O ESPELHO DO PORÃO - parte 7 e 8

O ÚLTIMO REFLEXO

Tomás ficou preocupado quando percebeu que nenhum de seus amigos foi para as aulas no decorrer da semana. Não obteve notícias pelos pais e, ligações menos ainda. Ele, filho de pai policial, estranhou o desaparecimento de Douglas, Adriana e Renata, e tudo isso se deu quando visitaram a casa de Elizabeth.

Angustiado com aqueles acontecimentos, decidiu alertar os pais sobre o ocorrido e ir até a casa de Elizabeth.

Na semana seguinte, o professor voltou a cobrar os alunos quanto ao prazo da entrega dos trabalhos, e o único grupo que não entregara nada ainda fora o seu. Ele não quis mencionar o fato do desaparecimento para não gerar um alarde na Universidade inteira, pois suspeitariam da moça que ele mais gostava e que, em um misto de dúvidas e conflitos internos, queria protegê-la, por mais estranha que estivesse.

Ele vê a famigerada moça. Dessa vez, ela veio com uma roupa mais leve, uma blusinha vermelha, uma calça jeans azul claro e sapatilhas. Seus cabelos negros e cacheados ao vento o encantavam.

- E então, moço? Como anda essa agenda? Só você não foi à minha casa até agora?

- Beth, você tem notícia deles? Quer dizer...

- Está insinuando algo, Tomás? – seu olhar se transformou. – Seu pai é policial, não é? Mande-o me prender. Não imaginava que não sentisse nada por mim.

- Beth, não é isso, espera!

- Cansei de esperar, rapaz. – seu tom fica esnobe. – Eu já sei que você gosta da Adriana e que, se pudesse, já teria “pegado” ela, estou certa? Homens são todos iguais.

- Beth, acorda para a realidade. Nossos amigos desapareceram, esse ano você voltou às aulas totalmente diferente, nós somos o único grupo que não entregamos nada para o professor. O mundo está caindo no nosso redor, não percebe?

Ela se aproximou do seu rosto, encostou-lhe a mão no queixo e diz, olhando fixo em seus olhos:

- Será que falta algo de bom acontecer ainda? – e o beija.

Ele, encantado com aquilo, pois muito queria beijar sua paixão quase platônica, mas ainda confuso com os fatos, não soube como reagir ao momento.

- Eles deixaram a parte do trabalho deles na minha casa. Eu sou esquecida e não os trouxe. Renata e o namorado pegaram o carro e partiram. Adriana foi sozinha na frente de Douglas, que partiu logo após dormir um pouco. Não sei do paradeiro de nenhum deles. Por que você não avisa seu pai para que ele envie uma viatura lá pra casa e faça uma investigação?

- Beth, se eu enviar meu pai para lá, ficará muito óbvio. Não posso expor ele dessa forma. É perigoso. E eu não estou dizendo que eles estão na sua casa ou que você é culpada. Só achei... – gaguejando ele diz – estranho eles sumirem após te visitarem.

- Você vai lá hoje? Tem algo que quero te contar.

- Não pode contar aqui e agora?

- Não posso. É muito sério. – seu tom de voz muda para melancólico.

- Ok, então irei. Mas não ficarei muito tempo. Irei com meu carro.

Ao findar a tarde e cair da noite, Tomás chegou até a entrada dos Ferrera e avistou a porta aberta. Quando entrou na casa, não havia luz nenhuma. Nem candeeiros, lampiões ou velas. Apenas escuridão e silêncio. Ele se recusava a entrar, mas uma chuva se aproxima e trovões davam sinais de que uma forte a tempestade cairia.

Ele estava só diante de uma fazenda sem animais, sem carros, sem barulho nenhum e sem iluminação na casa.

- Beth? Beth? Tem alguém aí?

Um grito.

Tomás acendeu a lanterna de seu celular e se perguntava se o grito não seria de Beth. Ao iluminar a casa com o forte brilho de luz do celular, ele avistou uma porta aberta embaixo da escada. Uma moça, toda de branco, com cabelos negros e cacheados saiu de lá perfumada, com um sorriso largo e um candeeiro em sua mão, clareando o ambiente bruxuleante.

- Amor, você veio. Entra.

- Beth. Onde estão seus pais?

- Eles quase não vivem em casa. Entre, por favor. Não repare a bagunça.

- Beth. Esse lugar está realmente estranho. O que aconteceu com você? Por que está tudo escuro?

- Bobinho. Não está vendo que vai chover e os ventos apagam quase sempre tudo onde tem entradas de ar? Entre, e pare de correr risco de pegar uma gripe.

Tomás entrou. Seu olhar estava focado naquela figura vestida de branco com os cabelos nos ombros. Enquanto ela acendia as luzes e iam em direção ao quarto, Tomás percebia que o ambiente era assustador no escuro, entretanto mais assustador ainda era a moça que o convidara para entrar.

- Beth, posso te fazer uma pergunta?

- Claro que pode?

- Você me ama?

A moça fica surpresa com a pergunta.

