Eu vivi o tempo de uma vida. Nem pouco, nem muito. Apenas vivi o tempo de uma vida. Mas agora, deixe-me contar minha história. Na época, eu havia acabado de sofrer uma perda; minha esposa. Clara havia partido em um acidente peculiar. Eu a conheci despretensiosamente em um barzinho em uma noite de verão. Magnífica como sempre foi, ostentava seu sorriso branco e eu, como um besouro vai de encontro a luz, fui de encontro ao meu destino. Não demorou para começarmos a sair com mais frequência. Ainda consigo sentir o cheiro de groselha e lilás que acompanha os movimentos de seu corpo. Seu cabelo raspando em meu peito e sua respiração ruidosa enquanto dormia. Sinto suas mão passando pelo meu corpo e seus olhos adentrando os meus. Seus lábios se aproximam devagar de encontro ao nosso beijo e sinto isso com uma veracidade saudosa; mas então abro os olhos. Sinto minha têmpora gelada encostada no vidro da janela. Estou de volta ao banco de trás de um Toyota preto. A viagem era longa e o sono me acometera algumas vezes, por isso não sabia exatamente onde eu me encontrava. A chuva lá fora delineava suas gotas na janela como raízes de uma árvore; hipnotizante.

     E hipnotizado, a dor da perda me atinge novamente e (como tantas outras vezes) busco a aliança de casamento que agora carrego em um colar, assim, junto do peito. A apertava com meus dedos e me agarrava as memórias com braços firmes; no colo, a urna com as cinzas de minha esposa. Pretendo levá-las ao litoral; ela sempre quis ser oceano.

     Já faziam algumas horas em que estávamos sentados naquele carro; eu, meu motorista e minhas lembranças. Nenhuma palavra havia sido dita além das breves formalidades e eu gostava assim; silenciosos como domingo. “Este anel deve ser bem...precioso, não é?”. Ele não havia apenas quebrado o silêncio mas também meu mundo de fantasia, me puxando de volta à realidade. “Sim, é.” E de fato era. Recebi esta relíquia de meu pai, que recebera de seu pai e bem, vocês sabem como funciona. A cor dourada não enganava; era mesmo todo feito em ouro. Algumas inscrições podiam ser lidas se esquentássemos bem o anel e Deus, como eu amava isso. É claro que o dei à Clara como símbolo de meu amor. Agora, eu a devolvo ao mundo, mas fico com o anel.

     Chove forte agora. Os relâmpagos projetam uma luz azul sobre o mundo e durante seus breves momentos eu conseguia enxergar o horizonte; uma planície vasta de uma plantação qualquer. “A monocultura vai acabar matando a todos”, dizia meu pai. Hoje, sei que não. Pelo menos não a mim. Mais alguns quilômetros e começo a perceber que meu Motorista não se mostra mais tão apático e desinteressado em minha história. Algumas perguntas foram feitas, outras foram respondidas, mas de um jeito ou outro ele sempre acabava focando sua atenção em um assunto muito específico: o anel. Lembro de ter me sentido um pouco inseguro quanto a esta nova face de meu Motorista e peço que ele pare no próximo posto de gasolina ou “eu iria acabar fazendo xixi ali mesmo”. Ele não riu. Os minutos se estendiam e agora eu percebia que ele me olhava com uma frequência ousada pelo retrovisor. Apertei a urna de minha esposa contra o corpo, num chamado para a vida, imaginando que ela apareceria na porta do quarto, me saudando ao dia com seus beijos de café e me dizendo que aquilo tudo era apenas um sonho ruim. Não funcionou. Eu ainda permanecia sentado no banco de trás de um Toyota preto, com um estranho dirigindo e as cinzas de quem um dia eu amei dentro de um pote de porcelana. À quilômetros de lugar nenhum.

     O carro para. Eu olho para o Motorista e olho para fora. O que vejo é uma escuridão que invade o interior do veículo e meu Motorista agora, está imóvel com as mãos no volante me encarando pelo retrovisor. “Ele tem olho azul; eu não havia reparado”. A partir daí, tudo aconteceu rápido demais. Ele saiu do carro e os pêlos de minha nuca arrepiaram num aviso sombrio de que nada estava certo naquele lugar. Aperto mais a urna contra o corpo (“por favor, me acorde”) e a porta ao meu lado se abre para que duas mãos fortes me puxem para fora. Lembro de ter sentido gosto de lama e grama molhada quando pousei com o rosto naquele lamaçal. Essas mãos, agora, apertavam meu pescoço com uma força brutal e a feição de meu Motorista era macabra; olhos esbugalhados e a boca apertada, com um grosso fio de baba se confundindo com a água da chuva. Lutar era impossível pra mim. Veja bem, sempre fui um cara franzino, portanto minha reação imediata foi tentar alcançar o anel em meu peito, mas a dificuldade aumentava a cada segundo e já sentia a chama de minha vida se apagando. A próxima coisa que vi foi a silhueta de Clara atrás de meu Motorista e então eu entendi, eu não a levaria para o oceano; o oceano viria até mim. E enquanto minha vida se esvai, vejo meu Ceifador encostado em seu Barco Fúnebre, colocando meu anel dentro da boca e se deliciando com o frio do metal.



TEMA: Viagem de Carro
Restrição: O conto precisará ter no mínimo duas pessoas dentro do carro, não necessariamente vivas.
FANFIC: O Senhor dos Anéis (Lord of The Rings).

 
MIHELL
Enviado por MIHELL em 17/06/2019
Reeditado em 04/04/2021
Código do texto: T6675225
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