Patricine - CLTS 08

Aninhada entre as montanhas de Vosges e o Rio Reno, a Alsácia, no leste da França, foi alvo de disputa com a Alemanha ao longo da história. No século XVII, a maior parte dela foi reconhecida como francesa, embora algumas cidades continuassem independentes e os costumes dos habitantes preservassem fortemente a cultura alemã. Apesar disso, os alsacianos tiveram um papel ativo na Revolução Francesa, de um lado ou de outro dos conflitos.

Nessa região ficava a cidade de Eguisheim, construída em três círculos concêntricos ao redor do castelo. Vivia ali o General Ramolino, nascido na Córsega, o segundo de oito filhos de um advogado descendente da pequena nobreza italiana. Seu pai foi nomeado representante da ilha na corte francesa, de modo que foi criado aos pés da realeza.

Ramolino serviu em Valence e Auxonne até a eclosão da Revolução. Passou os primeiros anos do período em sua terra natal, atuando em uma complexa luta entre partidários da realeza, revolucionários e nacionalistas corsos. Apoiou os jacobinos, foi promovido e comandou um batalhão. Sabotou uma investida francesa na ilha italiana de La Maddalena, onde era um dos líderes da expedição, e por isso teve que fugir para a França continental.

Com a ajuda de um companheiro corso, Ramolino foi nomeado um dos comandantes no cerco de Toulon, cidade que havia se revoltado contra o governo republicano e foi ocupada por tropas britânicas. A ofensiva levou à captura da cidade e à promoção dele a general de brigada. Após isso, por causa de uma ferida na coxa, conseguiu se aposentar e foi viver em Eguisheim.

Victoria, sua filha, achava a propriedade da família pitoresca e solitária. O château ficava isolado a algumas milhas do castelo, no início de uma floresta escura. A estrada, muito antiga, íngreme e estreita, passava em frente à ponte levadiça que levava ao château, que tinha uma fachada de muitas janelas, duas torres, e uma pequena capela gótica ao lado.

A família resumia-se a Victoria, seu pai e os empregados. A melhor companhia da moça era a Madame Bovary, a governanta, natural de Rouen, cujo cuidado e boa natureza supriam em parte sua necessidade materna, pois da mãe não tinha qualquer lembrança. O mais próximo de amigas eram duas ou três jovens que a visitavam ocasionalmente. Assim, quase nunca saindo no château, sentia-se uma ermitã.

A memória mais antiga de Victoria era de pouco tempo depois de terem se mudado para lá. Tinha cinco ou seis anos quando acordou no meio da noite; não tinha medo, porque era uma daquelas crianças que são cuidadosamente mantidas em segurança o tempo todo e era totalmente ignorante sobre histórias de fantasmas, demônios e todas aquelas coisas que faziam as pessoas cobrirem as cabeças quando uma porta batia sozinha ou quando a chama de uma vela balançava sem nenhum vento. Para sua surpresa, viu um rosto solene e bonito olhando para ela. Ficou a observar com uma espécie de satisfação maravilhada. A jovem mulher lhe acariciou e deitou ao seu lado, abraçando-a sorridente. Sentiu-se deliciosamente acalmada e adormeceu depressa.

Pouco tempo depois acordou com a sensação de duas agulhas afundando em seu peito e chorou, gritando a plenos pulmões. A mulher havia desaparecido. Enfermeira, babá, governanta, todos foram correndo acudi-la, mas fizeram pouco caso de sua história. Entretanto, mesmo em sua simplicidade, a menina percebeu que eles estavam apenas fingindo não se preocupar, pois havia uma certa palidez ansiosa no rosto de todos. O que ela não percebeu foi que o espaço ao seu lado, onde a mulher havia se deitado, ainda estava quente.

Outro sinal de que eles não tinham simplesmente ignorado o relato da menina, como tentaram convencê-la a acreditar, foi que, no dia seguinte, chamaram um velho venerável, usando uma batina preta, que conversou um pouco com ela e ensinou um trecho do Salmo 27 para que rezasse quando sentisse medo. Mas ela logo esqueceu a oração e qualquer lembrança anterior àquela noite.

Já moça, em uma doce tarde de verão, seu pai lhe convidou para fazer uma caminhada pela floresta aos fundos do château, o que lhes era costume. Ele contou que seu amigo, o general Saliceti, não poderia visitá-los aquela semana como prometera. Isso a entristeceu, porque ele prometera levar uma jovem senhorita, sua sobrinha, para apresentá-la a Victoria, na esperança de que elas construíssem amizade.

– Graças a Deus você não conheceu a mademoiselle Argóvia, querida.

– Por que diz isso, papai?