- Por que você está perguntando isso?

- Quero te confessar uma coisa: eu te amo, Elizabeth. Sempre te amei, desde o primeiro semestre que nos conhecemos. Mas nunca tive coragem para te dizer. Não queria estragar nossa amizade.

A moça não sabe como reagir, mas respondeu:

- Mas eu imaginava que seria apenas um sentimento bobo...

- Elizabeth – ele a agarra pelos braços e se aproxima de sua boca naquele quarto iluminado – Você me ama? Diga olhando nos meus olhos?

- ...

- Responda – ele se aproxima do seu rosto – Você me ama?

- Amo!

Os dois começam a se beijar como nunca se beijaram, quando o clima estava prestes a esquentar, Tomás a segura pelo pescoço com força e berra:

- ONDE ELA ESTÁ?

- O que você está fazendo? Solte-me! Está me enforcando...

- ONDE ELA ESTÁ? ONDE ESTÁ ELIZABETH? RESPONDA! – ele vociferava.

- Mas você está louco? Eu sou Elizabeth. Não me reconhece seu idiota?

- Se é mesmo você, onde está seu furinho no queixo?

Continua...

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O ECLIPSE

Tomás segurou o pescoço fino da moça, que se assustou grandemente quando o detalhe do seu rosto foi apercebido por ele.

- Ou você me fala quem é e o que fez com Elizabeth... Ou eu te mato agora, sua farsante!

- Tudo bem – ela dizia com voz sufocada pelas mãos firmes de Tomás – Eu direi. Apenas me solte e explicarei tudo.

Tomás a soltou ofegante, com as mãos suadas e coração palpitando, pois não sabia o que poderia acontecer naquele momento de possível confissão.

- Meu nome é Mary. Eu fingi ser Elizabeth o tempo todo.

- Mas então onde ela está?

- No espelho. Dentro do espelho.

- Não me venha com idiotices, sua estúpida! Eu não tenho tempo para...

- Eu falo sério. – ela se dirige até o espelho coberto do seu guarda-roupa, enfia a mão na parte de trás pela moldura quebrada do espelho e tira de lá um pequeno saco de papel e o deixa diante do espelho.

A chuva se inicia e, pouco a pouco, a escuridão vai se derramando naquele sítio. Gritos começam a serem ouvidos vindos de baixo da casa.

- Elizabeth! É ela quem está gritando? Onde ela está sua louca? – ele fechou o punho e segura-a pelo colarinho.

- Por favor, não faça nada comigo. Eu lhe mostrarei onde eles estão.

- Eles?

- Todos estão no espelho. Embaixo do meu travesseiro tem uma coisa que eu quero que você veja antes. Pegue-a, por favor.

Tomás se virou até a grande cama e procurou embaixo do travesseiro alguma coisa. Ele achou um medalhão com uma gravura na frente e atrás, que se abria. Antes que ele abrisse, ele percebeu que estava no escuro, sozinho naquele quarto, pois a moça havia fugido e descido para o porão.

Ele saiu correndo em direção a ela com a lanterna do celular ligada e se dirigiu até a porta da escada que dava acesso ao porão. Quando desceu, encontrou-a olhando para o espelho grande e oval segurando uma lamparina pequena.

- Você pode até me achar louca, não é? Pode não entender meus motivos. Mas o que eu estou fazendo é em prol da minha libertação.

- Quem é você?

- Eu sempre fiquei tão só. E somente agora que tive acesso à verdadeira liberdade, a verdadeira companhia, a vencer meus medos...

- Do que está falando?

De repente, o espelho mostra outra imagem de Elizabeth, como que pedindo ajuda, do lado de dentro do espelho, com as vestes idênticas as da moça do outro lado, ensanguentadas.

-Elizabeth! – ele corre até o espelho. – Devolva a alma dela sua psicopata!

- Eu queria tanto um lar normal... –com voz chorosa ela diz – Tanto... Só queria ser normal como todas as outras pessoas. Ter uma família normal como todas as outras. Deixe-os comigo para vencer meus medos de espelho...

- JÁ CHEGA DESSA IDEIA IDIOTA – Tomás num sobressalto de raiva conferiu uma tapa no rosto da moça que ficara jogada no chão.

Ele percebeu que o reflexo de Elizabeth ainda estava de pé. Vai até a entrada do porão e pega um martelo que lá havia.

- Se isso é uma maldição, ela vai ser quebrada agora! – e bateu várias vezes com toda força no espelho, até que ele se quebrou, transformando-se em cacos espalhados pelo chão.

O reflexo de outro lado não era um reflexo, mas uma pessoa idêntica a moça que ele golpeara.

- Elizabeth! – ele a segura nos braços.

Enquanto isso, ele percebeu que aquilo ela uma passagem secreta e que o espelho era uma parede falsa. Ele deixou o corpo da moça no chão, tomou uma lamparina e, ao entrar naquela passagem além do espelho, viu que era uma sala secreta que o espelho ocultava para quem estava do lado de fora dela.

