BEM VINDO AO INFERNO!! SQN!!!

Valeriano chegou em casa. Tocou sua cabeça antes de abrir a porta. Sentiu um leve torpor. Estranho!! Olhou a garagem e não viu sua moto nova. Também não viu a esposa e o filho de dez anos. O pequeno Henrique sempre vinha correndo ao seu encontro. Saiu mais cedo do trabalho. Era isso. O filho deveria estar jogando vídeo-game com o primo Luizinho. A casa estava vazia. Valeriano andou pela casa. Sentiu sede. Sentiu vontade de dormir. Sentiu vontade de tanta coisa. Sentiu saudades da mãe e de seus bolinhos de chuva maravilhosos. Lembrou-se do pai e de suas brincadeiras no parquinho do interior do Pernambuco. Podia sentir o cheiro de caju e graviola, frutas que lembravam seus tempos de menino. Colocou a mão no braço e sentiu a cicatriz. Tinha doze anos quando caiu de um jumentinho, apostando corrida com seu primo Fabiano. Ralou o braço, quebrou a perna e levou uma surra do pai. A escola, a merenda e as brincadeiras de recreio vieram a sua mente. Olhou a foto da esposa Juliana no porta retrato mas a imagem de Nizete, a primeira namorada dos tempos de colegial, lhe veio a mente. Valeriano sorriu. Quantas lembranças!! Quanta saudade!! Os amigos Dudu e Reinaldo!! Morreram afogados na praia de Santos, no verão de 86!! Parecia que ele os via na sua frente. Lembrou-se do tio Abdias!! Adorava aquele tio. Adorava a rua de casas coloridas, a turma do grupo de jovens da igreja, os catequistas, as quermesses e os retiros espirituais. Ele se afastara da igreja e de Deus. Se afastara dos amigos. Tinha olhos apenas pra família e pro trabalho. Muito mais para o trabalho, na verdade!! Jovem, queria drogas e curtição. Ele subiu na cama e se apoiou no guarda roupas. A caixa de sapatos. Era seu esconderijo. Vazia. Ele recordou que consumira toda droga na noite anterior, depois da briga com a esposa. Juliana o seguira até o campo de futebol. Ele dissera que jogaria com os amigos de trabalho mas se encontraria com Ester depois do jogo. A moça era sua amante há seis meses. A imagem de Juliana com hematomas e olho roxo vieram a sua mente. Valeriano frequentemente batia na mulher. Pra quem deu surra até na mãe, bater na mulher era fichinha!! A louca da mãe estava internada num asilo. Valeriano fez de tudo pra se livrar da mãe idosa e doente. Sorriu malicioso! Ai da esposa se fizesse boletim na polícia contra ele. Juliana nem sonhava que ele tinha dois filhos fora do casamento. Um breve romance com duas colegas de balada, Filomena e Dinah. Era solteiro. Não queria compromisso. Ele nem pagava pensão alimentícia. Aconselhou aborto mas as bobas quiseram criar os filhos!! Problema delas. Ele nunca viu as crianças!! Não queria!! Nem se importava!! Foi ao quintal. Vazio. Banco do Brasil. Lojas Guaratiba. Padaria Renascer. Assaltara todos esses locais. Expedito, o motoboy da empresa. O coitado levou a culpa de um malote extraviado. Valeriano surrupiou o valor e botou a culpa no outro, que foi despedido. Andou pela casa vazia. Passava um filme em sua cabeça. O filme da sua vida, sem final feliz. Passou direto pela parede e sequer percebeu. Sentiu dores no corpo. O espelho refletiu um homem com a cabeça ferida, pernas quebradas e ensanguentado. Ele sequer se viu no espelho. Pensou no filho. Em instantes se viu deitado numa maca de hospital. Médicos o rodeavam. Luzes. Soro. Ataduras. Sirenes. -"Anestesia!!!" Pode escutar o médico. Uma mesa fria. Luzes. Flores. Valeriano estava agora no cemitério da Ressurreição. Necrotério. Velório. Viu os primos conversando. Vizinhos. Detestava seus vizinhos!! Achava todos um bando de urubus curiosos!!! Odiava a dona Fátima, a vizinha do lado. Proibira a mulher de ficar conversando com a vizinha fofoqueira. Entrou no velório e viu a esposa e o filho. Viu a amante e colegas de trabalho. Amigos de bar. Viu os espíritos de seus pais diante de um caixão. Eles lhe acenaram e sumiram no ar. Valeriano sentiu frio. Um frio intenso. Viu que era seu corpo sendo velado. O padre estava orando. Pode ver Filomena e Dinah com dias crianças no velório. Seriam seus filhos??? Ele ergueu o olhar. As orações se perdiam e sequer tinham forças pra sair daquele local. Valeriano estava condenado. Tinha sido muito malvado, consigo e com os que o rodeavam. Ele saiu dali. Viu o corpo dele sendo sepultado. -" Eu morri???" Enfim percebeu os ferimentos. Viu mais que as pessoas do funeral. Ondas de energias coloridas envolviam as pessoas. Anjos passeavam. Sentiu um breve momento de paz intensa. Sorriu. Seu corpo flutuava. Tentou em vão falar com a esposa. Ninguém o escutava. Fechou os olhos e estava em Saturno. Voando. Levitando. Sei corpo era luminoso. Anéís lindos. Pensou em Pernambuco e estava lá, instantaneamente!! Que massa!! Que legal essa outra