie.

- Me perdoe! Sim, eu confesso que fui egoísta e ignorante, mas como você mesma disse, isso é uma falha congênita e comum à maioria dos humanos. Por favor, me perdoe Catarina!

- Meu nome não é Catarina! Esse é o nome que você quis me dar pra depois me oferecer por aí, como se eu fosse um objeto que você deu pro primeiro que se interessou, por não gostar das minhas atitudes! Meu nome verdadeiro é Eclésia, o nome que o antigo dono me deu, um idoso que o próprio filho matou por causa de uma maldita herança e jogou todos os objetos pessoais do próprio pai fora, me deixando na porta da tua casa com os meus filhos, como um objeto que ele abandonou pra não ter o grande trabalho de criar. Agora você vai sofrer a minha vingança! Tudo o que você comer terá gosto de carne de gato e tudo o que você beber terá gosto de sangue!

- Espera!

Acordei às 8:00h da manhã gritando:

- NÃO, ECLÉSIA!

Ao ver o meu quarto iluminado pelo sol da manhã, percebi que o meu corpo estava todo melado de suor. Tomei meu banho matinal, escovei os dentes, fiz a barba e fui tomar o meu café na padaria, que fica do lado do meu escritório. Ao morder o primeiro pedaço de pão, percebi um estranho gosto de carne crua. Pensei: “Eu tive um pesadelo muito realista. Estou impressionado, só isso.” Bebi o primeiro gole de café e o insuportável gosto de sangue me fez passar mal na hora! Levantei-me do banquinho e tive uma crise de tosse, desmaiando logo em seguida. Acordei em uma maca de hospital, olhando tudo à minha volta. Percebi que a minha mão direita estava presa à uma agulha de soro, que estava pendurado em um suporte do lado da maca. Uma enfermeira entrou no quarto e eu levei um susto ao ver o rosto dela! Não era possível! Era Eclésia vestida de enfermeira! Ela chegou bem perto e disse baixinho:

- Agora você vai sofrer! Sinta a dor da minha vingança!

E foi embora.

Minutos depois de Eclésia sair, veio outra enfermeira trazendo uma bandeja com um copo descartável de café com leite e um pão com manteiga sobre um guardanapo de papel. A simpática moça sorriu e disse:

- Bom dia! Como você está se sentindo hoje?

- Mais ou menos?

- Vamos tomar um café com carne de gato?

- O QUE!?

- Vamos tomar um café pra começar bem este dia maravilhoso?

- Oh! Sim! Claro!

Bebi o primeiro gole de café e o insuportável gosto de sangue naquele café me fez passar mal outra vez. Eu gritei:

- QUE CAFÉ É ESSE!?

Sempre simpática e sorridente, a enfermeira disse:

- Não gostou do café, meu lindo?

- Esse café está com gosto de sangue!

Espantada, ela disse:

- O que é isso?

Ela experimentou o café e assustada, disse:

- Ai, meu Deus! Espera aí que eu vou trocar esse café!

E saiu correndo levando a bandeja com o café e o pão.

A enfermeira não voltou e por volta de meio dia, dois médicos entraram no quarto e um deles disse:

- É esse aí que passou mal na padaria?

- É esse aí mesmo.

Olhando pra mim, um deles disse:

- Você está de alta. Suas roupas estão no armário. Pode se vestir e ir embora.

Levantei-me da maca, troquei minhas roupas e saí do hospital. Só então eu percebi que aquele hospital para onde eu fui levado, estava em outra cidade. Saí pelas ruas procurando alguma referencia de onde eu estava pra saber como voltar ao Rio de Janeiro. Estranhamente, ninguém me dava muita atenção, todos me davam repostas evasivas, ninguém me dava uma informação válida. Pensei em ir à rodoviária local, pois ali, onde quer que eu esteja bastaria pegar um ônibus para o Rio e pronto, fim de assunto. Vi um ponto de táxi na esquina do quarteirão do hospital. Entrei em um deles e o taxista foi logo perguntando:

- Vamos pra onde?

