O Mal

Quando decidiu se tornar cuidadora para poder sustentar sua família, Leda sabia que não era aquilo que nascera para fazer. Porém, sabia que tinha que aceitar de bom grado a profissão, já que cuidar de um parente idoso ou inválido não era uma tarefa fácil para qualquer família.

Além disso, os seus três filhos não iriam se sustentar sozinhos.

Foram anos e anos de trabalho duro de mãe solteira. O pai das crianças há muito tempo havia sumido do mapa.. Mas, Leda conseguiu a proeza de criar os imperativos gêmeos Luan e Luiza de 20 anos e a doce caçula, Eva de 18.

Quando viu que seus filhos já estavam maiores de idade, prontos para serem donos do próprio nariz, pensou que finalmente conseguiria respirar e descansar. Mas a vida decidiu dar-lhe uma tapa na cara: os gêmeos não tinham pretensão de sair de casa tão cedo e a mais nova lutava para conseguir um emprego.

Leda poderia dar um basta e dizer: "Vão embora. Cuidem de suas próprias vidas!". Mas antes de tudo, Leda era mãe. E uma mãe não faria isso com os filhos

.

A saturação de Leda veio quando foi acusada de maus tratos pela família de uma idosa na última casa que trabalhara. Uma acusação que teve sua meia verdade. Realmente, depois de um dia estressante e com os nervos à flor da pele, Leda acabou apertando o braço da idosa forte demais e causando um hematoma. "Grande coisa! Meu aluguel aumentou, a luz aumentou... Estava surtada. Nervosa. Atire a primeira pedra quem nunca teve um dia estressante."

Por sorte, Leda não foi presa. Porém, o episódio lhe causou consequências severas. Foi demitida. E para encontrar outra casa, com outro idoso para cuidar passou a ser difícil. Ou melhor, impossível. As agências não a chamavam. Como se seu nome tivesse sido manchado por toda a cidade. Convicta que seus problemas acabariam quando se mudasse, Leda e os filhos foram morar em uma cidade distante daqueles que a sacrificaram.

Como uma espécie de karma, as coisas não estavam sendo diferentes na cidade nova. Leda se candidatou a algumas vagas, mas não havia sido chamada para nenhuma.

Em um dia nada especial, enquanto almoçava na pequena mesa redonda em um apartamento em um bairro da periferia com seus filhos, a sorte de Leda pareceu querer sorrir outra vez. Atendeu ao telefone com uma esperança no ar quando viu que não conhecia o número. Precisou se distanciar um pouco da mesa por causa das conversas paralelas entre Luan, Luiza e Eva.

Escutou a voz de um homem que se apresentou como Marcelo e que havia pegado seu número na agência especializada em cuidadores. A pessoa a ser cuidada seria sua tia que há algum tempo havia sofrido um acidente e estava em um estado semi vegetativo.

Leda não estranhou e nem se sensibilizou com toda a aparente tragédia da mulher que possivelmente cuidaria. Depois de alguns minutos conversando com o homem, anotou o endereço que deveria estar no dia seguinte em um bloco de notas fixado na geladeira e desligou. Voltou para mesa suspirando aliviada.

— Quem era? — Luan perguntou.

— O sinal de que as coisas vão começar a melhorar. Tenho uma entrevista amanhã cedo.

Disse Leda, animada.

Todos na mesa comemoraram a notícia.

— Que ótimo. Vamos ver se agora compramos uma mesa nova. Essa aqui vai desmanchar de tão velha. — Luiza falou olhando com nojo para a mesa que quando se fazia muito peso, pendulava para um lado. Ela mesma colocou força em uma lado da mesa e ela balançou.

Leda não era um tipo de pessoa carinhosa, nem com os de fora e nem com os filhos. Não era à toa que mal tinha amigos ou outro tipo de conexão mais íntima com alguém.

A motivação de Luan e Luiza de estarem morando no mesmo teto de Leda era evidente. Não tinham para onde ir e muito menos tinham coragem de fazer algo a respeito. Preferiam a procrastinação.

Já Eva era a única que ainda mostrava um pouco de respeito pela mãe e a tratava melhor. Porém, era muito difícil saber seus verdadeiros sentimentos pelo fato de ser muito silenciosa e por muitas vezes passiva. Dos três ela era a única com mais possibilidades de conseguir uma vida melhor. O seu grau de escolaridade era maior, sua inteligência mais aguçada. Porém, ela continuava na mesma. Alguns diriam que Eva compartilhava da mesma procrastinação dos irmãos mais velhos, mas para outros que conseguissem ver além, aquilo tudo não passava de insegurança.

— Nem acredito que estou ouvindo isso. — Leda inchou e explodiu de tanto sarcasmo. Uma ótima hora de jogar alguns fatos, literalmente, na mesa defeituosa. — Eu aqui torcendo para conseguir pagar o aluguel atrasado e vocês preocupados com a mesa? Ah! Vão tomar no cu! Se querem uma mesa, comprem vocês mesmos. Mas como, sem dinheiro, não é? Vocês não se movimentam para nada.

— Do mesmo jeito que está difícil para a senhora está para gente também. — Luiza rebateu.

— É muito velho no mercado de trabalho e acaba não deixando espaço para nós jovens.

— Por acaso você está me chamando de velha... — Leda deu um tapa por trás da cabeça de Luan. Ele gemeu de dor, mas depois começou a rir. Luiza riu de Luan com deboche.

Logo o início do incêndio acabou na mesma velocidade que terminou.

E assim era a rotina da família. Alguém começava a discussão, alguém continuava e como um passe de mágica ela terminava em gargalhada.

Eva sempre ficava calada. Olhava o espetáculo com uma expressão que claramente dizia: "aonde eu fui parar!".

A paz reinou na mesa novamente e Eva viu o momento propício para anunciar uma novidade animadora pelo menos no contexto da briga anterior.

— Eu também vou para uma entrevista de emprego amanhã... — Disse Eva com a voz trêmula.

— Como? — Tão fraca que nem mesmo Leda conseguiu entender.

— Vou para uma entrevista de emprego amanhã. — Ela falou mais alto. Luan e Luiza reagiram como se tão estivessem dando importância a notícia. Leda conseguiu abrir um sorriso sincero e tocou os ombros da filha como se aquilo fosse um agrado. Sua conhecida maneira de demonstrar carinho.

— Muito bem, querida!

— Muito bem, querida.— Luan imitou com afinação exagerada a voz de Leda. — A Eva é tão desocupada quanto a gente e a senhora mesmo assim fica alisando ela. Só pode ser a preferida.

— Pelo menos ela está fazendo alguma coisa. Ao contrário de vocês...

Luiza bufou e saiu da mesa direto para geladeira. Deixou Leda e Luan discutindo. Quando se certificou de tudo que tinha dentro da geladeira, soltou um grito de raiva.

— Cadê meu doce de leite! Quem comeu?

— E era seu? Não tinha o seu nome... — Luan virou-se para ela e comentou, despreocupado.

— Ah! Seu filho de uma puta! — Luiza bateu a porta da geladeira com fúria nos olhos e trincou os dentes. Estava pronta para bater no irmão.

— O que você disse, sua boca suja? — Leda se intrometeu entre os dois e voltou-se contra Luiza ofendida com o último palavrão da filha.

A briga começou de novo. E lá estava Eva observando tudo de longe.

— Saco! – Eva revirou os olhos e saiu da cozinha.

No dia seguinte, Leda tratou de acordar cedo e se arrumar da melhor maneira possível. Coisa que há muito tempo não fazia. Sua vida de dona de casa só deixava que ela usasse roupas simples e muitas vezes mal alinhadas. Sua vaidade por um bom tempo havia sido esquecida. Se arrumar para a entrevista naquela manhã fez ela se sentir mais viva. Mais humana.

Antes de sair, deu uma última checada no espelho para ver o reflexo de uma mulher bronzeada de cabelos escuros e médios, vestida com uma saia social preta e uma blusa fina de botões. Apesar de sua expressão severa e desgastada pelo trabalho diário, com sua altura e elegância Leda não aparentava ter a idade que tinha e nem a classe social a qual pertencia. Olhando-se naquele espelho, Leda, no auge de seus 42 anos, chegou a uma conclusão:

— Eu ainda sou bem gostosa!

O endereço onde Leda combinou sua entrevista com Marcelo ficava em um bairro distante da onde ela morava. Pelo o que sabia, era um bairro de classe média na cidade. Mas, quando se deparou em frente a casa, se surpreendeu. Ela era grande, de dois andares, mas modesta e comum. No mesmo estilo das casas da vizinhança.

Quando tocou a companhia esperou ver alguma empregada, crianças ou alguma coisa parecida. Mas, definitivamente aquela não era uma casa igual a que ela era acostumada a trabalhar.

Foi Marcelo mesmo quem abriu a porta e se apresentou com um sorriso simpático. Leda percebeu várias coisas nele, mas a que mais se sobressaiu foi sua roupa. Ele estava vestido com a farda da polícia local. Marcelo era um jovem adulto de 30 anos, alto e com clássicas expressões masculinas. Porém, Leda ficou curiosa. Marcelo parecia tão melancólico...

O que a levou a se questionar o que aquele rapaz tão bonito havia passado para parecer tão acabado.

Leda ficou impressionada com o interior da casa. Espaçosa, arejada, todos os móveis em seu devido lugar. Havia um toque feminino especial. E o melhor de tudo: silêncio. Fazia tempo que Leda não ouvia o som do silêncio depois de tanto tempo dentro de sua própria casa. E o curioso era que ela olhava para Marcelo e depois ao seu redor e não via nenhuma semelhança entre eles. Como se um não pertencesse ao outro.

Leda deixou a bolsa em cima do sofá e foi seguindo Marcelo por onde ele ia.

Ela pode perceber mais uma coisa. O quanto Marcelo falava com pressa. Como se estivesse atrasado para algo.

— Como você deve ter percebido, eu sou policial e estou atrasado. — Apesar da seriedade, Marcelo sorriu envergonhado. Como um pedido de desculpas. — Por isso, vamos ser rápidos. Eu não moro aqui, então não posso te mostrar onde fica cada cômodo da casa. Quando a diarista chegar amanhã, ela vai explicar. — Marcelo resolveu de cara o primeiro mistério. Aquela casa não tinha nada a ver com ele e ela estava certa. — Então, vamos para o que interessa. Conhecer a minha tia Renata.

Assim que passaram pela sala de estar, Leda teve um pequeno vislumbre da cozinha e logo ao lado entraram em um quarto pequeno. Uma cama de solteiro, um móvel lotado de caixas de remédios e uma cadeira de rodas. Tão bem arrumado quanto o resto da casa. Ela encontrou a pessoa cujo aquela casa realmente pertencia.

Uma mulher de no máximo 50 anos repousava, serena, na cama. Metade dos cabelos grisalhos, corpo franzino vestindo uma camisola de algodão florido. Seria tão bonita quanto o sobrinho se não fosse seu estado apático. Ela não estava dormindo. Seus olhos estavam abertos, contudo, suas pupilas quase não mostravam um sinal de vida.

Uma sensação estranha abateu sobre Leda. Como se Renata, mesmo daquele jeito, fosse onipresente. Por isso, suas conclusões sobre a casa. Ela não podia falar ou arrumar tudo de acordo com o seu gosto, mas de alguma maneira, ela era a dona de tudo.

Várias perguntas a rondavam. Primeiro, será que aquela passaria a vida toda assim? Depois, por que ela não estava em um hospital? Ela murmura, geme, dar algum sinal? O que deve ter acontecido com ela para chegar a um estado de saúde tão complicado?

Leda sabia que Marcelo logo responderia.

— Onde a Carmen se meteu agora? — Marcelo murmurou com uma irritação contida.

— Caren... — Antes que Leda soubesse quem era tal pessoa, uma moça apareceu pela porta, apressada. Sua pele branca ficou vermelha quando Marcelo a olhou com repreensão. A garota olhou para ele e para Leda com desespero. Mais para Leda, na verdade.

— Desculpa. Precisei ir ao banheiro.

— Você sempre precisa fazer alguma coisa... — Marcelo irritou-se, mas,como não queria fazer cena na frente de Leda, fingiu uma expressão mais amistosa. — Leda essa é a Caren. Está ajudando a tia Renata há algum tempo. Ela vai passar todos os cuidados que é preciso ter com ela assim que você começar. Vamos para sala?

Marcelo deu uma última olhada de reprovação para Caren e saiu do quarto. Leda soltou um sorriso forçado para a jovem cuidadora e foi atrás dele. Não antes de perceber o total desconforto da jovem quando se viu sozinha no quarto.

— Por isso que preciso de uma nova cuidadora. Alguém mais responsável. Nenhuma que eu contratei desde que ela saiu do hospital conseguiu ficar mais de um mês...

— Sorte minha então, não é? — Leda sentiu-se confortável para descontrair um pouco. Porém, Marcelo pareceu não ter entendido a piada ou simplesmente ignorado. Ele olhou para ela, inexpressivo e virou as costas.

***

— Então, você deve ter algumas perguntas. Eu creio. - Marcelo aconchegou-se, ereto, no sofá.

— Na verdade sim. — Leda sentou ao lado dele com as pernas juntas e as mãos no colo. — Como ela ficou.... Daquele estado?