realidade. -" Venha, querido!!!" Ester o chamava. -" Nosso lugar não é aqui." Ela estava linda. Ele a seguiu. -" Onde vamos????" Ficou sem resposta. Enveredaram por lugares escuros e quentes. Sombras. Seres sem formas. Estranhos. Estava com Ester e isso era muito bom. -" Está bem quente aqui!!" Olhou pra mulher que o conduzira. Ela se virou. Ester se transformara num ser horripilante, feio e asqueroso. -" Aqui é seu lugar, meu caro. Bem diferente do livro de Dante Alighieri!!!! Seu sofrimento está apenas começando!!!" Um grande bode com chifres e um tridente lhe disse: -" Bem vindo ao inferno!!! Você vai colher uma eternidade de dor e sofrimento. Você plantou e vai colher!!!" O demônio deu uma gargalhada. Valeriano foi cercado por seres das trevas, fortes e com roupas vermelhas. Não conseguia falar!!! Estava sem forças. O lugar cheirava a enxofre. Valeriano foi levado a beira de um enorme abismo. Lá embaixo um rio de lava incandescente. Demônios empurravam as pessoas lá pra baixo. Valeriano fez o sinal da cruz, instintivamente. Os demônios que o prendiam viraram o rosto. -" Segura!! Aqui não!!! Não!!Esse sinal não pode ser feito aqui! Pra baixo com ele!!!" Valeriano foi empurrado. Caiu direto e reto. Fechou os olhos. Era o fim!! Uma luz. Quis abrir os olhos mas não conseguiu. Uma voz baixinha. -"O choque!!! É nossa última chance!!!" O corpo de Valeriano deu um salto ao contato com o choque. Os médicos com os jalecos molhados de suor. A equipe de olho nos sinais vitais do jovem acidentado. A anestesista rezava. Outro choque. Nada de Valeriano retornar. Nenhum sinal. Respiração boca a boca. Outro choque!!! O corpo de Valeriano foi sacudido. Um sinal de vida. O coração dele voltou a bater. Valeriano tinha pulso. Tinha sido reanimado. Um milagre. A equipe médica vibrou como num gol de Ronaldo Fenômeno na final da copa do mundo de 2002!!! Valeriano ficou semanas em coma. Ao acordar viu a esposa do seu lado. Esticou a mão. Mãos dadas com a esposa dedicada. Apenas sorriu. As palavras não saíram. Uma lágrima.Ele deveria passar por várias cirurgias mas o quadro era animador. Recebeu visitas dos colegas de trabalho. Ficou feliz com as visitas dos doutores da alegria. Missionários católicos e evangélicos visitavam os doentes nos hospitais. Cantavam hinos religiosos. Valeriano apenas olhava e admirava aquelas pessoas que levavam consolo e esperança aos doentes. Admirava os enfermeiros que cuidavam tão bem dele. Jamais passara por sua cabeça um outro homem lhe dar banho e fazer sua barba. Um enfermeiro fez isso pois ele não tinha forças. Valeriano recebia valiosas lições no período de internação. Firmou no pensamento o propósito de se tornar uma pessoa melhor. Pediria perdão a esposa e jurou nunca mais ser violento. Iria conhecer os os outros filhos!!! Iria buscar a mãe no asilo e cuidar dela. Recebera outra chance e era grato por isso!!! Um mês depois teve alta. Abraçou o filho, enfim. -" Papai, desenhei o senhor. Veja." Valeriano nunca tinha visto os desenhos e tarefas escolares do filho. Nunca tinha ido a uma reunião de pais. Sorriu ao ver os desenhos do menino. -" Esse sou eu? Estou bonito aqui, filho. Obrigado!!!" O desenho era simples, engraçado mas tinha grande valor. O garoto sorriu. -" É sim. Esse sou eu e a mamãe rezando pra Jesus te trazer de volta!!!" Valeriano abraçou o garoto. Estava de volta. Estava em casa. -" Bem vindo ao lar, Valeriano!!!!" Disse a esposa. Ele sorriu. Olhou o crucifixo na parede da sala. Nunca reparara como era lindo. Dourado. Brilhante. -" Obrigado, querida!!! Obrigado por manter em ordem o nosso lar!!!" Durante o jantar ficou sabendo que os vizinhos doaram duas cestas básicas pra sua esposa. Dona Fátima, a vizinha da qual não gostava, cuidou de seu filho enquanto Juliana ficava com ele no hospital! Sebastião, um vizinho aposentado com o qual Valeriano nunca conversara, organizou uma rifa pra ajudar sua família. Ele engoliu em seco. Tinha vizinhos maravilhosos. Era notório que ajudaram por causa de Juliana e do menino!!! Permitiria que a esposa terminasse os estudos básicos e trabalhasse fora, coisas que ele sempre se opôs!!! Demorou pra dormir. O frio. Os pinos e metais no corpo. Os remédios. As dores. Será que tinha sido um sonho?? Quarto escuro. Ele estava perdido em pensamentos. Aquele acidente poderia ter sido fatal. Tinha uma nova oportunidade pra recomeçar e fazer melhor!! Sentiu uma mão procurando a sua. Era a mão da esposa. Ela percebeu a mudança nele. -" Nada poderá ser como antes mas tudo poderá ser bem melhor do que nunca foi!!!" Pensou. Valeriano fez o sinal da cruz e adormeceu. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 18/07/2019
Reeditado em 23/07/2019
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