- Pra rodoviária mais próxima.

Chegamos na rodoviária, um lugar muito diferente do que eu pensei que seria. Quando eu ia pagar a carteira pra pagar o taxista, vi que os bolsos da minha calça estavam vazios. Eu estava sem a minha carteira, sem o meu celular e sem a chave da minha casa. Levei um susto e procurei na roupa inteira. Nada! Entrei no táxi outra vez e disse:

- Esqueci a minha carteira, o meu celular e a chave da minha casa no hospital! Não sei por que, mas tiraram dos meus bolsos enquanto eu estava inconsciente. Vou ter que voltar lá pra buscar!

- De qual hospital estamos falando, meu amigo?

- Daquele que fica no quarteirão do teu ponto de táxi.

- Mas aquele hospital está desativado há mais de 10 anos.

- Impossível! Eu acabei de sair daquele hospital! Me leva então até o teu ponto de táxi, de lá eu busco as minhas coisas, volto e pago a corrida.

Desconfiado, o taxista disse:

- Então eu vou contigo até esse hospital, ok?

- Tudo bem, vamos nessa!

Quando o táxi chegou onde eu indiquei, o hospital estava bem diferente, parecia envelhecido, com algumas paredes pichadas e alguns vidros quebrados. Tentei entrar, mas a porta do saguão principal estava fechada e trancada com um cadeado. Fui numa banca de jornal que ficava na frente do hospital e perguntei:

- Por favor, Senhor. Qual o horário de funcionamento desse hospital na frente da tua banca?

- Ih, moço. Esse hospital não abre mais faz mais de 10 anos.

O taxista, que assim que estacionou o carro foi me acompanhando pra não me perder de vista, disse:

- Eu não te falei?

Eu instantaneamente retruquei:

- Não é possível! Tem algum outro hospital aqui perto?

O jornaleiro respondeu:

- Outro hospital só o de Santa Madalena que fica a uns sete quilômetros daqui e a Santa Casa que fica a uns quatro quilômetros daqui. São os que eu conheço. Esse aí depois que foi abandonado, alguns mendigos invadiram e estão morando nele. Mas como você foi parar aí?

- Eu sou do Rio de Janeiro, estava tomando café na Padaria, quando de repente eu passei mal e acordei numa maca desse hospital.

O taxista disse:

- Rio de Janeiro, nossa! Isso é longe! Como você veio parar aqui?

- Eu não sei! Só sei que desmaiei enquanto estava tomando meu café e acordei nesse hospital que vocês estão dizendo que está desativado!

O taxista e o jornaleiro se entreolharam com cara de desconfiança. O taxista disse ao jornaleiro:

- E aí?

O jornaleiro disse:

- Aguardem aqui que eu vou dar um telefonema.

E foi a um orelhão que ficava na outra esquina. Ao falar ao telefone, o jornaleiro dava pequenas e rápidas olhadas para mim. Isso me preocupava um pouco. Depois que desligou o telefone, o jornaleiro voltou com aquela cara de “tudo resolvido” e disse ao taxista:

- Já está chegando a ajuda pra ele.

Espantado, eu perguntei:

- Que ajuda? Como assim? Alguém vai abrir esse hospital pra eu pegar as minhas coisas?

Friamente, o jornaleiro respondeu:

- Calma, rapazinho! Já está tudo sob controle.

Nesse momento, uma ambulância chegou. Os mesmo médicos que no hospital me disseram que eu estava de alta saíram da porta de trás do veículo. Ao vê-los eu disse:

- Ufa! Que bom ver vocês outra vez!