– A jovem está morta. – Victoria ficou chocada. O pai lhe entregou a carta. – Temo que ele esteja em grande aflição. A letra está bastante tremida e há vários erros e coisas estranhas.

Victoria confirmou que o que o pai dizia era verdade. A carta era perturbadora. Entre as lamentações, Saliceti dizia que a moça havia sido morta por um demônio. Dizia que iria caçá-lo onde quer que estivesse. Não podia dar detalhes por escrito, e não poderia visitá-los tão cedo. “Reze por mim, querido amigo” foram as últimas palavras.

A noite clara e suave caiu, eles ainda discutiam as frases violentas e incoerentes que Saliceti lhes escrevera. Voltaram ao château, passando novamente por aquela ponte pitoresca, perto da qual ficava as ruínas de uma torre que não aguentava mais esperar por um inimigo. Uma fina camada de névoa surgia. A lua cheia refletia no rio, mergulhando Victoria e seu pai em uma atmosfera solene. Ao mesmo tempo chegaram à ponte, também voltando de um passeio, Madame Bovary e sua ajudante, Mademoiselle De Rivia. Esta, que tinha um estranho lado metafísico e folclórico, declarou que quando a lua brilhava com uma luz tão intensa indicava uma atividade espiritual especial.

Providencialmente, o som de rodas de carruagem e muitos cascos sobre a estrada chamou-lhes a atenção, vindo de Eguisheim. O terreno onde estavam era mais alto, de modo que ainda não podiam ver, em um primeiro momento, quem vinha. Dois cavaleiros apareceram primeiro, depois uma carruagem puxada por quatro cavalos e dois cavaleiros, todos vestindo libré e de rostos magros e sombrios. Parecia ser a carruagem de viagem de uma pessoa importante. Ao se aproximarem, notou-se que pareciam apavorados, de modo que corriam a toda velocidade.

A carruagem virou, pelo que Victoria cobriu os olhos por um instante. O som que mais se destacou foram os gritos de susto de suas companheiras. Quando olhou, dois cavalos e a condução estavam caídos. Uma dama conseguiu sair sozinha, depois resgatou-se, com a pronta ajuda de Ramolino, uma moça inconsciente.

O general, com os dedos no pulso dela, garantiu à mulher mais velha, que se declarou sua mãe, que ela estava viva. A senhora era bonita para sua idade; alta, mas não magra, vestida de veludo preto e parecia um pouco pálida, mas com um semblante soberbo, embora agora agitado.

– Eu preciso continuar. – Disse ela, com um forte sotaque alemão – Estou em uma jornada de vida ou morte, e não sei quanto tempo vai demorar para minha filha se recuperar. Devo deixá-la, não posso ousar me atrasar. Também não posso voltar para Eguisheim. Diga-me, senhor, a próxima cidade fica muito longe?

– Bem, se a madame desejar deixar sua filha aos nossos cuidados... – O general começou, dirigindo-se à mãe, em resposta a uma súplica silenciosa de Victoria. – ...e permitir que ela permaneça como nossa convidada, até que a senhora possa retornar, isso será uma honra para nós.

– Oh, não posso fazer isso, senhor. Seria cruel abusar de tua gentileza e cavalheirismo.

– Na verdade, seria um favor para nós também, pois a moça poderia fazer companhia à minha filha, que tem se sentido solitária.

– Será que ela não vai precisar de um médico ou coisa que o valha?

– Eu posso garantir quaisquer cuidados necessários. Além disso, a vila mais próxima na vossa rota é distante e não está de acordo com vossa dignidade. Se vossa jornada não pode ser suspensa, não haveria melhor lugar para deixá-la do que conosco, onde haverá garantia de honestos cuidado e ternura.

Havia algo no ar e na aparência dessa senhora tão distinta, imponente e, à sua maneira, tão envolvente, que era impossível que ela não impressionasse qualquer um com sua dignidade. A essa altura, a carruagem foi recolocada na posição vertical, e os cavalos preparados para prosseguir. A madame lançou à sua filha um olhar menos afetuoso do que era de se esperar e se afastou com o general para dizer-lhe algumas palavras. Após um par de minutos, aproximou-se da filha, que havia sido colocada sentada ainda inconsciente, sussurrou algumas palavras que foram interpretadas como uma benção, entrou na carruagem e partiu apressada. Só no momento que o som dos cascos desapareceu que a moça abriu os olhos. Com uma voz muito doce, perguntou pela mãe, pelo que Madame Bovary explicou-lhe a situação e lhe ofereceu palavras de conforto.

– Quando ela pretende voltar? – Perguntou a moça.

– Três meses. – O general respondeu com um tom grave. – Ela não poderá retornar antes disso. Agora, é melhor a senhorita entrar e descansar um pouco, acabou de sofrer um desmaio.