— Bom... — Marcelo pigarreou antes de começar. Parecia um assunto difícil e talvez constrangedor. Por isso fez suspense e mexeu um pouco o corpo mostrando desconforto. — Aconteceu uma coisa aqui. Uma coisa bem ruim.

"A tia Renata morava com os meus avós e outra tia aqui nesta casa. Um dia, há mais ou menos um ano, ficamos preocupados porque nenhum dos quatro deu notícia por uns três dias... Eu fiquei responsável por checar o que estava acontecendo. Quando cheguei, vi meus avós caídos no chão da sala. Mortos. O pescoço dos dois estava quebrado."

Mesmo considerando uma pessoa forte, Leda não pode deixar de sensibilizar com a cena que Marcelo havia visto. Ver alguém morto na sua frente era algo que Leda desejava nunca ver na vida.

— Nos degraus mesmo, vi minha outra tia. Ela também estava com o pescoço quebrado. Corri para o andar de cima e encontrei a tia Renata no seu quarto. Ela estava deitada na cama. Daquele jeito que você viu. Paralisada. Não conseguia falar e nem andar. Os médicos falaram que ela pode ter sofrido um grande trauma psicológico. Por causa do deve ter presenciado.

— Mas, por que...

— Por que não deixei ela no hospital mesmo?

Marcelo adivinhou a pergunta e falou com um dar de ombros trivial. Como se ele já estivesse acostumado a dar a resposta.

— Perca de tempo e dinheiro. Por ser um problema psicológico, o médico falou que era uma questão de tempo até que ela melhorasse. Não pude levá-la para minha casa. Primeiro porque eu moro sozinho e segundo, porque não tenho tempo.

Ficaram por alguns instantes calados. Sinal de que o assunto havia acabado. Marcelo suspirou e levantou-se do sofá. Convidando Leda a fazer o mesmo.

— Então, a Caren esperará por você amanhã às sete horas. Traga tudo o que precisar. Ela vai mostrar o seu quarto.

Leda recebeu o comentário de Marcelo, desprotegida. Não entendeu quando ele falou "o seu quarto".

— Quarto? — Leda perguntou,confusa. Seus olhos se arregalaram do susto que tomou.

— Ah! Desculpa. — Marcelo não se aborreceu. Sentia-se realmente um idiota por ter esquecido um fato tão importante. Definitivamente, ele não servia para contratar ninguém. A expressão dele ficou meio cômica. Gaguejava igual a uma pessoa que fazia sua primeira apresentação em público e esquecia o texto ensaiado. – Esqueci de avisar esse pequeno detalhe ontem. A Caren dorme aqui. Quase sempre minha ronda é noturna e não tenho como passar a noite aqui. Preciso de você por tempo integral.

Leda parou para pensar. Nunca aceitara trabalhar numa casa que precisasse dormir, por causa de um velho motivo. Seus filhos. "Foda-se", Leda concluiu que já estava na hora dos três cuidarem de si. Se não fosse por vontade própria, seria por obrigação.

— Tudo bem. Sem problema. — Leda abriu um sorriso e foi em direção a porta. Marcelo a seguiu suspirando aliviado.

— Tem certeza que está apta? Você não tem criança pequena ou marido?

Marcelo voltou a ficar sério. Precisava tampar desesperadamente os buracos da entrevista de emprego mais desastrosa do mundo.

— Eles ficarão bem. Amanhã estarei aqui sem falta.

Já no lado de fora e depois de apertar a mão de Marcelo, lhe ocorreu mais uma dúvida. Uma curiosidade, na verdade. Havia deixado passar, mas agora ela martelava sem parar.

— Senhor Marcelo...

— Pelo amor de Deus, só Marcelo mesmo. Me senti velho agora. — O novo patrão de Leda decidiu fazer uma piada dessa vez. Àquela altura, ele já estava mais à vontade.

— Tudo bem. — Leda se corrigiu, contagiada com o bom humor dele. — Só uma última pergunta... Sobre seus avós e sua tia... Foi um assassinato, não foi? Mas quem pode ter feito...

Com a mesma rapidez que as coisas ficaram amistosas entre eles, o clima ficou pesado em um piscar de olhos.. Leda olhou para Marcelo e só viu uma nuvem preta pousar sobre ele. O homem havia ficado sombrio de repente. Se soubesse que o assunto iria causar uma reação tão inesperada, nunca teria tocado no assunto.

— Não sei. Mas não foi minha tia Renata.

Marcelo respondeu como igual a um leão que defende seu território. Feroz. Ameaçador. Como se já soubesse o que Leda insinuava dizer. O que não era mentira. Quem poderia ter matado os avós e a tia de Marcelo a não ser a única pessoa que sobreviveu ao suposto ataque? Era uma história mal contada. Porém, Leda decidiu ir embora. Para ela era mais importante manter o emprego do que se preocupar com quem havia matado quem.

De uma coisa Marcelo tinha certeza. O episódio macabro que presenciou na casa dos avós foi, sem dúvida, um assassinato.

Mas que tipo de assassino era aquele que não deixava pistas? Digitais? Vestígios? Agora deveria está a léguas de distância. Já que a polícia nunca conseguiu encontra-lo.

Para divisão de homicídios, estava claro que Renata era a única que poderia ter cometido o crime. Para eles, a tia de Marcelo sofria alguma doença psicológica desconhecida pela família e após uma possível briga com os pais e a irmã, a doença levou-a a cometer a atrocidade. Quando se deu conta do que fez, a mente de Renata achou uma maneira de negar tudo e se esconder da culpa. O que a fez ficar naquele estado. Além de sua condição de saúde, o principal motivo pelo qual eles ainda não haviam agido sobre o caso de Renata era Marcelo. Um policial exemplar e disciplinado. Um exemplo para corporação.

Tudo se encaixava. Era a explicação perfeita. Mas, Marcelo se recusava a acreditar que sua tia fosse capaz de matar. A imagem que Marcelo havia criado de Renata vinha desde de sua infância, quando seus pais tinham algum compromisso e sempre o deixava na casa dos avós sob seus cuidados.

O engraçado era que não eram os seus avós e nem sua outra tia que realizava a tarefa de realmente cuidar do pequeno Marcelo. Na verdade, a relação entre todos os membros de sua família era muito complicada. Seus pais morreram em um acidente quando ele já era adulto, morando sozinho e trabalhando na polícia. Marcelo se surpreendeu que nenhum dos parentes havia comparecido no enterro. O motivo? Ele também não fez questão de descobrir. O que, no final das contas, não fazia ele tão diferente dos demais.

A única que lhe dava carinho, proteção e amor de verdade era Renata. Marcelo se sentia mais à vontade com ela do que com os próprios pais. Como se o único elo que os fazia continuar em um status de família fosse o grande sentimento que tia e sobrinho tinham um pelo outro.

Quando os investigadores disseram que Renata era a possível assassina, Marcelo lembrou-se da adoravel mulher de sua infância. A mulher que lhe deu carinho e atenção. Até mais do que seus próprios avós e pais. Não podia ser. Todos estavam errados.

Com o passar do tempo, Marcelo ficava mais obcecado. Dedicava seu tempo na busca de pistas que comprovassem a inocência de Renata. Mas, todas as tentativas foram em vão. Seus colegas da delegacia perceberam que aquilo estava o afetando e decidiram continuar a investigação em sigilo.

Entretanto, Marcelo não se sentia vencido. Precisava saber como as coisas estavam indo. Se havia algo novo. Precisava ter acesso ao caso e sabia exatamente onde procurar.

Quando seu turno acabou, às quatro da manhã, ele deixou a viatura no distrito policial que trabalhava para pegar seu carro e ir embora. Mas, em vez de seguir o caminho de casa, ele saiu do estacionamento em direção ao interior do prédio onde ficavam os escritórios da delegacia..

Escondido na escuridão dos corredores, Marcelo chegou até a sala de André. Seu superior e delegado responsável pelos casos que aconteciam no bairro. Geralmente a sala onde ficavam os processos dos casos era outra. Mas, conhecendo bem seu superior, Marcelo achava que o caso de sua família estaria escondido na sala dele. Um lugar onde ninguém entraria sem sua permissão. O exemplar policial Marcelo não era um bisbilhoteiro.

Parecia que o delegado não o conhecia tão bem assim.

Marcelo não sabia se André ainda estava pelo prédio ou não. Por isso ao ver a sala vazia, não perdeu tempo. Não estava trancada. Sinal de que ele ainda estava por perto. Mesmo assim, Marcelo decidiu arriscar. Procurou direto nas gavetas. E finalmente, entre papéis e outros objetos, conseguiu achar uma pasta parda.

Passou por cada papel que estava dentro da pasta com rapidez. Já tinha visto inúmeras vezes as fotos dos parentes mortos. Imagens ruins de ver. Por mais distantes que fossem. Depoimentos da vizinhança dizendo que não viram ninguém entrar na casa e seu próprio depoimento. Porém, não era isso que ele procurava.

Correu os olhos pelas as folhas com a intenção de saber o que mais interessava. Informações novas. Na última folha encontrou um verso que dizia: Conclusão parcial e depois de dois pontos uma palavras escrita de caneta. Renata Morais, filha e irmã das vítimas, teve um surto psicótico e cometeu o crime.

— Só pode tá brincando! — Marcelo exclamou, escandalizado.

— Pensava que você fosse mais esperto, Marcelo. Nem esperou eu ir embora...

André apareceu às costas de Marcelo com uma expressão questionadora. Marcelo não se intimidou. Virou-se para ele balançando a pasta no ar.

— É alguma brincadeira, André? — Marcelo falou irritado.

André se aproximou com cautela. Tentou apaziguar a tensão que vinha de Marcelo adotando um tom paternal. Por isso falou com calma e sabedoria.

— É a única explicação possível. Não foi encontrado DNA de ninguém que não fosse suas tias e seus avós. Não temos provas de que foi ela, mas...

— Não tem provas porque não foi ela.

— Só não será a partir do dia que ela levantar da cama e começar a falar tudo que aconteceu. Até então...

Marcelo sentia-se incompreendido. Lutando uma guerra sem nenhum aliado. Apenas inimigos. Jogou os papéis para longe e apoiou-se na mesa com os braços cruzados. Tinha momentos, André pensou, Marcelo parecia muito imaturo. Mesmo assim, não podia julgá-lo. Aquela história havia mexido muito com ele.

— Eu sei que é sobre sua família. Mas, vamos encerrar o caso como não resolvido e arquivar. É a melhor solução.

— O assassino ainda está solto por aí e não vamos fazer nada?

— Nesses anos de serviços, quantos casos você viu sem solução? E quantos assassinos estão soltos por aí? É a melhor saída. Já que sua tia não pode se defender.

Leda foi animada para o seu primeiro dia de trabalho. A conversa na noite anterior com Luan, Luiza e Eva foi muito libertadora. As reações foram diferentes quando souberam que a mãe não iria passar muito tempo em casa. Luan e Luiza compartilharam os mesmos sentimentos. Apreensivos. Eva mostrou-se mais madura. Compreendeu e disse Leda não se preocupasse porque os três cuidariam da casa. Mesmo com o protesto dos irmãos, que pareciam não confiar muito naquilo.

Caren, a assustada jovem que cuidava de Renata, recebeu Leda com um brilho que dava para ver no fundo de suas olheiras. Parecia que ela não dormira direito à noite.

— Pensava que você não viria... — Carmen quis ser rude, mas, acabou no final, dando um risinho encabulado. Leda estreitou os olhos e observou o relógio. Sete horas. Mais pontual impossível.

Caren continuava como o dia anterior. Assustada e olhando ao redor. Como se tivesse fazendo a segurança de sua própria retaguarda. Ela repassava as tarefas diárias que fazia com Renata, como vestir roupa, dar comida pela sonda, banho e higiene. Leda teve que elevar sua atenção ao máximo para entender tudo. Pois, Caren falava depressa.

No final, quando analisava o corpo imóvel de Renata na cama com os olhos abertos e inexpressivos, Leda quis perguntar algo.

— Eu posso levar ela... — Antes que completasse a pergunta: eu posso levar ela para sala de vez enquanto, Leda ouviu passos apressados se distanciando e logo depois uma porta batendo com força. Assustada, ela tentou procurar Caren no quarto mas, ela não estava mais ali. — Caren? Oi?

Leda chegou na sala e viu a porta da frente entreaberta. Caren foi embora. Ou melhor, fugiu igual a um pássaro quando abrem a sua gaiola.

***

Os primeiros dia de trabalho foram extremamente fáceis. Até mais do que as experiências anteriores de Leda. A diferença era que Renata não falava e muito menos andava. Para lhe dar banho era necessário colocá-la em uma cadeira de rodas. Renata era tão leve que ela poderia pegá-la com um braço só. Trocava suas fraldas na cama mesmo. Na hora de alimentá-la, Leda colocava uma mistura líquida e neutra pelo tubo com pouco mais de 50 centímetros que ultrapassava o abdômen da enferma.

Sentiu que a tranquilidade estava ali com ela. Sem ninguém para discutir, sem esforço excessivo... Não sentia falta alguma de seus filhos. Preferia a companhia da Santa Renata.

A diarista chegou e arrumou a casa em tempo recorde e foi embora. No final do dia, quando já não tinha mais nada para fazer, Leda sentou-se numa poltrona ao lado da cama de Renata e se acomodou.