Mas estranhamente, eles me amarraram em uma camisa de força e me levaram na ambulância, onde me injetaram uma droga forte induzindo-me a desmaiar. Acordei em um quarto de uma clínica psiquiátrica. Do outro lado de uma parede toda feita de grades, um médico, acompanhado do taxista, que agora estava vestido de enfermeiro, conversavam. No horário do almoço, fui encaminhado ao refeitório, onde todos foram servidos com um prato de macarrão com salsichas picadas. Morrendo de fome, tentei comer um pouco daquele macarrão que parecia delicioso, mas na primeira garfada, veio aquele gosto de carne de gato crua no lugar do gosto do macarrão e das salsichas. Como a fome era muito forte, tentei comer assim mesmo, tentei com todas as forças mastigar e engolir, até consegui mastigar um pouco e engolir rapidamente o conteúdo da primeira garfada, mas a segunda eu só consegui mastigar, mas acabei cuspindo fora. Voltei para o quarto com fome e descobri da forma mais dura possível que aquela clínica psiquiátrica só tinha uma refeição por dia. Eu nunca passei uma noite com fome antes. Aquilo pra mim era a maior das torturas. Às 22:00h ao ver que eu não estava dormindo como os outros detentos, o enfermeiro, que antes era taxista, trouxe uma bandeja com uma seringa, uma liga de soro, um pouco de algodão, um pequeno frasco de álcool medicinal e uma ampola. Então, ele preparou a seringa coletando o conteúdo da ampola, pegou o meu braço, colocou a liga de soro e disse:

- Hora do remedinho.

Eu não sabia o que era aquilo, mas confiei nele e deixei-o injetar de boas. Quando eu ia começar a fazer algumas perguntas, assim que a droga entrou na minha veia, eu desmaiei. Acordei no outro dia, vi Eclésia vestida de enfermeira passar rapidamente me olhando pelas grades com olhar sarcástico. A fome era fortíssima e eu tentei beber um pouco de água da torneira do banheiro pra tentar aliviar a fome. Mas aquela água tinha o escabroso gosto de sangue que me dava até nojo! Tomei um banho, deitei na maca e comecei a chorar de fome e dor no estômago. Horário de almoço outra vez. Outra vez eu fui conduzido ao mesmo refeitório, desta vez o almoço servido aos internos era arroz, feijão com um ensopadinho de carne com batatas da qual o cheiro estava tão bom que a minha fome, já bem grande devido a eu estar dois dias sem comer, aumentou vertiginosamente. Na primeira garfada de arroz com feijão, como eu já esperava, veio aquele horroroso gosto de carne de gato crua. Mas encarei o desgosto, mastiguei e engoli assim mesmo. Na primeira porção de comida que eu engoli, senti uma dor tão forte no estômago que eu parei de comer. Minutos depois eu pensei: “Ah, não! Morrer de fome não!” Peguei com minhas últimas forças um pedaço de carne cozida, fantasiei na mente que estava simplesmente muito mal passada, o que me ajudou bastante a encarar o gosto de carne de gato crua, mastiguei e engoli. A dor no estômago aumentou de modo que eu não consegui comer mais nada. Reconduzido ao quarto, lavei a boca na pia na esperança de me livrar daquele gosto de carne crua, então, a água da torneira me lembrou de forma implacável o gosto de sangue que eu sentia em qualquer líquido que se encostasse à minha boca. Voltei para a maca e aos prantos, eu pensei: “Eu vou me acostumar com esse gosto de carne de gato crua, sua vadia! Você não vai me matar de fome!” De repente, no meio da madrugada, uma forte dor nas costas me acorda! Meu rim direito estava em crise devido a eu ter ficado três dias sem beber coisa alguma. Fui parar na enfermaria e acabei morrendo por insuficiência renal. Antes de morrer, na enfermaria me apareceu Eclésia, que trajada de enfermeira como sempre, me disse baixinho no ouvido:

- Seus erros estão pagos, humano. Espero que em outra vida você seja uma pessoa melhor.

FIM

Eduard de Bruyn
Enviado por Eduard de Bruyn em 17/06/2019
Reeditado em 28/06/2019
Código do texto: T6675058
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