O general enviou um criado a cavalo para chamar o médico e uma para preparar um quarto para a hóspede. A governanta a ajudou a caminhar até sua cama, onde logo afundou em sono profundo.

– O que mais me intriga nessa história toda era a mulher que permaneceu na carruagem. – Disse a Mademoiselle De Rivia mais tarde, enquanto tomavam chá no salão.

– Que mulher? – Perguntou Victoria.

– Uma mulher negra, medonha, com uma espécie de turbante colorido na cabeça, que ficava olhando pela janela com um olhar furioso.

Mas ninguém havia visto essa mulher, de modo que julgaram que fosse, ou coisa da imaginação fértil da jovem, ou um fantasma.

– Papai, o que foi que a mãe da moça disse?

– Bem, a madame fez uma longa descrição sobre a saúde dela, tão longa que eu não entendi se a jovem tem uma saúde de ferro ou se está à beira da morte. – O general riu. – Também falou que estava em uma viagem de importância vital, que deveria ser rápida e secreta, mas da qual só poderia retornar em três meses. Bem, foi basicamente isso.

O médico chegou quase uma hora depois. Quando retornou para a sala de visitas após examinar a paciente, foi para dar um diagnóstico bem positivo. Com pulso regular, ela parecia muito bem. Não sofreu nenhum ferimento, e o pequeno choque em seus nervos passou. Já poderia ser visitada sem problema algum. Ao saber disso, Victoria imediatamente mandou uma criada ir perguntar para a moça se poderia vê-la.

A visitante estava em um dos quartos mais bonitos do château. Havia uma tapeçaria sombria em frente ao pé da cama, representando o Cavaleiro Negro da Fome. Nas paredes, quadros de Atena, Judite, Raquel, Elizabete I e Cleópatra. Quando Victoria chegou, ela estava sentada; sua figura esbelta envolta no roupão de seda macia, bordado com flores e forrado com seda grossa acolchoada. A anfitriã ia saudá-la, mas emudeceu ao perceber a jovem era a mesma que vira naquela noite em sua infância. A hóspede sorriu, e disse:

– Tive uma visão contigo há doze anos. Não sei se era sonho ou coisa real, mas como eu esqueceria tal face angélica?

Victoria tinha a timidez dos solitários, ainda mais em momentos assim, pelo que ficou desconcertada. Após algumas palavras de boas-vindas, contou-lhe também a experiência que tivera na infância.

– Maravilhoso! – A hóspede disse. – Nós duas tivemos sonhos uma com a outra. E ambas tinham aproximadamente a mesma idade. Talvez os sonhos tenham acontecido no mesmo dia!

– Tem certeza que era mesmo eu que você viu?

– Sim, tenho certeza! É a minha lembrança mais antiga, mas lembro muito bem. Acordei com alguém chorando, e fui levantar para descobrir quem era. Então eu vi você, do jeito que te vejo agora, uma jovem bonita, com cabelos dourados, grandes olhos azuis. Sua beleza me conquistou. Fui até o quarto onde você estava, que não era na minha casa, deitei na tua cama, te abracei como a uma irmã mais velha e dormimos juntas. Quando acordei estava de volta à minha cama, e já era manhã.

– Então parece que já estávamos destinadas, desde a mais tenra idade, a sermos amigas. – Victoria disse e sorriu.

Conversaram pelo resto da noite, até não aguentarem mais de sono, e se despediram. Passaram o dia seguinte todo juntas, Victoria ficou encantada com a companhia da moça. Não só suas palavras, mas a própria beleza física era magnética. Ela era alta – mais que a média das mulheres –, muito magra, maravilhosamente graciosa, seus olhos grandes, escuros e brilhantes, cabelos grossos e compridos quando caíam sobre os ombros, em um marrom muito escuro.

Mas uma coisa que não a agradou foi que a amiga insistia em não falar nada sobre quem era, de onde viera ou para onde iria. Havia uma frieza e convicção muito madura nisso, demonstrada enquanto ela sorria em sua recusa melancólica e persistente em dar o menor raio de luz. Victoria chegou ao ponto de ser inconveniente em sua insistência. O pouco que revelou sobre si era que seu nome era Patricine, era de uma família antiga e nobre, e vivia ao sul.

Elas viviam se abraçando e trocando beijos no rosto, o que era muito prazeroso para Victoria, mas com o tempo se tornou estranho e assustador. Isso porque sempre que Patricine a tocava com os lábios, Victoria sentia como se sua energia fosse drenada. Com o tempo, essa sensação ia ficando mais forte, de maneira que às vezes seu corpo ficava todo mole. Mas o calor da amiga logo a fazia esquecer tudo.