Ao analisar melhor a situação, Leda perguntou a si mesma: "Que doença psicológica era aquela que deixava uma pessoa assim?". Um triplo assassinato não era qualquer coisa. Mas, quantos assassinatos muito mais bizarros aconteciam? A pessoa que sobrevivi a um episódio desse, geralmente precisa de algumas sessões de terapia. Mas, ficar sem falar, andar, comer? Leda nunca tinha visto. Renata só podia ter uma mente muito fraca.

Ao mesmo tempo em que o silêncio pode ser benéfico, ele também pode ser tedioso. Depois de ficar algum tempo fixando o olhar permanentemente em Renata, Leda começou a fechar os olhos até cochilar.

— Vadia! Vadia!

Leda acordou com uma respiração a poucos centímetros dela. Reconheceu Renata com o rosto quase colado no seu. Vivo e psicótico. Repetia sem parar: vadia! vadia!

Renata ficou furiosa de repente e a atacou com uma tapa forte na cara. A dor foi tão grande que Leda chegou a pensar que um homem possuidor de uma força descomunal havia lhe batido..

Leda levantou-se com um pulo da cadeira e colocou a mão na bochecha. O quarto estava do mesmo jeito de poucos minutos atrás. Silencioso. Renata continuava dormindo em sua cama. Nada havia mudado.

Leda não conseguia parar de pensar na dor em seu rosto. Pior ainda era não conseguir entender como ela havia sido agredida se a única pessoa dentro do quarto não se mexeu.

— Não pode ser. — Leda sussurrou, confusa. Ela foi até o banheiro e examinou o rosto meticulosamente. Nem uma marca, nenhum vermelhidão. Então, porque seu rosto continuava ardendo tanto?

Apesar de ter sido uma experiência fora do comum e improvável, Leda tentou pensar com racionalidade. Antes de adormecer, ela fixou sua atenção em Renata e passou o dia todo cuidando dela. Já tinha ouvido falar disso antes. Os sonhos são vestígios do consciente no subconsciente. A dor que sentia só podia ser uma má posição na poltrona.

— Resolvido e esquecido. — Respirou fundo, riu um pouco de si mesma por ter cogitado a possibilidade de algo sobrenatural e foi para sala assistir TV. Leda conseguiu assistir dois filmes de uma vez. Não conseguia mais dormir.

Apesar do incidente do dia anterior, as coisas ficaram tranquilas no dia seguinte. O que reforçou a teoria dela de que os eventos do dia anterior foram fruto de sua imaginação.

Leda cuidou de Renata e depois de alimentá-la foi fazer um lanche na cozinha. Enquanto passava manteiga no pão, Leda ficou totalmente por fora do que acontecia ao seu redor. Tanto que nem lembrou que não tinha trancado a porta da frente. Ela não viu quando alguém entrou em silêncio.

Leda não tinha noção dos passos que avançavam atrás dela. Não percebeu a presença se aproximando aos poucos. Uma mão de repente segurou sua cintura com força. Leda soltou um grito e virou-se com a faca apontada para frente..

— Ai, mãe! Sou eu! — Luan recuou o abdômen com um pulo para trás desviando de um golpe sem misericórdia que vinha da mãe. Luiza apareceu de trás da parede da cozinha rindo aos montes. — Eu te disse Luiza. Se duvidar ela acaba matando a gente! — Luan falou se sentindo ofendido e ainda se recuperando do baque do ataque que tinha acabado de sofrer.

Leda colocou a mão no coração e jogou a faca no balcão. Depois de expirar e inspirar várias vezes, encarou os filhos.

— Mas que porra vocês estão fazendo aqui?

— Lá em casa tá muito chato! – Luiza saiu de onde estava e andou pela cozinha até a geladeira.

— Como vocês descobriram o endereço? Eu não falei endereço nenhum para vocês. Leda falou com desespero e olhos marejados. Seu momento de tranquilidade tinha acabado.

— A senhora é antiquada o bastante para anotar um endereço no bloco de notas e colocar no imã da geladeira para não esquecer.

Já mais calmo, Luan avançou para o sanduíche que Leda estava preparando e deu uma mordida despreocupada enquanto ela se odiava por ter deixado passar um detalhe tão simples na geladeira.

— Cadê a Eva?

— Não sei. Saiu cedo de casa e ainda não voltou.

— Ela disse para onde ia?

— Não. E nem precisa, né, mãe? Coisa ruim ela não deve estar fazendo. Lerda daquele jeito... Não é a toa que ainda é virgem... — Luan olhou para Luiza e os dois começaram a rir zombando da irmã. Leda percebeu que as coisas estavam saindo do controle e tomou as rédeas novamente.

— Ok! Vocês já me viram. Fico feliz em saber que a primeira coisa que fazem quando estão entediados é ir atrás de mim. Agora vocês já podem ir. Vão embora, vai..

— Cadê a tal da Renata? — Luiza perguntou curiosa. E sem dar a mínima para Leda, ela fechou a geladeira com uma maçã na mão.

— Não importa. Vão embora! — Leda começava a perder a paciência, apontando para saída.

— Nós vamos. Calma. Só queremos conhecer a vegetal.

Luan, Luiza e Leda foram até o quarto de Renata. Nada de novo. Nada de interessante naquela mulher na cama. Luan e Luiza olhavam para Renata, curiosos. A analisaram a mulher fazendo uma careta enigmática.

— Ela está viva mesmo? — Luan perguntou.

— Se ela não tivesse, a mãe não estaria aqui, seu retardado. — Luiza respondeu.

Vendo que Luan estava a ponto de revidar e prevendo uma discussão Leda se meteu no meio.

— Já deu. Já viram a mulher. Agora rua. — Leda saiu do quarto empurrando Luan. O filho que estava mais perto dela.

— Por que? Nem conhecemos a casa toda. — Luan protestou, deixando Leda levá-lo. Luiza foi atrás. Porém, parou na porta. Um sussurro a fez parar. Leda e Luan não estavam por perto. Mas, quem falaria em um quarto onde ela estava sozinha com uma mulher presa na cama? O sussurro continuou mesmo que incompreensível, mas por outro lado angustiante. Era como se algo estivesse se infiltrando aos poucos em sua mente. Mesmo sem acreditar no que estava fazendo, ela deu meia-volta e se aproximou de Renata. Quando se aproximou mais, viu que seus lábios fazia leves movimentos. Se Renata tivesse em seu estado normal, Luiza podia jurar que ela estava rezando. Mas como poderia ser? Ela não se movia, não abria os olhos... Somente movimentava os lábios. Curiosa para escutar o que Renata falava, Luiza se aproximou mais até se inclinar e ficar a poucos centímetros de sua boca. Colocou o ouvido próximo para poder escutar. Mesmo assim só conseguia ouvir uma voz fraca, quase sumindo.

— O que? — Luiza pensou que podia dialogar com ela e perguntou com sua agressividade habitual. Renata sussurrou de novo e ela se concentrou o melhor que pode.

— Me... Ajuda...

Luiza virou a cabeça para encarar Renata e arregalou os olhos.

— Luiza? O que você ainda está fazendo aqui? — Leda chegou com alarde. Como um sonho que termina no meio de algo importante assim que você acorda, Luiza assustada pulou longe da cama de Renata ao sair de sua imersão para a voz aguda da mãe. Olhou novamente para boca de Renata e viu que ela nem se mexia. — Eu falei para você sair daqui.

Leda pegou a mão de Luiza e foi saindo do quarto. A garota não parava de olhar para Renata. Tentava falar, mas as palavras demoravam a sair.

— O que ela tem mesmo? Ela pode falar? Por que ela acabou de falar...

— Deixa de história Luiza. Ela não fala. Há mais de um ano.

— Mas, ela falou...

— Cala boca. — Leda interrompeu. Deixou Luiza definitivamente do lado de fora do quarto e fechou a porta. — Se ela nunca falou uma palavra para o sobrinho que é da família, porque falaria com você?

Luiza e Luan não foram embora como Leda mandou. Eles ficaram um bom tempo conhecendo e desfrutando da casa que era maior e mais confortável do que o seu apartamento pobre na favela.

Passaram por todos os cômodos sempre supervisionados por Leda, que a princípio estava irritada, mas depois de um tempo acabou esquecendo o motivo.

Luan chegou a um quarto no andar de cima com uma cama de casal enorme e deitou em cima dela como se tivesse acabado de colocar as costas em um pedaço de nuvem macia.

— A senhora dorme aqui? Queria uma cama tão gostasa como essa lá em casa...

Leda encostou-se na entrada da porta e sorriu com uma cara travessa. Encontrou um momento para se vingar.

— Eu prefiro dormir na sala. Não gosto de dormir em cama de mortos.

Luan ficou paralisado de repente.

— O que? — Ele perguntou ainda olhando para o teto. Leda tentou não rir. Sabia o quanto o filho era medroso.

— Sim. Esse é o quarto dos donos da casa. Eles morreram. E dizem que foram assassinados. A única que sobrou foi aquela pobre mulher lá embaixo.

— Que fome. — Luan saiu rígido da cama e apressou os passos até a escada. — Vou comer. Você vem Luiza?

Ele gritou da ponta da escada.

Luiza que até então explorava os outros dois quartos do segundo andar, apareceu do nada e desceu as escadas com o irmão gêmeo.

Para Leda, restava aceitar que eles não iriam embora tão cedo.

Finalmente, Luiza e Luan foram embora quando anoiteceu e Leda pode ficar sozinha. Deu uma última checada em Renata, viu que ela estava respirando, foi para a sala e passou mais uma noite assistindo televisão. Acabou adormecendo facilmente, tombando para um lado do sofá e deixando a TV aberta.

Porém o aparelho não ficou ligado por muito tempo. Ele desligou de repente. Sem que Leda acordasse ou notasse que a TV não iluminava mais o seu rosto.

Passos pesados subiram as escadas atrás dela.

***

No dia seguinte, Leda sentindo-se estranha. Seu corpo doía como se tivesse corrido uma maratona. O que era estranho, pois aquele emprego era o mais tranquilo que já teve e mal se cansava. Arrastou-se até a cozinha para fazer o seu café da manhã.

Leda não conseguia tomar seu café sem leite. Ela procurou por toda parte da geladeira e depois na dispensa. Não encontrou nada. Mesmo sabendo que no dia anterior jurava ter visto uma caixa ainda cheia.

— Aqueles merdinhas! — Leda falou rangendo os dentes.

Trocou de roupa com rapidez. O mercadinho não ficava muito longe. Renata não morreria se ficasse sozinha em casa por alguns minutos. Na verdade, ela nem se importaria.

— Não saia daí. — Leda falou quando entrou no quarto para ver Renata. Virou as costas balançando cabeça sem acreditar que tinha feito uma piada tão mórbida.

Como já tinha previsto, para ir ao mercadinho e voltar com a caixa de leite, Leda não demorou quinze minutos. Ao abrir a porta, levou um susto que nunca imaginou passar na vida. Não sabia a sensação de ter sua casa invadida. Mas, ao ver o que viu, a única coisa que conseguia sentir era insegurança. Mesmo tendo certeza absoluta que não tinha saído sem trancar a porta. Ver o que viu assim que colocou o pé na sala, era humanamente impossível.

Como explicar o fato dos sofás estarem de cabeça para baixo, a televisão caída no chão, os quadros fora da parede, a sala completamente bagunçada?

Um mal súbito, uma mistura de medo e nervosismo fez com que suas pernas ficarem bambas e sua respiração ofegante. Precisava chegar até a cozinha, ver como Renata estava. Mas demorou um tempo para que Leda colocasse um pé atrás do outro e conseguisse andar com passos silenciosos até a cozinha.

E se alguém realmente tivesse entrado na casa? Se alguém estivesse escondido? Ela estava sozinha. Sem ter como se defender.

Leda se escondeu atrás da parede que separava a sala da cozinha. Fechou os olhos rapidamente tentando imaginar que aquilo não estava acontecendo. Uma situação que ninguém havia invadido a casa e que ela não estava correndo perigo. Trincou os dentes e juntou as forças que precisava para o caso de partir para o ataque.

Leda pulou na cozinha de uma vez com um grito de bravura com os punhos cerrados à frente de seu corpo. Porém, ninguém estava lá. Leda suspiraria aliviada se não tivesse visto algo mais impressionante. Colocou as mãos na boca para segurar seu queixo caído.

Igual a sala, a cozinha também estava destruída. A geladeira aberta, tudo que estava dentro dela no chão, vidros espatifados, cadeiras caídas... Era como se alguém tivesse entrado só para destruir. Analisando melhor, não era trabalho de uma pessoa só.

— Ah, não! — Passou pela cabeça de Leda um leve vislumbre do quarto onde Renata estava. Destruição por toda parte e ela caída no chão, indefesa. Correu em disparada para o quarto ao lado.

O cômodo estava arrumado. Do jeito que ela tinha deixado. Imaculado. Com nada fora do lugar. Renata continuava deitada na cama, dormindo. Por incrível que pudesse parecer, quem tivesse invadido a casa, não havia chegado perto de Renata.

Leda segurou-se no vão da porta recobrando o fôlego. Uma sensação parecida com o episódio que ela sonhou com Renata, firme e forte, dando-lhe uma tapa na cara.

Não queria aceitar. Estava longe do seu entendimento. Precisava de algo para segurar sua teoria de que pessoas invadiram a casa e por pena, talvez, não fizeram nada com uma mulher doente.