Ele tropeçou extasiado ao ver os pais de Elizabeth, Renata e o namorado, Douglas e Adriana, como que dopados. Apenas os pais possuíam ferimentos na cabeça.

Olhou o medalhão que estava no bolso e leu as gravuras que, na frente tinham escritos PARA SEMPRE UNIDAS, e o verso BETH E MARY. Dentro dele, uma foto de Elizabeth abraçada com a irmã gêmea Mary.

- Ela quis se passar por mim e tomar meu lugar. Para isso, nos manteve trancados nessa sala.

- Elizabeth?! – exclamou surpreso ao ver o corpo da jovem se levantando lentamente. Ele abraçou a jovem e seu coração ficou em dúvidas, pois havia confessado seu sentimento e, agora que descobriu a verdade, não sabia o que fazer com ele.

- Beth, por que você nunca nos disse que tinha uma irmã gêmea...? Aliás, você nunca falou nada da sua família. Por quê?

- Vou te contar tudo, Tomás. Vou te contar tudo. Apenas me abraça. Eu vivi um pesadelo.

A polícia, a pedido de Tomás, chegou ao local, e a viatura levara a irmã gêmea para a delegacia. Os amigos estavam todos chocados, e os pais de Elizabeth estavam magros e com os olhos fundos.

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:Tomás estava abraçado com a jovem, que trêmula, começou a falar:

- Minha família nunca foi perfeita. Algumas coisas doem demais para contar.

- Confie em mim.

- Eu e minha irmã crescemos juntos na nossa antiga casa. Vivíamos muito bem até completarmos 16 anos. Então meu pai... – ela começa a chorar.

- O que foi? O que aconteceu com seu pai?

- Ele... – com a voz muito embargada, ela falava com dificuldades – Ele ficou louco e começou a abusar de nós duas.

- O QUÊ? Como assim, Beth? Você nunca nos contou isso?

- Eu sei! Mas entenda que não é fácil para mim. Assim como não foi pra ela. Éramos abusadas toda a semana, quase sempre no sábado. Minha mãe não soube o que fazer, e então se omitiu. Porém, minha irmã...

- O que houve com ela?

- Ela não suportou o trauma e então desenvolveu algumas doenças mentais. Meu pai, então, resolveu trancafia-la no porão da nossa casa. Ela gritava e se comportava como louca. Era uma cena horrível para mim. Até que ela foi levada para ser internada num manicômio por tempo que meus pais não revelavam. Então fiquei dormindo sozinha na cama que dormíamos juntas.

- E a história dos espelhos?

- Minha mãe quem via tudo através do reflexo dos espelhos. Ele ficava sempre diante de um espelho quando abusava da gente. Era um fetiche dele, ficar observando a sua performance demoníaca. Nunca houve assombrações ou demônios. Apenas um trauma horrível com que tínhamos que lidar em silêncio. Então, para lidar com essas coisas, ela inventava histórias a noite para que meu pai, não nos vendo de pé em frente a espelhos, não sentisse desejo novamente. Aos poucos, ele foi parando.

- Seu pai então é o culpado de tudo, aquele maldito. Sua irmã foi apenas vítima daquele louco. Como ela veio assumir seu lugar?

- Antes de mudarmos de casa, meu pai mandou construir aquela casa nessa fazendinha, para ficarmos longe da sociedade e as suspeitas sobre seu comportamento ficarem menos visíveis. Ele que construiu aquela sala secreta para que ninguém suspeitasse que os abusos continuariam, porém apenas com ela. Eu não sabia que ela estava lá.

- Como eles foram presos lá dentro?

- Provavelmente, antes que ele descesse, se embriagou e deixou a porta do espelho aberta. Subiu para pegar alguma coisa e, ao descer novamente, minha irmã já tinha saído e o golpeou.

- E sua mãe?

- Quando ela desceu até lá, ele viu o corpo do meu pai caído e começou a gritar. Então minha irmã teve que nocauteá-la também. Quando desci lá, me assustei ao ver que ela estava ali.

- Mas por que com sua irmã?

- Eu devo muito a ela. Pois havia semanas em que, ao invés dele abusar de nós duas... – sua fala está quase soluçada - ela assumia meu lugar para me poupar do sofrimento. Era horrível. Minha irmãzinha querida...

- Eu vou denunciar esse monstro agora. Ele não vai ficar impune...

- NÃO! POR FAVOR! Não faça isso!

- Mas por que não? Ele merece ser preso e condenado a prisão perpétua.

- Eu sei que ele já aprendeu a lição que ela quis passar. Seria um trauma maior ainda vê-lo preso. Minha família já está destruída. Vê-lo na cadeia seria tão pior quanto ver minha irmã num manicômio.

- Mas vocês ainda se falavam nesse período?

- Por cartas. Eu as guardo numa gaveta trancada com um cadeado velho...

Continua no último capítulo!!!

Leandro Severo da Silva e Revisão e edição: Mariel F. Santolia
Enviado por Leandro Severo da Silva em 21/06/2019
Reeditado em 20/08/2019
Código do texto: T6677924
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