Patricine raramente tomava café da manhã ou almoçava, porque acordava muito tarde. Quando descia, tomava apenas uma xícara de chocolate e chamava a amiga para passear. Quase imediatamente depois, entretanto, sentia-se exausta e pedia para voltar, ou sentava-se em um dos bancos que foram colocados, aqui e ali, entre as árvores.

Em uma dessas oportunidades, elas estavam próximas à estrada quando viram passar uma procissão. Conduziam o corpo da filha de um dos guardas da floresta. O caixão ia na frente carregando por parentes, e os outros o seguiam em fila dupla, cantando um hino fúnebre alemão. Victoria se levantou em sinal de respeito quando eles passaram, ouvindo aquela canção doce e triste. Essa mesma melodia mais tarde seria usada pelas mondines, na Itália, para criar a canção conhecida como Bella ciao, mas surgira séculos antes.

Quando Victoria se deu conta, Patricine havia desaparecido. Só foi encontrá-la à noite, no jantar, e ela desconversou, afirmando que havia ido embora porque odiava aquele hino. Ela também não terminou a refeição, alegando estar muito cansada, e foi dormir cedo.

Pensando sobre isso mais tarde, já deitada em sua cama, Victoria se perguntou se alguma vez vira sua convidada fazendo orações. Certamente nunca a vira de joelhos. De manhã, nunca desceu até muito tempo depois que as orações da família terminaram e, à noite, ela nunca estava quando a família se reunia para orar. Também nunca aceitou o convite de conhecer a capela. Se não tivesse acontecido casualmente de dizer em uma de suas conversas descuidadas que havia sido batizada, Victoria duvidaria que ela sequer fosse cristã, pois religião era um assunto da qual nunca ouvira Patricine dizer palavra. Se Victoria conhecesse o mundo melhor, não se surpreenderia com a apatia religiosa da hóspede, mas dentro do mundinho em que ela vivia isso parecia absurdo.

Esses pensamentos não permitiram que, quando adormeceu, tivesse um sono muito pesado. Acordou com aquela conhecida sensação de duas agulhas enterrando profundamente em seu peito. Estava escuro, e ela não conseguia gritar, nem se mexer. Era como se não tivesse energia alguma no corpo. O que salvou sua vida, entretanto, foi que ela ainda conseguiu murmurar aquele hino fúnebre que fez Patricine fugir.

O poder da canção milenar foi logo comprovado, pois a coisa drenando sua energia desapareceu, reaparecendo na parede oposta do quarto. Mais próxima da janela, iluminada pela luz da lua, Victoria pôde ver melhor aquela silhueta feminina e seus olhos negros brilhantes. Recuperou em parte seus movimentos, mas continuou a murmurar o hino.

Nesse momento, Mademoiselle De Rivia entrou com uma vela, iluminando torpemente o quarto. Patricine parecia grudada à parede, como se estivesse tentando atravessá-la. Ela se batia, gemia, gritava, rugia e urrava como um animal encurralado.

– Eu tive um pressentimento e vim ver se a senhorita estava bem. – De Rivia disse, de olhos arregalados. Com uma firmeza que Victoria nunca vira antes, De Rivia começou a cantar aquele hino junto com ela, não em alemão, mas em latim. Patricine perdeu a voz. Ainda se debateu um pouco, jogando-se contra a parede algumas vezes, até finalmente se desmaterializar.

– Mas como isso é possível? – Perguntou Victoria mais tarde, quando se acalmou, sentada em sua cama junto a De Rivia e Madame Bovary, iluminadas por velas. – O que ela era, afinal?

– Uma aparição, suponho. – Respondeu De Rivia.

– Mas aparições não são... intangíveis? Eu a beijei várias vezes!

– Elas são capazes de drenar a energia dos vivos para fazer coisas inimagináveis.

– Drenar... energia... oh, faz todo sentido! – Os olhos de Victoria brilhavam, enquanto seu cérebro processava tudo o que havia acontecido. – Então aquela carruagem, aqueles lacaios, a mãe dela... eram todos fantasmas?

– Suponho que sim.

Na primavera seguinte, Ramolino e Victoria decidiram fazer uma viagem pela Itália, um pouco antes do início da Guerra da Segunda Coligação, partindo quando os conflitos se intensificaram. Demorou muito para que o terror dos acontecimentos com Patricine abandonasse os dois, e de vez em quando sua imagem retornava à mente de Victoria: às vezes, a menina brincalhona, lânguida e bonita; às vezes, o demônio contorcido que tentou matá-la quando a fome chegou ao extremo; e em algumas ocasiões, como em um devaneio, Victoria ouvia seus passos leves atravessando o corredor.

TEMA: ASSOMBRAÇÃO