Ela subiu as escadas. Agora sem medo algum de ver um estranho. Na verdade, ela queria encontrar um. O quarto de casal, também estava bagunçado. O vizinho, também estava. Leda abria a porta dos quartos, destemida e também com uma ponta de desespero. Abriu a última porta. O antigo quarto de Renata. Nada fora do lugar.

— Que merda está acontecendo aqui?

Desceu as escadas novamente e andou para cozinha. Várias teorias borbulhavam em sua mente. A maioria delas fazia Leda olhar para o quarto que Renata dormia.

— Você só pode está louca, Leda. — Ela começou a rir, desacreditada. Porém, o riso não era cômico e sim um pouco perturbado.

Em pé, encostou os cotovelos no balcão da cozinha e usou as mãos para massagear as têmporas. Discou o número da diarista. Não era sua culpa a casa estar daquele jeito. Leda não sentiu na obrigação de limpar nada. Mas, o telefone dela chamava até perder o sinal. Leda tentou por três vezes em vão. Ficou ereta de novo e colocou as mãos na cintura. Os seus ombros caíram quando ela passou a vista pela cozinha. Discou outro número no celular. Desta vez foi atendida.

— Eva? Mamãe precisa de ajuda...

Eva não estava em casa quando Leda chamou. Contrariada, ela acabou aceitando ajudar Leda e foi direto para casa de Renata. As duas dedicaram o resto da manhã para fazer uma faxina na casa e resgatar as coisas que ainda podiam ser aproveitadas e que não estavam quebradas.

Leda ligou para Marcelo e contou a versão mais aceitável do acontecido: que se esquecera de trancar a porta porque pensou que sua ida ao mercado demoraria pouco. Aí, alguns moleques entraram na casa apenas com o intuito de vandalizar.

Leda sabia que sua imagem diante de seu empregador ficaria manchada. Mas, antes ser chamada de irresponsável do que de louca. Como resposta, Marcelo só disse que passaria para visitar a sua tia mais tarde.

Enquanto faziam o serviço doméstico, Eva percebeu algo estranho nas feições da mãe. Ela estava tensa e pouco falante. Totalmente diferente do que costumava ser.

A tarefa de colocar a casa em ordem terminou quase na hora do almoço. As duas pediram comida pelo delivery e sentaram na mesa. Enquanto mastigava, Eva dava rápidas olhadas para mãe, enquanto Leda comia com rapidez, quase sem respirar. Não era uma tarefa fácil ter uma conversa amigável com ela. As duas nunca falavam de assuntos de mulher, como menstruação, namoro ou sexo. Muito menos sobre os sentimentos de cada uma

— Que coisa sem noção, não é? Entrar na casa de estranhos sem roubar nada...

Eva comentou fingindo não dar importância para própria declaração. Essa era a sua estratégia para chamar a atenção da mãe.

— Cada gente estranha nesse mundo... — Leda comentou de boca cheia, sem nenhum interesse. Pelo menos era o que demostrava. Precisava, com desespero, contar para alguém a teoria maluca que pipocava sem parar em sua cabeça. Talvez quando ouvisse as próprias palavras saindo de sua boca, sua teoria pudesse ficar mais insustentável.

— Tem certeza que a senhora não viu ninguém? Porque... Não consigo imaginar como alguém poderia...

Não teve jeito. Leda estava a fim de desabafar e Eva estava disposta a ouvir. Ela bateu a mão na cadeira para Eva parar de falar.

— Eu não vi ninguém. Não tinha ninguém para ver. — Leda falou alto e fora de controle. Em vez de se mostrar aliviada por está desabafando, ela se protegeu mais ainda atrás do muro que existia entre ela e a filha. Eva a olhou, ofendida. Então, Leda tentou manter a compostura. — Eu acho que não foi um estranho. Eu tranquei a porta quando sai e destranquei quando cheguei. Tenho certeza disso. Só tinha uma pessoa na casa.

Finalmente Leda derrubou suas defesas e suspirou tentando acreditar que aquelas palavras saiam de sua boca. Olhou em direção ao cômodo vizinho.

— Ela.

Eva seguiu o olhar de Leda e encaram o quarto juntas. De onde estavam sentadas, podiam ver a porta entreaberta e uma parte da cama.

— A senhora está falando que ela... – Inconscientemente, Eva sussurrava enquanto encontrava o olhar de Leda. Como se Renata pudesse ouvir. — Pode ter se levantado e decidido quebrar tudo? O problema dela não é físico. É mental, não é? Será que ela está ficando boa? Não que quebrar as coisas dentro de casa seja algo normal...

— A questão não é essa. — Leda também continuou com o sussurro involuntário. Olhava de vez enquanto para a porta do quarto com medo se ser pega. — Mesmo que ela tenha acordado... Você viu... No estado que aquela mulher está não conseguiria nem levantar uma pena. Só se ela estivesse...

Leda balançou a cabeça novamente. O rosto corou. Aquilo continuava a ser algo inacreditável. Eva não estava reagindo da mesma forma. Pelo contrário. Eva acreditava. Colocou seu tronco mais para frente e se aproximou mais de Leda.

— Se ela estivesse possuída?

Leda riu com deboche.

— Que imaginação você tem, hein, Eva? Essas coisas não existem. — Leda levantou-se da cadeira, pegou os pratos e colocou na pia. Eva continuou sentada, seguindo a mãe com o olhar.

— Por que não? Eu já li vários casos sobre entidades demoníacas que possuem pessoas de várias maneiras diferentes. — Eva não sentiu vergonha de mostrar seu argumento. — As outras pessoas da casa morreram e até agora não acharam o culpado, não é? E se, de alguma forma, ela teve algo a ver com isso. Só de uma forma mais... sinistra?

— Você está assistindo filme demais, isso sim. Demônios não existem, fantasma não existem, fadas e duendes também não... Tudo é fruto da imaginação de alguém que quer ganhar dinheiro com o medo dos outros.

Leda continuou lavando os pratos. Eva observou. Não queria perder uma batalha na qual ela tinha certeza que estava no lado certo. Por outro lado, pensar que aquilo poderia ser verdade, não fez Eva se sentir bem.

Leda era agnóstica. Não acreditava em nada que não tivesse uma explicação lógica e embasada. Nada que não fizesse parte do real e de carne e osso não fazia sentido.

Já Eva era jovem. A ficção mostrada em filmes de terror também a influenciava, era verdade. Mas, ela tinha informações e acesso a todos os meios de comunicações possíveis para achar que sim. Demônios existiam. Compartilhavam o mesmo mundo dos humanos pelo simples motivo de fazer o mal. Porque o mal era real.

— Só acho que é melhor prevenir do que remediar. Não é seguro.

— E eu acho que você deve tomar um banho. Você está imunda. Sobe. Tem um banheiro lá em cima. — Leda voltou sua atenção para pia. Mas, ainda resmungava. — Não sei por que fui te contar essas coisas. Já fica inventando caso.

Eva fez uma careta de derrota e preparou-se para sair da cozinha. Não precisava Leda falar duas vezes para Eva obedecer.

— E nem pense em contar isso para ninguém, está ouvindo? — Leda chamou a atenção de Eva com o tom de voz imperativo. Sem olhar para trás.. — Não vou perder meu emprego por causa de uma besteira dessas.

Eva subiu as escadas e procurou o banheiro que Leda tinha falado. Só conseguiu encontrar um no último quarto. O quarto de Renata. Eva notou as coisas ao seu redor. Parecia uma caixa fechada claustrofobia e cheirando levemente a mofo. Sem janelas, nenhuma saída a não ser a da porta. Um quarto sem muita vida. Com tons de marrom e areia. Fotografias variadas nos porta-retratos em uma escrivaninha evidenciava uma mulher saudável, sorridente e atraente posando em vários planos de fundo diferentes. Na praia, no campo, na serra...evidenciava uma pessoa que um dia tinha conhecido muitos lugares. Outra foto, em especial, com textura amarelada, contrastava com as demais. A única que ela estava acompanhada. Uma Renata completamente diferente, mais jovem, estava junto com um menino de uns cinco anos. Os dois estavam abraçados. A ternura transbordando além da imagem.

Eva abriu a porta do guarda-roupa para ver se encontrava alguma toalha. Passando o olhar rápido pelas roupas que ainda continuavam suspensas nos cabides, Eva encontrou na prateleira de cima, algumas toalhas dobradas. Ficou na ponta dos pés até conseguir alcançar. A toalha acabou chegando toda desajeitada em suas mãos e algo caiu em cima de seu pé.

Eva olhou para o chão e viu um pequeno caderno de capa dura. Antes de pegá-lo e folheá-lo olhou para os lados com uma sensação incrível de que estava sendo observada.

Metade das folhas do caderno estava escrito com uma letra legível e redonda que fez Eva lembrar de uma professora que gostava muito no jardim de infância. Linkando com as fotos da escrivaninha de Renata amável e com sua lembrança nostálgica não demorou para Eva concluir quem ela era a dona do caderno. Na verdade um diário. Porque as anotações não eram aleatórias. As anotações estavam com datas na maioria de dois anos atrás.

"Hoje o Marcelo veio me visitar...".

"Ela me aconselhou a procurar algo mais espiritual...".

"Meus pais não entendem...".

Eva folheava com pressa. Passando direto por algumas partes. Só conseguiu ler alguns fragmentos. Olhou para o relógio e soltou um palavrão. Lembrou que tinha um compromisso e estava atrasada. Ficou dividida entre sentar e ler o diário e correr para tomar banho logo e ir embora.

Antes de jogar o caderno na cama, Eva deu mais uma olhada nas folhas seguintes. As letras começaram a mudar. Ficaram incompreensíveis e quase impossível de ler. Mas, Eva era perspicaz e conseguiu entender algumas palavras.

"Estão me afastando de quem eu amo...".

"Não aguento mais ouvir...".

"Talvez eu fique louca...".

As dez folhas seguintes estavam em branco.

Eva tomou um banho rápido na suíte dentro do quarto e em poucos minutos estava de volta. Olhando para o diário em cima da cama e se perguntando o que Renata queria dizer com "Talvez eu fique louca...", perdeu-se no tempo e só voltou a si quando alguém entrou no quarto de supetão.

Olhou em direção a porta e soltou um gritinho silencioso, mas assustado. Um homem alto, alvo e de cabelos castanhos a olhava de volta com uma expressão analitica. Eva olhou para si mesmo e percebeu que só estava de calcinha e sutiã. Pegou a toalha e cobriu-se.

— Desculpa. Pensava que não tinha ninguém aqui...

— Não preci... — Eva começou a argumentar. No começo sentiu-se constrangida, mas percebendo que poderia ser Marcelo, o homem que contratou sua mãe, ela tentou se desculpar também. Afinal, a intrusa era ela. Mas Marcelo não esperou Eva falar. Fechou a porta e sumiu de sua visão. Eva ficou um tempo olhando para porta, sem ação. Depois vestiu suas roupas e levou o diário com ela.

Quando desceu , encontrou Leda na cozinha acompanhada. Marcelo conversava com ela. Quando seus olhares se encontraram, ele deu um sorriso amarelo para ela e Eva apenas cumprimentou. Ela escondeu, sem ninguém perceber, o diário em sua bolsa.

— Marcelo, essa é minha filha Eva. Chamei ela para me ajudar a arrumar a casa. Não fiz mal, fiz?

— Não. — Marcelo respondeu de imediato. Virou-se para Eva e a cumprimentou com um aperto de mão. — E desculpe novamente por...

Marcelo apontou para cima. Eva entendeu e soltou uma careta despreocupada. O assunto acabou ali.

— Então, estou indo. — Leda ajeitou a postura e pegou sua bolsa.

— Aonde a senhora vai?

— Vou fazer as compras. Não sobrou nada depois daquilo.

— Eu também tenho que ir.

— Não. Você não pode. Fica aqui enquanto eu volto. Não quero deixar essa casa sozinha.

— Mas, mãe... — Eva choramingou. O seu compromisso estava mais do que atrasado. Apontou para Marcelo. — Ele está aqui...

— Não discuta. Eu já volto. — Leda falou com firmeza.

— É. Fica. — Marcelo entrou no meio da conversa com mansidão. As duas mulheres o olharam surpresas. — Eu vou embora daqui a pouco. Minha tia vai ficar sozinha.

Eva acalmou-se e analisou Marcelo da cabeça aos pés. Sabia que ele já tinha feito a mesma coisa várias vezes desde que ela chegou na cozinha. Eva acabou achando-o atraente. O que particularmente deixou-a perturbada.

Eva nunca havia reparado em um homem antes. Muito menos nos garotos na época de escola. Ficou curiosa para saber o que aconteceria quando ficassem sozinhos. Aos poucos seu desespero por perder o compromisso havia sumindo. Sentou em uma cadeira como um sinal de que o assunto havia se encerrado.

— Problema resolvido. — Leda saiu da cozinha em direção a porta, mas antes de sair definitivamente, ela aproveitou que Marcelo saiu para ver Renata e encarou a filha. Apontou os dois dedos para o seu olho e depois para o dela.

Eva entendeu que Leda estava a advertindo para não falar sobre a conversa de demônios discutida mais cedo.

Assim que Eva ficou só, Marcelo voltou para cozinha e sentou em uma cadeira ao lado dela.

— Ela acordou alguma vez? Quando a chamo, ela abre os olhos. Hoje nem reagiu.

Marcelo falou com um ar preocupado.

— Ela só dorme desde que cheguei. — Eva falou, amigável.

— Vou chamar o doutor Marcio. Isso não é normal. — Marcelo falou mais para si mesmo com um semblante apreensivo.

Eva se deu conta que queria ampliar a conversa com Marcelo puxando ela mesma um assunto.

— Você deve gostar muito dela, não é?

— Sim. Gosto. Mais do que meus pais talvez.

Eva endireitou o corpo na cadeira e franziu a testa. Ficou curiosa.

— Por quê?

— Ah... não sei... — Marcelo revirou os olhos, pensativo.. — Ela me criou melhor do que eles. Minhas melhores lembranças são com ela.

— Eu vi. — Eva lembrou da fotografia no antigo quarto de Renata Sorriu sem querer. Aquela imagem lhe enchia o coração. — A foto de vocês juntos no porta-retrato do quarto. De longe dar para ver que se gostavam muito.

— Sabe, eu poderia ter morado aqui quando eu era mais novo. Com ela. Até com meus avós. Se não fosse... — Sem perceber, Marcelo acabou deixando passar algo involuntário. Mesmo não tendo como voltar atrás, ele tentou disfarçar soltando um risinho nervoso. — Deixa pra lá. Esquece o que eu falei.

— Por quê? — Eva falou, desapontada.

— Não. Deixa pra lá.

— Agora não tem mais volta. Vai ter que falar.

Eva e Marcelo gargalharam juntos. Ela nunca tinha se comportado tão espontânea com alguém.

— Eu não quero que você pense que minha família é maluca. Já basta ter que ouvir o que o pessoal lá da corporação, meu chefe e meus amigos falam.

— Eu não vou achar sua família maluca. Você não conhece minha família.

— Tudo bem. — Marcelo suspirou com força. — Eu deveria ter uns 18 anos mais ou menos. Foi alguns anos antes de entrar na polícia. A tia Renata começou a ter umas neuroses meio... esquisitas. Como não querer sair na rua, achar que a casa estava suja e fazer limpezas excessivas... Ela chegou até tampar a janela do seu quarto dizendo que não aguentava ouvir o barulho das pessoas na rua. Quando a coisa ficou pior, meus avós pediram que ela fosse a um psicólogo. Não sei que remédio receitaram, mas ao poucos ela começava a se recuperar.

"Então, um dia, quando vim visitá-la. Eu quase não a reconheci. Ela não sorriu. Ficou retraída. Mal-humorada. Quando insisti em perguntar o que estava acontecendo, ela se transformou. Do nada, começou a me xingar, me expulsou do quarto dela e disse que nunca mais queria me ver. Fiquei magoado... muito magoado. Fui embora e nunca mais voltei. Até o dia que encontrei todos mortos".

Eva ouvia a história com toda atenção e as frases que conseguiu ler no diário iam se encaixando com a narrativa de Marcelo. Cada vez mais, Eva acreditava que havia algo errado com Renata. Algo que ela lutou contra por muito tempo.

— Depois que ela me expulsou. O que pude saber por alto foi que de alguma forma o que estava acontecendo com a tia Renata, estava afetando meus avós e minha outra tia. Os vizinhos falaram que mal os viam sair.

"E agora, para completar, todo mundo fala que foi ela quem cometeu os assassinatos. Às vezes me pergunto se eu não estivesse ido embora naquele dia e tivesse ajudado ela, talvez nada disso tivesse acontecido".

"Ou estivesse morto também..." O pensamento passou pela mente de Eva. Como falar para Marcelo que talvez, seu chefe, amigos e as pessoas ao redor estivessem certos sobre a autoria de Renata? Como dizer exatamente o que pensava com direito ao assunto sobrenatural sem que Marcelo a achasse uma menininha que acreditava em qualquer coisa? Como ser sutil o suficiente para sua mãe não saber?

Uma tarefa difícil e ao mesmo tempo necessária.

— Marcelo — Eva anunciou assumindo uma postura séria. O encarou do mesmo jeito que fez com Leda mais cedo. — Você acredita no diabo?

— Como?

Marcelo não entendeu a pergunta inicialmente. Mas, não teve tempo de pedir mais explicações pois Eva, naquela altura, havia se distraído com risos travessos ecoando na cozinha. Marcelo não ouviu ouvir de imediato porque estava tentando decidir se estava entorpecido pela pergunta de Eva ou pelo seu rosto delicado e angelical.

Eva conseguia reconhecer aqueles risos como a palma de sua mão. Na entrada, cozinha Luan e Luiza estavam lado a lado simulando movimentos obscenos de uma forma teatral terrível. Enquanto o irmão colocava as duas mãos para frente e movimentava a pélvis para frente e para trás com uma cara orgástica, a irmã fazia uma punheta imaginária com os pulsos fechados, finalizando com uma cara de prazer.

— Puta merda! — Eva grunhiu e logo ficou vermelha. Abaixou a cabeça para evitar que Marcelo visse sua vergonha. Ela ainda não tinha percebido que o motivo pelo qual os irmãos faziam a brincadeira era por causa da aproximação entre ela e Marcelo.Os rostos dos dois estavam próximos que faltavam pouco para se beijarem.

— O que foi? — Marcelo percebeu a reação de Eva e também olhou na mesma direção que há poucos segundos ela olhava. Conseguiu ver ainda uma parte da brincadeira. Assim que Marcelo lançou o olhar para eles, Luan e Luiza pararam e se enrijeceram ao mesmo tempo.

Marcelo balançou a cabeça e riu com prudência. A constrangimento de Eva foi passando quando o encarou e sentiu vontade de rir também.

— Esses são meus irmãos.

— Ah, é? Parece que a família todo está aqui hoje, hein? — Marcelo soltou um comentário irônico. Tão rápido que ninguém da cozinha pareceu se importar.sem dar nenhum sinal de aborrecimento. Apesar disso, ele não parecia está aborrecido de fato. — Tenho que ir.

Marcelo saiu em direção à saída e foi acompanhado por Eva.

— Prazer conhecer vocês.

Teve um determinado momento que os quatro compartilharam o mesmo espaço do vão da porta. A figura imponente e esquia de Marcelo, típica de um guarda, intimidou tanto os gêmeos que eles acabaram o encarando com sorrisos sem graça. Marcelo inflou mais o peitoral de propósito para ver o medo na cara dos dois irmãos. Aquela foi sua forma de vingar Eva pelo seu vexame.

Eva acompanhou Marcelo até o seu carro estacionado logo em frente da casa.

— Desculpa pelos meus irmãos. Eles são impossíveis.

— Não tem problema. Eles são engraçados até. — Marcelo falou com a voz macia.

— Então fica com eles para você. — Eva revirou os olhos de um jeito engraçada e abriu um sorriso.

— Só se você vier junto também.

Marcelo rebateu e Eva retraiu-se. Juntou os braços na frente do corpo, desconcertada. Evitava olhar nos olhos deles.

— Eu precisava desabafar. E você foi a única pessoa que eu consegui falar abertamente sobre tudo. — Marcelo aproximou-se dela. Apesar de estar se esforçando para manter o controle e não bancar o tarado na frente dela e assustá-la, Marcelo perguntou a si mesmo se aquele era o momento certo. Quando sua boca ficou muito próxima a dela e ele viu que Eva estava ofegante e amedrontada, ele apenas sussurrou. — Você é especial, Eva.

Para ele, Eva era sim muito especial. Apenas aquele primeiro encontro entre eles o fez querer vê-la quantas vezes fosse possível. No dia seguinte e no próximo dia e no próximo dia. Porém, por hora, preferiu se despedir. Entrou no carro e antes de dar partida, se despediu com uma piscada sedutora.

"O que tá acontecendo?" Eva passou alguns segundos pensando no meio da rua. Até que foi despertada por um bipe no celular. Uma mensagem.

— Merda! — Eva resmungou e voltou para casa.

Uma onda de prazer tomou conta de todas suas terminações nervosas. Ela com a barriga encostada no mármore do balcão da cozinha. Ele colado no quadril dela. Uma perversão que ela nunca imaginou que lhe causaria tanta satisfação. Ele se movimentava dentro dela com rapidez. Suor, gemidos e puxões de cabelo e pele. Ele ficou mais rápido. Enlaçou o cabelo dela nos seus dedos e a puxou mais para si. Agora as costas dela estavam próximas ao peito dele. Boca encostada na orelha. Ela estremeceu.

— Você é especial, Eva! — A voz de Marcelo penetrou em seu ouvido com a respiração ofegante.

Eva soltou um grito. O grito do prazer consumado.

— Está pensando em quê?

Eva despertou daquele sonho sensual quando uma voz mansa e feminina também penetrou em seu ouvido tal como a de Marcelo anteriormente. Era Camila, sua namorada. Quando abriu os olhos, percebeu que havia dormido com o diário de Renata nas mãos.

Camila, a garota de cabelos curtos com uma franja caindo no rosto que estava na cama com Eva tinha a mesma idade dela. Apenas de roupas íntimas, deitou a cabeça no ombro dela.

— Nada de importante. — Eva deu um sorriso sereno e alisou a cabeça de Camila com carinho. Ela estava no lugar onde se sentia mais confortável consigo mesma. Acreditava que a fantasia sexual que acabara de ter com Marcelo, se devia ao fato da atração inédita com o sexo oposto. Porém, não se sentia feliz com isso. Eva torcia para que Marcelo saísse sem demora de seu pensamento. Realmente esperava esquecer-se do que sentiu no sonho.

Eva conheceu Camila quando ainda estudavam no ensino médio. Primeiro se tornaram amigas e depois se descobriram apaixonadas uma pela outra. Enquanto os colegas de sala e suas próprias famílias pensavam que as meninas apenas nutriam uma amizade forte, quando estavam a sós, elas sabiam que era mais do que isso. Eva estava envolvida o suficiente com Camila para não sentir atração por nenhum homem. Pelo menos até aquele dia.

— Humm... Sei. Muito envergonhada para não ser nada de importante. — Camila levantou o rosto para cima e a beijou. O clima esquentou com os beijos até que Camila ficar por cima de Eva. Entre carinhos e enrolar de braços, Camila desceu a mão para dentro da calcinha de Eva. Ela tirou a mão de Camila imediatamente e disfarçou o desconforto com um sorriso.

— Você acabou comigo. Ainda quer mais? - Ela tentou brincar.

Camila franziu a testa e apoiou os cotovelos no colchão para observar a namorada.

Eva sentiu-se em uma encruzilhada. O que diria para Camila? Assumiria a atração por um desconhecido que nem sabia se veria de novo? Ela tinha medo de Camila achá-la uma garota confusa com sua orientação sexual e preferir ir atrás de outra mais resolvida.

Com Camila pronta para fazer perguntas e com Eva sem saber o que responder, seu celular tocou. Eva deu um pulo e sentou na beira da cama. Camila observou tudo ainda perplexa.

— Alô?

Era Leda falando com um atropelo de palavras.

— Espera, mãe. Fala devagar. Não tô entendendo.

— Ela morreu. A Renata morreu.

— Como... Como assim, morreu?

— Ah! Eva. Morreu de não respirar mais.

— Não pode ser...

— Pode. E agora venha aqui. Precisamos de sua ajuda.

Eva se levantou da cama e se distanciou de Camila.

— Mas, mãe... — Eva sussurrou olhando de soslaio para Camila.

— Nada de "mas mãe". Onde você está afinal, Eva?

— Em lugar nenhum. — Eva respondeu, mas depois ficou desconsertada. Alternou o olhar entre Camila e o chão. — Em lugar nenhum.

Camila desabou na cama com um suspiro cansado pressionado pelos lençóis.

Eva ouviu mais algumas palavras em silêncio. Quando finalmente desligou o celular, ela voltou para perto da cama e ficou olhando Camila de cima.

— Preciso ir. — Eva falou com um pesar na voz.

— Você precisa contar a verdade para ela. Isso sim. — Camila falou com a voz ainda abafada pelo colchão.

— Está falando de quê? — Eva sacudiu a cabeça e virou as costas. Pegou suas roupas no chão e as vestiu. Camila perdeu a paciência e sentou na cama com brutalidade.

— Lógico que você sabe. Você precisa contar para sua mãe, para sua família, sobre nós. Você sabe que não é justo!— Camila encheu os olhos de lágrimas e sua voz engasgou..

Eva sabia que Camila não estava errada. Quando saíram do ensino médio, Camila tomou coragem e saiu do armário. Contou aos seus pais que era lésbica. No começo não foi fácil. Seus pais a ignoraram e a maioria lhe virou as costas. Mas agora, com o tempo, parecia que eles haviam se acostumado com a ideia. Mesmo assim, nada era como antes.

Camila cobrava a mesma coisa de Eva. Mas, para ela as coisas eram muito mais difíceis. Leda, Luan e Luiza eram o triplo do problema. Parecia que os três viviam em seu círculo próprio. Com Eva querendo entrar sem ser convidada. Não aguentaria ouvir Leda resmungar "Onde foi que eu errei?". E nem as piadinhas de mal gosto de Luan e Luiza. Seria um inferno.

Eva terminou de vestir a roupa e parou na frente de Camila, como se quisesse pedir desculpas.

— Eu ainda não posso fazer isso. Seria demais para eles...

— Eles não merecem toda essa sua consideração. Você sabe, não é? — Camila falou, já sem esperanças. Eva ficou calada por um instante, pensativa e desconcertada.

— Já vou. Mais tarde conversamos. — Sem se aproximar ou se despedir de maneira mais amorosa, Eva passou por Camila com apressa e fechou a porta do quarto.

Camila precisava colocar o pé no chão. No modo literal e figurativo. Sentou na cama e refletiu no que faria. Estava começando a cansar da situação. Virou a cabeça para o lado e acabou notando algo que não era seu em cima da cama. Um caderno com capa dura que nunca vira antes. Sem pensar muito, Camila o pegou e o abriu na primeira página.

"A psicóloga disse que escrever um diário ajudaria a entender o que eu estou sentindo. Espero que isso dê certo e que consiga me expressar totalmente. Pena que não posso fazer disso uma rotina. Só quando eu me sentir eu mesma. Dentro do meu corpo. Quando não puder mais me controlar, tenho medo do que irá acontecer...".

Eva saiu da casa de Camila e pegou o primeiro ônibus que viu, tentando não chorar. Eram mais ou menos umas cinco da tarde. Faltavam alguns minutos para sol desaparecer. Porém, naquela tarde, ele decidiu ir embora mais cedo. De uma hora para outra começou cair uma chuva forte na cidade. Eva desceu do ônibus irritada por não ter coragem de tomar decisões em sua vida e por não conseguir se abrigar da chuva torrencial e dos trovões que rasgavam o céu.

— Tá de brincadeira! — Eva falou, áspera. Ainda faltavam dois quarteirões para chegar na casa, colocou a bolsa na cabeça e começou a correr.

Eva chegou encharcada. Sem cerimônia, ela avançou pelos cômodos procurando a mãe. Luan e Luiza também estavam na casa, mas ela nos os naquele momento. Acabou encontrando Leda no quarto de casal.

— O que aconteceu? O que a senhora está fazendo? — Eva não entendeu quando de deparou com Leda abrindo as gavetas dos móveis do quarto.

— Procurando. — Leda não deu a importância ao tom questionador de Eva. Apenas continuou com dedicação o que estava fazendo.

— Procurando o quê? — Eva perguntou com impaciência. Pressentiu que havia alguma coisa errada naquela ação. Seu coração começou a bater mais rápido, temendo ouvir algo que não queria.

— Alguma coisa para levar. A última pessoa que morava nessa casa morreu e aquele tonto do Marcelo nem vai perceber se pegarmos umas coisinhas. O mínimo para compensar o trabalho mais rápido que eu já tive. Depois desse, quando vou arranjar outro? — Leda abriu um porta joia em cima de um móvel e tirou uma corrente e um pingente de pedra. Virou-se para Eva e admirou o objeto. — Olha, que lindo! Não tenho nenhum cordão assim.

Eva observava sem querer acreditar no que estava vendo. Havia muitas perguntas a serem feitas e ela tentou ignorar a atitude de Leda. Fechou, sacudiu a cabeça e abriu os olhos para conseguir de concentrar. Com as trovoadas do lado de fora não era uma tarefa fácil.

— Como a Renata morreu? Até hoje de manhã ela estava bem.

— Você acha que parecer um vegetal é estar bem? Quando cheguei e fui dar a comida dela, verifiquei o pulso e a respiração como faço sempre. Aí, ela simplesmente parou de respirar. Abri as pálpebras dela e as pupilas estavam sem vida. Simples assim. Morte natural.

— O Marcelo...

— Sim. Já liguei para ele. Liguei para funerária. Só acho que vai demorar um pouco. O céu tá caindo lá fora. — Leda abaixou-se para olhar embaixo da cama e encontrou uma mala bem pesada. Será que aqueles velhos escondiam alguma coisa valiosa? — Vem aqui, Eva. Me ajuda.

Leda tentava com dificuldade pegar a mala no chão. A essa altura, Eva começava a perceber o caráter de sua mãe. Como ela poderia ter ficado tanto tempo cega? A descoberta lhe revirou o estômago.

— O que você está esperando garota? Me ajuda. —Leda levantou a cabeça apenas para olhar para Eva.

Eva ignorou a mãe e virou as costas. Desceu as escadas e finalmente, por causa de risos que vinham da cozinha, encontrou os irmãos.

— Essa mesa ficaria perfeita lá em casa! — Eva ouviu Luan falar. Quando entrou na cozinha, ele pressionava os braços contra a mesa de madeira, enquanto Luiza tirava os conjuntos de panelas e recipientes que ainda restavam nos armários e não haviam sido destruídos com o ataque que aconteceu mais cedo. — Bem resistente.

— Que pena, burrinho! Não vamos poder levar.

Os dois não perceberam que ela havia chegado e estavam agindo do mesmo jeito que Leda no andar de cima. A sensação naquele momento era de completo desespero. Ver as pessoas que havia convivido por dezoito anos, escancarando um lado tão perverso, apesar de nunca terem sido um exemplo de moralidade, doía muito. Toda aquela injustiça fazia Eva tremer.

Uma mulher tinha acabado de morrer e eles estavam mais preocupados em saquear a casa do que demonstrar o mínimo de respeito.

— Que merda que vocês estão fazendo? — Eva perguntou rangendo os dentes, tentando manter o controle. Preferia acreditar que Renata estava possuída do que aceitar que sua família era composta de criminosos egoístas.

Os dois mal se moveram para olhar a expressão de reprovação de Eva.

— Só pegando algumas coisinhas. — Luiza foi breve na explicação e na demonstração de desinteresse pela a irmã.

— Porque não podemos levar a mesa, Luiza? — Luan perguntou.

— Porque não podemos levar uma mesa na cabeça. — Luiza respondeu, debochada.

Leda ficou desapontada quando abriu a mala e só encontrou muda de roupas velhas. Então partiu para o próximo cômodo. O quarto de Renata. No primeiro dia de emprego não havia reparado, mas agora com olhos mais farejadores, sabia exatamente onde mexer.

Em um móvel próximo ao guarda-roupa, junto com os porta-retratos, uma pilha de CDs estava em uma organização impecável. Os olhos de Leda cresceram de satisfação em saber que não era a única fã de música dos anos 90. Conferiu na pilha, um a um dos CDs até ser atraída por um em especial. Um CD do Roupa Nova do ano de 1993. Ela pulou alegremente ao perceber que as duas compartilhavam a mesma nostalgia. Leda era apaixonada pela banda e ela não tinha aquele álbum.

Ela colocou o CD no aparelho de som ao lado. A música começou a tocar ao mesmo tempo em que outro trovão estrondou na casa. Leda riu com a coincidência entre a música música que tocou e clima: Chuva de prata.

Totalmente imersa nas lembranças boas, ela aumentou o volume e fechou os olhos, relaxando ali mesmo. Em pé, encostada no móvel dos porta-retratos e de costa para porta, Leda não ouvia nada que acontecia no andar de baixo e muito menos ao seu redor.

Enquanto isso, Eva tinha a sensação que a qualquer momento entraria em combustão. Luan e Luiza continuavam tagarelando coisas fúteis e a ignorando. A música do andar de cima chegou até a cozinha e se misturou com o barulho estridente da chuva.

Isso só piorava a audição de Eva e a deixava mais agoniada.

"Eles não merecem toda essa sua consideração. Eles não merecem toda essa sua consideração..." O comentário de Camila começou a soprar de um jeito angustiante na sua mente.

Eva pressionou os ouvidos com a palma das mãos e encolheu o corpo na esperança de que toda aquela aflição passasse. Mas, tudo saiu fora de seu controle. A agonia que se instalava nela dava-lhe socos dolorosos de dentro para fora. A única maneira que ela encontrou para se livrar dessa perturbação foi gritar.

— Já chega! — Eva soltou um grito que podia muito bem competir com os outros sons ao seu redor. Só assim Luiza e Luan a olharam, surpresos. — Eu tenho nojo de você! De todos. Eu sempre tentava me convencer que vocês eram pessoas boas apesar de tudo. Que não tinham culpa da educação que nossa mãe deu.

Eva aproximou-se dos dois, enquanto cuspia palavras.

— Pensei que todo esse desprezo que vocês me tratam era uma forma de expressarem amor por mim. E eu, boba, os considero tanto. Agora vejo que vocês me ignoram porque são maus. Eu não entendo o que eu fiz para vocês me tratarem assim? E o pior que a única pessoa culpada disso tudo é ela. — Eva chorava e apontava para o andar de cima. — Ela que neste momento prefere estar ouvindo música enquanto saqueia a casa de estranhos do que prestar atenção no que realmente importa.

Quando percebeu que não conseguia parar de chorar, temendo que todo aquele discurso não surtisse nenhum efeito, Eva virou as costas para os irmãos e escondeu o rosto para chorar. Não aguentaria ouvir mais nenhuma brincadeira deles.

— Olha aqui... — Luiza foi até onde Eva estava e preparou uma revanche, aumentando o tom da voz e apontando o dedo indicador para ela, cheia de fúria. Mas, Luan que até aquele momento estava silencioso e pensativo, saiu do seu lugar atrás da mesa e tentou passar na frente de Luiza.

— Não, Luiza. — Ele murmurou com cautela. Como se Luiza fosse uma ditadora e ele estivesse morrendo de medo dela puni-lo severamente. — Deixa. Eu concordo com que ela.

— Como é? — Luiza voltou toda sua explosão para Luan, que se encolheu um pouco. — Está do lado dela agora? Mesmo falando esses absurdos da nossa mãe?

— É que eu acho...

— Ai meu Deus! — Os grunhidos chorosos de Eva pararam de repente e ela exclamou assustada.

Luiza e Luan trocaram olhares confusos. Eva pareceu ter parado de respirar ao perceber que estava de frente ao quarto de Renata e se deparado com algo que não havia percebido antes por causa do tempo que havia passado de cabeça baixa. O medo enrijeceu seu corpo igual uma pedra. — Não... Não..

Curiosos para saber o que acontecia com Eva, Luan e Luiza se aproximaram e também se voltaram para o quarto. A curiosidade transformou-se em algo mais assustador e Luan e Luiza compartilharam do mesmo temor de Eva. Também não acreditavam no que estavam vendo.

Renata. A mulher debilitada pela qual sua mãe foi contratada para cuidar e que havia falecido poucas horas antes, estava de pé bem ao lado da cama. De camisola branca, ereta, com as duas pernas firmes no chão, Renata não parecia estar viva na verdade. Parecia mais um zumbi recém nascido com olhos fundos e roxos. Mesmo assim, existia algo racional e calculista nela ao olhar fixamente para os três irmão no lado oposto.

As luzes da cozinha e do quarto piscaram ao mesmo tempo que um trovão passou rasgando pela casa. As luzes piscaram mais uma vez enquanto Luan, Luiza e Eva se aproximaram quase abraçando um ao outro, apavorados pela terrível imagem que o jogo de luz e sombra causadas pelas lâmpadas em cima da figura de Renata.

A escuridão enfim os engoliu, a música que tocava no andar de cima parou e a casa toda foi tomada pelo silêncio. Nem os sons externos evitaram que Luan, Luiza e Eva de pensassem que haviam sido transportados para um lugar onde não estavam mais seguros.

O que os três irmãos realmente estavam certos. O terror estava ali, olhando diretamente para eles através da escuridão.

O apagão durou tempo suficiente para mexer com a mente de Eva, Luiza e Luan. O medo continuava os paralisando. Quando a luz voltou a iluminar a cozinha, Renata ainda estava no lado oposto, ainda encarando-os.

Depois daquele momento de tensão, Luiza foi a primeira a tomar uma iniciativa frente a uma ameaça que ainda continuava no mesmo lugar sem se mover um centímetro sequer. Ela começou a rir sem parar. Luan e Eva, trocando olhares receosos, concluíram juntos que Luiza estava apenas querendo agir com a razão. Algo Leda com certeza faria se estivesse em seu lugar.

— Luiza... — Luan a repreendeu, sem deixar de olhar para Renata. Estava com tanto medo que só conseguia mexer as pupilas dos olhos.

— Eu já saquei. Bem que eu falei para mãe que essa ridícula tinha falado comigo naquele dia. — Luiza olhou para Renata cheia de deboche. — Ela não morreu coisa nenhuma. A mãe que olhou errado. Nem doente ela estava. Só estava tirando sarro da gente!

Luiza tagarelava igual a uma pessoa que tentava argumentar sua teoria para uma plateia de céticos. Um sinal de nervosismo, Eva pensou. Sua irmã queria colocar acreditar de qualquer maneira que tudo não passava de uma brincadeira.

A conversa que teve com Leda pela manhã se mostrou cada vez mais relevante e real. Havia algo de sobrenatural na "doença" de Renata. E o pior, Eva tinha medo de o que quer que tenha a possuído fosse tão perigoso a ponto de não haver chances de escapatória.

— Ah! Como eu tenho raiva de pessoas que me fazem de boba! — Luiza avançou na direção a Renata e entrou no quarto. Como um imã natural entre gêmeos, Luan deu um passo à frente para segui-la, mas Eva colocou o braço no meio.

— Não, Luan! — Eva falou com a voz tremida e depois gritou com Luiza quase implorando. — Luiza, volta. Por favor!

Mas, Luiza estava decidida. Posicionou-se cara a cara com Renata e lhe deu um soco direto rosto dela. A textura da pele da bochecha de Renata contra as articulações fechadas da mão direta de Luiza fez com que ela recuasse fazendo uma careta de nojo. Parecia que ela tinha batido em uma geleia. Arregalou os olhos sem entender o motivo de Renata não ter esboçado nenhuma outra reação.

— Você é um... — Uma epifania tomou conta de Luiza de repente , ela sussurrou para si mesma e um terror genuíno em seu rosto voltou a aparecer. Renata começou a rosnar baixinho. Depois, esses rosnados foram se transformando em gargalhadas maldosas que ecoaram por todo cômodo.

— Luiza, corre! — Prevendo o pior, Luan e Eva gritaram juntos. Pela primeira vez, Luiza atendeu o chamado dos irmãos e virou as costas para Renata acelerando a corrida até a saída. Luan e Eva se adiantaram o máximo que puderam do quarto para poder pegar a mão de Luiza e a puxarem para fora.

Não deu tempo. Tudo aconteceu rápido demais. Alguma força invisível fez Luiza parar feito uma estátua e olhar para Luan e Eva com os olhos arregalados.

— Não! — Eva gritou.

A cabeça de Luiza girou 360º sem ao menos mexer o resto do corpo. Ouviu-se o estalo do osso quebrando, a porta do quarto se fechou, a luz foi embora e tudo foi engolido pela escuridão.

Com a segunda queda de energia, desta vez mais demorada do que a primeira, Leda pode voltar a sua realidade. Ela desistiu de tentar fazer a música voltar a tocar. De repente, enquanto tentava se situar no meio da escuridão, foi surpreendida por Luan gritar por ela com desesperado. Apreensiva em saber por que ele gritava tanto, Leda correu para saída do quarto usando apenas a memória que havia adquirido do quarto e visualizando o corredor que se iluminava com o clarão dos relâmpagos. Leda correu como se a porta fosse a saída de uma caverna escura.

Porém, antes que pudesse colocar o pé fora do quarto, a porta se fechou à sua frente.

— Mas, o que é isso? — A porta não estava trancada. Porém, Leda colocava a mão na maçaneta e forçava a porta para si, mas não conseguia movê-la do lugar. — Alguém? Abre essa porta!

Leda bateu na madeira já com descontrole. Estava escuro e Eva começou a gritar também. O caos estava tomando conta da casa. Mas, ela não sabia por quê.

(...)

— Vamos pegar a mãe e sair! — apesar daquilo ser uma tarefa difícil, Eva e Luan precisavam vencer a paralisia e sair da cozinha. Em meio às trevas, eles não faziam ideia de onde Renata poderia estar.

Luiza havia acabado de ser morta da forma mais horrível que já viu, Luan estava em estado de choque, Leda ainda não dera as caras e uma Renata endiabrada estava a solta pronta para atacar quando bem quisesse.

Eva pegou a mão do irmão e iluminou o caminho da cozinha até a sala com a luz da lanterna do celular. Tremendo, Eva passava o feixe de luz por Luan. Ele estava chorando e puxando o braço de dela para que os dois fossem para o quarto de Renata.

— A Luiza... ela tem que vim... — Luan sussurrava meio vacilante. A negação fazia-o delirar. Por mais que desejasse desesperadamente ir embora, Eva não podia virar as costas para irmã. Por mais, ao contrário de Luan, que Luiza já estava morta.

Ela iluminou a porta do quarto. Apontando o celular para o chão. Eva só conseguiu focar em Luiza por uma fração de segundos. O corpo dela estava caído de uma forma bizarra, o rosto virado para as costas, os olhos abertos... Luan começou a chorar compulsivamente e Eva tampou a boca e sufocou um grito.

— Vamos sair daqui. — Eva falou depois que um barulho estridente de uma panela caindo no chão os despertou do luto. Ela tentava sempre iluminar o rosto de Luan para que ele se sentisse o mínimo de segurança.

Correndo junto com Luan, mesmo clareando seu caminho, Eva quase tropeçou no tapete da sala. A porta estava perto que ela podia sentir os pingos da chuva no seu rosto.

— Mãe! — Em um ato de desespero, Luan gritou o mais alto que pode. Esperando que só com isso ela descesse as escadas.

Eva começava a acreditar que quando abrissem a porta o pesadelo acabaria. Ela pensou rápido. Ou eles subiriam para o segundo andar na intenção de resgatar a mãe e ficariam sujeitos a mais perigos ou eles sairiam logo e pediram ajuda.

— A porta! — Eva sinalizou já encostando na maçaneta. Mesmo contrariado, Lucas correu até a irmã. Os dois atrapalharam-se com as próprias mãos tentando abrir a porta ao mesmo tempo. A força que os dois fizeram para forçar a abertura não surtia nenhum efeito. A porta simplesmente não abria. Era como se estivesse emperrada.

Os dois começam a bater a palma das mãos na porta e gritar por socorro. Será que a chuva estava tão forte assim a ponto de ninguém, nenhum vizinho, ouvir suas súplicas escandalosas?

(...)

Na verdade, do lado de fora, a casa da família de Renata parecia apenas mais uma entre as muitas que constituíam uma rua silenciosa e agora deserta por causa da chuva. Mesmo se alguém decidisse passar pela frente do imóvel não veria nada mais do que uma casa grande, modesta e devidamente iluminada pelas lâmpadas dos postes que funcionavam perfeitamente.

(...)

Enquanto golpeava a porta e tentava abri-la, Eva percebeu que estava fazendo aquele esforço sozinha. Parou de sentir a presença do irmão ao seu lado.

Ela olhou para o lado e apontou a lanterna para o local que Luan deveria estar. Ele não estava mais ali. Girou o corpo até encostar as costas na porta e procurou por Luan ao redor.

— Cadê você, Luan? — Eva choramingava. Finalmente conseguiu encontrá-lo de joelhos no chão a um metro dela, ao lado do sofá. Renata estava posicionada atrás dele, segurando sua testa e com uma faca encostada em seu pescoço. — Não. Não.

Luan olhou para Eva com pavor. Ele foi impedido de soltar seu último pedido de socorro. Uma quantidade enorme de sangue saia do corte profundo feito pela lâmina nas mão de Renata.

Eva sentiu seus músculos enfraquecerem. Deixou o celular cair no chão e deixou-se fraquejar. Não importava como Luan e Luiza eram difíceis de lidar. Eles não mereciam morrer.

Encolhida, com a testa encostada no chão e protegendo a cabeça embaixo dos braços, Eva esperou sua vez. De que jeito então ela seria morta?Será que seria degolada como Luan ou teria o pescoço quebrado como Luiza? Eva estava abalada ao ponto de desejar que Renata a matasse o mais rápido possível.

No entanto, a hora de Eva parecia estar demorando. Enquanto esperava ser morta, ouviu os passos de ferro de Renata subindo as escadas.

— Mãe.

(...)

Leda ainda continuava a bater na porta emperrada. Sua paciência havia acabado. Ainda mais quando as vozes dos filhos haviam cessado no andar de baixo. Se era angustiante de ouvi-los chamar pelo seu nome e não poder fazer nada, pior ainda era de repente ouvir apenas aquele silêncio sufocante.

Será que as mesmas pessoas que haviam entrado na casa pela manhã e que Leda tentava devotamente acreditar que era verdade aproveitaram o apagão para atacar de novo? Ou isso seria uma brincadeira de mau gosto dos filhos? Ela sabia que Luan e Luiza seriam capazes,mas Eva?Não era de sua personalidade. Fosse o que fosse, Leda tinha que admitir uma nova espécie de medo se instalava dentro dela. Aquele tipo de medo que nenhuma explicação racional seria capaz de dissipar.

Leda percebeu que alguém no lado de fora mexia a maçaneta. Recuou alguns passos até ver a porta se abrir à sua frente por completo. Uma presença estranha se materializou entre a saída do quarto e o corredor.

— Quem é? — Leda perguntou, apreensiva. Como estava difícil enxergar por mais que forçasse sua visão, ela pegou o celular do bolso e acendeu a lanterna. A silhueta se transformou em uma mulher. A mulher se transformou em Renata.

— Que porra é essa?

Leda berrou com uma investida de Renata em sua direção. Enquanto ela avançava, Leda jurou que a face que vinha ao seu encontro era a do próprio diabo. Sentiu seu corpo inteiro ser jogado sem dó contra o chão. Uma dor dilacerante atravessou o seu peito. Quando direcionou a luz para o ponto de dor, viu uma faca cravada em seu seio e nenhum sinal de Renata.

Eva ouviu o grito de Leda ao mesmo tempo que a luz voltou. Ela olhou ao redor e teve apenas uma visão mais clara do corpo do irmão estendido no tapete coberto de sangue. Para evitar olhá-lo ao máximo e sem pensar se seria sua última ação, Eva correu em disparada pelas escadas, cambaleando entre as pernas trêmulas. A porta o quarto no final do corredor estava escancarada. Se Renata estava ali escondida, na espreita, Eva não sabia dizer. O desejo de chegar até a sua mãe anuviou o seu instinto de sobrevivência.

Encontrou Leda estirada no chão ainda com a faca no peito quando ela. Agachou-se ao lado dela. A carne ao redor do ferimento tremia igual ao resto de seu corpo. Mesmo com o olhar petrificado por causa do nervosismo lágrimas desciam sem parar.

— Ai meu Deus, mãe. — Eva chorava colocando a mão sem jeito no ferimento. Sem saber se tirava a faca ou não. Leda apertava o braço de Eva com força, mas não conseguia falar nada por causa do choque.

Com receio de que Renata pudesse aparecer a qualquer momento, Eva arrastou Leda com dificuldade até a suíte do quarto e a trancou. Um cômodo de no máximo dois metros quadrados que só cabia o chuveiro e o vaso sanitário.

Leda balbuciava sons mais audíveis. Ela chamava pelos filhos.

— Calma mãe. Não fala, por favor. — Eva alisava o rosto suado de Leda. Ela usou o tempo para pensar no próximo passo. Mas, Leda usava suas poucas forças para puxá-la para perto.

Uma poça de sangue se formava ao seu redor dos azulejos brancos.

— Você tinha razão. — Leda sussurrou, ofegante. — Ela está possuída! É o demônio!

— Mãe... Mãe... Para! — Eva também sussurrava com clamor, enquanto Leda tentava puxá-la ainda mais para o próprio rosto. Eva não queria encará-la. Não queria chorar mais do que já tinha chorado.

— Devíamos ter ido embora antes. Vamos todos morrer! Não tem saída! — Leda estava a beira do delírio, enquanto seu olhar vacilava.

— Calma. — Eva reprimiu uma reação e pegou o celular que estava na outra mão de Leda. Mexeu nele com as mãos sujas de sangue e com dificuldade de pensar com a razão. — Eu vou ligar para o Marcelo agora. Pedir para trazer reforços. Eles vão arrombar essa casa nem que seja com um trator. A senhora vai ver. Vamos sair daqui.

Eva sentia um vazio terrível no estômago quando se lembrou dos corpos de Luan e Luiza lá embaixo. Queria estar dizendo o mesmo para eles também.

Quando conseguiu achar o número de Marcelo gravado no celular, esperou que ele atendesse. O telefone chamou ao mesmo tempo em que, de repente, uma música começou a tocar. O aparelho de som, cujo Leda ouvia Roupa nova minutos reproduziu a voz potente de Edith Piaf cantando Non, Je Ne Regrette Rien.

Com o aparelho grudado na orelha, Eva pode ver pela brecha debaixo da porta uma sombra perambulando pelo quarto. Como se ela tivesse dançando de acordo com o ritmo da música. Renata estava estava ali presente. Uma parede as separava. Eva sabia que antes de matá-las sua carrasca estava decidida a brincar com o desespero delas.

— Alô? Alô? Leda?

Eva esqueceu de responder Marcelo quando ele atendeu a ligação. O volume da música aumentou e para evitar olhar para Leda empalidecendo com a perda de sangue, Eva virou o rosto e fechou os olhos com força. Uma faísca de esperança se acendeu e Eva ficou emocionada de ouvir a voz de Marcelo. Mas por onde começar?

— Marcelo, precisamos de ajuda... — Ela falou baixo. Temendo que Renata talvez pudesse ouvir.

— Eva? É você? Não consigo ouvir direito... — A voz dele cortava por causa da interferência. Enquanto Eva gaguejava tentando explicar o máximo que podia, Marcelo a interrompia. A comunicação entre os dois ficava cada vez pior. — Eu já cheguei. Tô aqui fora, mas não consigo abrir a porta. Você pode vir abrir aqui?

— Não tenta entrar sozinho, Marcelo.

— Como? Eva, não estou ouvindo. Que barulho é esse? Chamar o quê...

— A Renata. Ela... — Eva falou com rapidez, mas só conseguiu ouvir o som da ligação caindo. — Não desliga! Não desliga!

Batidas duras e violentas quase quebrou a porta do banheiro. Eva largou o celular e olhou para Leda. Os olhos estavam abertos, mas sem vida. Os lábios tão brancos como o azulejo das paredes. Sua mãe havia acabado de morrer.

Eva sentia-se vencida. Sua família toda tinha morrido e a dor tomou conta quando percebeu que estava sozinha no mundo. Lembrou que muitas vezes torcia para se ver longe da mãe e dos irmãos. Porém, a realidade começou a doer. Não fazia ideia de quando a brincadeira sádica de Renata acabaria. Ela podia abrir a porta a qualquer momento e matá-la, mas achou melhor brincar com o seu psicológico.

Eva se arrastou até ficar encolhida no pequeno espaço entre a parede e o vaso sanitário. Enlaçou os braços em volta das pernas e encarou a porta que vibrava. Esperando sua hora. Era tarde demais esperar que Marcelo fizesse alguma coisa.

De repente Renata parou de bater e a luz se extinguiu novamente.

(...)

Marcelo parou o carro em frente à casa da tia. Enfrentou a chuva grossa vestido com uma capa de chuva por cima do uniforme até chegar na entrada e tentar abrir a porta com a chave reserva que sempre levava consigo. Porém, não obteve sucesso. Vestia uma capa de chuva por cima do uniforme.

Quando soube da morte de Renata, sua única ação foi correr para casa, mas com o trânsito e os transtornos da tempestade causou o atraso de sua chegada. Enquanto tentava entender o motivo de não conseguir entrar e a ausência do carro da funerária também, Marcelo recebeu uma ligação do número do celular de Leda. Quando atendeu, não reconheceu a voz de Eva. Ela estava muito nervosa e gaguejava muito. Somado com um chiado da interferência ficou difícil entender o que ela falava.

A ligação ficou muda de repente. Marcelo afastou-se um pouco e analisou ao redor. As luzes estavam apagadas. Seus anos de polícia despertou a sensação de perigo. Passou a mão na cintura e sentiu o formato de seu revólver. Por sorte, esqueceu de tirar quando saiu de sua ronda.

Marcelo pensou por uns segundos e concluiu que só havia uma solução. Acostumado com atividades físicas, principalmente com habilidade nos braços, Marcelo conseguiu escalar sem problema a parede da casa até a parte da casa que não era forrada. Destelhou uma pequena parte do telhado e desceu direto na sala. A sua sensação foi que havia pulado em um buraco escuro.

O cenário era de completo silêncio. Pegou seu chaveiro e acendeu uma lanterna acoplada em um pingente e iluminou a sala. O cenário que conseguiu enxergar não poderia ser pior.

O primeiro corpo foi o de Luan, logo ao lado do sofá. Marcelo tremeu ao constatar que algo estava errado. Logo pensou em sua tia, em Leda e em Eva... Onde ela estariam? Antes de dar mais um passo, Marcelo sacou a arma e a posicionou em frente ao seu corpo. Avançou em direção a cozinha pensando em chegar ao quarto da tia. Sempre atento a uma possível ameaça.

Chegando lá, Marcelo ficou ainda mais espantado ao ver o corpo de Luiza do que quando viu o de Luan. Naquele momento, Marcelo sentiu vontade de vomitar. Porém, ainda precisava saber onde estavam sua tia Eva e Leda.

Duas pessoas mortas, o corpo de Renata desaparecido, nenhum sinal de Leda e de Eva em uma casa que mais parecia mal-assombrada.

— Marcelo, meu querido.

Marcelo sentiu um arrepio em sua espinha ao ouvir, depois de anos, uma voz tão familiar. A voz dela foi parar no fundo da alma de Marcelo. Em uma época que lhe traziam lembranças boas. Em um determinado momento de sua infância. Não conseguia acreditar. Ela não estava morta? Como aquilo era possível?

Ele virou o corpo com cautela até encontrar Renata em pé na sua frente, chorosa e impotente.

Só podia estar sonhando. Seu coração bateu em descompasso. Demorou para ele conseguir se aproximar dela. Mesmo fraca e indefesa, Marcelo não conseguiu baixar o revólver. Só conseguia imaginar que estava preso em um sonho onde nada fazia sentido.

— Você não pode está viva... — Marcelo murmurou ainda descrente.

— Estou viva sim. Por favor, querido, me ajuda. — Parecia que Renata estava sentindo uma dor terrível. — Eu não aguento mais! Cada vez mais essa... Coisa... Fica mais forte.

Renata batia na cabeça com a palma da mão aberta. Marcelo baixou um pouco a guarda. Percebeu que a tia estava tentando manter-se em pé. Mas, em um determinado momento, Renata não resistiu e ela acabou caindo de joelhos no chão. Marcelo correu até ela e se ajoelhou também. Colocou a arma de lado e a ajudou a se recompor, ainda a iluminando com a lanterna.

— O que aconteceu aqui tia? — Marcelo tentava fazê-la olhar para ele. Mas Renata estava tão fraca que mal conseguia abrir os olhos e erguer a cabeça. Marcelo perguntava com desespero enquanto usava a mão para apoiar o rosto dela. – A senhora está sozinha?

Marcelo conseguiu segurar o rosto de Renata com firmeza. Ela finalmente o encarou. Por uma fração de segundos seus olhos ficaram abertos.

— Adeus, querido. — Renata fez um esforço maior para falar. Como se aquele fosse seu último suspiro.

— O que?

Marcelo foi surpreendido pelo o ataque de uma Renata furiosa.

(...)

Eva já estava no seu limite. Não suportava mais ouvir a chuva, as repentinas quedas de energia e a presença do cadáver de Leda aos seus pés. O silêncio imperava junto com a escuridão. Mas Eva se recusava a se mexer. O medo a paralisava. Não tinha como se defender. A ideia de ficar ali no canto do banheiro esperando a morte era o melhor que podia fazer.

Um tiro. Outro tiro.

— Marcelo! — Ela levantou a cabeça com um brilho nos olhos. Com certeza ele havia conseguido entrar na casa. Ele era o único que poderia estar armado e atirar ao sinal de perigo. Fez menção de levantar-se e correr ao encontro dele, mas logo lhe ocorreu a dúvida: E se o tiro não tiver sido disparado por ele?

Eva pensava em várias possibilidades. Marcelo poderia ter vencido. O tempo estava passando e Eva desejava desesperadamente acordar do pesadelo. Sair dali, encontrar um rosto conhecido, sair correndo até chegar à casa de Camila e dizer que sentia muito por não ter lhe dado ouvido.

Então, reuniu as forças que ainda restavam mesmo com o psicológico destruído, pegou o celular e iluminou o seu caminho.

Desceu as escadas e procurou por Marcelo até encontrá-lo parado no mesmo lugar que havia encontrado Renata. Entre cozinha e o quarto dela. Ele segurava o revolver com os braços caídos, olhando em direção ao chão. Quando Eva apontou a luz para o lugar onde ele estava olhando, viu Renata estendida no chão com um ferimento de bala na testa. Desta vez, realmente morta.

Eva compreendeu a reação de Marcelo. Ela era a sua tia. Pelo menos no corpo. E mesmo se ele não soubesse no que Eva acreditava, a posição dele não era a das melhores.

— Meu Deus, Marcelo! — Apesar de se sentir mais aliviada, Eva entendeu o estado que Marcelo se encontrava. Ela era a sua tia.

Foi até ele. O abraçou e tentou confortá-lo. Porém, Marcelo não reagia. Apenas olhava para o corpo de Renata no chão. — Eu sei o que você está sentindo. Mas temos que sair daqui. Sua tia estava possuída e matou sua família e matou a minha também. Vamos sair daqui, por favor.

Eva continuou a insistir puxando o braço de Marcelo. A ansiedade aumentava, o desespero ainda não havia passado. O mal havia saído de Renata, mas temia que ele ainda estivesse presente. Depois de muito tentar, finalmente Marcelo reagiu. Ele acabou retribuindo aos toques de Eva e finalmente segurou sua mão. Eva suspirou aliviada.

Porém, não passou por sua cabeça o que aconteceria a seguir. No momento em que a esperança voltou mais forte dentro dela, Marcelo virou o rosto para encará-la. Não era a mesma pessoa que conversou com ela naquela manhã. Marcelo a olhava sem sensibilidade alguma e com um sorriso frio e maldoso. Um sorriso que já tinha visto antes. Mais precisamente quando aquela noite tortuosa começou.

Eva quis recuar. Mas, Marcelo apertou o seu pulso com uma força monstruosa, evitando que ela saísse. Com a mão que segurava a arma, Marcelo apontou-a diretamente na testa de Eva. Antes que pudesse expressar qualquer som, ele foi interrompido por tiro disparado que a matou imediatamente. Marcelo soltou seu pulso para que ela pudesse cair no chão.

No mesmo segundo que o corpo de Eva caiu desfalecido, a luz voltou. Marcelo teve um vislumbre maior da cena de horror. Só ao seu redor contava-se três corpos. Eva, Luan e Renata. Fora os outros dois em outros cômodos da casa.

Marcelo não sentiu nada. Nenhum rancor. Talvez o antigo Marcelo, aquele que se fora, sentiria. Mas, para o novo Marcela que se fortalecia cada vez mais aquelas pessoas não passavam de uma combinação suja de carne e alma.

Alguns minutos antes...

— Adeus querido!

— O que?

Renata surpreendeu Marcelo, avançando em cima dele. Marcelo ficou impressionado com a força de sua tia, que não fazia muito tempo, era a mulher mais fraca que já viu. O pior não foi isso. O rosto de Renata mudou completamente e ela virou uma espécie de animal selvagem. Dentes trincados, pupilas enormes e uma expressão de ódio.

Marcelo debatia-se embaixo dela. Ela tentava pressionar sua cabeça com as mãos, contra o chão. Mas, Marcelo a impedia, segurando seus pulsos. Renata começou a inclinar o corpo para frente. Sem se importar com seus braços presos pelas mãos de Marcelo. Queria colocar o máximo seu rosto perto do dele. Marcelo viu Renata soltar uma baba transparente e grossa pela boca.

— Para com isso! — Marcelo falou. Começou a se preocupar quando Renata forçou ainda mais seu tronco para frente sem se preocupar com o fato de que estava quase deslocando o ombro. Marcelo ficou no impasse de continuar pressionando os pulsos dela para trás ou deixar que ela conseguisse se aproximar. Ele sentiu o estalo de um dos ombros dela se deslocando e com o medo de fazer ainda mais mal para tia, desistiu de fazer força.

Esse foi o momento favorável que Renata usou para se soltar da das mãos dele, avançar, segurar a cabeça de Marcelo e tocar os lábios dele. Ele se debateu sem poder mexer a cabeça. Ele reclamava em meio a murmúrios. A secreção entrava em sua boca enquanto Renata o forçava a abri-la com a própria língua.

De repente, Renata caiu para o lado e Marcelo conseguiu respirar, tirando o excesso de líquido na sua boca. Levantou-se, pegou sua lanterna e apontou para o chão. Renata tentava se mexer com dificuldade. Ainda lutando por um último vestígio de vida.

Marcelo fechou os olhos, deu um suspiro profundo e abriu os olhos de novo estralando o corpo. Enquanto contorcia o pescoço, as costa e os braços uma consciência diferente tomou conta do corpo de seu corpo. Era como se ele tivesse acordado de um sono profundo depois de anos e despertado em um corpo novo.

A antiga consciência de Marcelo observava tudo, aprisionada. Essa consciência gritava com desespero enquanto a coisa que tomou posse de seu corpo pegou o revólver no chão e apontou sem remorso para Renata, que naquele momento tentava se sustentar com os braços.

Um tiro na cabeça bastou para tirar a última lampejo de vida dela. O velho Marcelo suplicava para sair da onde que fosse sua prisão. Mas, depois de tantas tentativas de tentar fugir, o velho Marcelo calou-se. E nunca mais voltou.

O Marcelo que renasceu deu uma olhada sorrateira para o segundo andar. E como para chamar atenção deu um tiro aleatório para cima.

— Meu Deus, Marcelo...

(...)

Camila terminou a leitura do diário de Renata, assombrada. Leu repetidas vezes os últimos versos do diário. Um emaranhado de letras quase arrastadas. Como se tivessem sido escritas sem vontade.

"O diabo vive em mim. O mal é real...".

Algumas folhas em branco depois, Camila encontrou uma frase escrita com uma letra totalmente diferentes das anteriores. Era grande e agressiva.

"Eu sou o demônio."

Camila jogou o caderno longe e tampou a boca para reprimir um grito. A ponto de começar a chorar, ela procurou o celular e teclou o número de Eva com urgência. Dois toques depois, Eva não atendeu.

— Atende logo! — Camila murmurava enquanto roía as unhas, sentindo que se não alertasse Eva sobre o que leu, seria tarde demais.

(...)

Marcelo observava o celular de Eva vibrar em cima do tapete, bem próximo do corpo dela caída no chão.

Como Renata escreveu um dia em seu diário: O MAL É REAL.

O mal existe.

O que existem também pessoas que o desconhecem. Igual a Luan e Luiza. Ou aquelas que ignoram, como a Leda muitas vezes fez. Ou simplesmente as que sabem, mas não têm coragem de lutar contra. Igual a Eva.

Enquanto não existir alguém que o combata, ele sempre irá prevalecer.

Marcelo guardou o revólver no coldre e seguiu rumo à saída. Abriu a porta , subiu o capuz da capa de chuva e protegeu a cabeça. Vislumbrou o ar úmido do lado de fora. Respirou-o com prazer. Saiu da casa sem olhar para trás.

Agora com um novo corpo, tinha muito a fazer.

FIM

Mel Romualdo
Enviado por Mel Romualdo em 26/06/2019
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