Terror em dose dupla

Era véspera de festa na cidade. O casal, com duas meninas gêmeas, de onze para doze anos, queria ir ao baile, mas não tinha com quem deixar as meninas. Ansiavam a todo custo ir ao baile, pois coincidia a data de aniversário de casamento. As crianças não atrapalhavam, mas não queriam ficar sozinhas durante a noite. Elas tinham medo do bicho papão.

- Minhas filhas, disse a mamãe.

- Hoje, eu e o papai de vocês completamos quinze anos de casamento. Queremos comemorar. Vamos ao baile da cidade e as duas bonequinhas não podem ficar sozinhas nesta casa. Pode aparecer o bicho papão. Ok?

- Vou levá-las para a casa da titia, na fazenda da Jangada. Vocês vão brincar muito de pique, com os cães, com os gatos e até no rego de água do moinho. Está muito quente e muito calor. Poderão nadar e vão comer muito bem. No domingo à tarde, vamos lá e buscaremos vocês.

- Certo, mamãe, certo.

Sorridentes e felizes, foram arrumar as mochilas e com pouco tempo, já estavam a caminho da fazenda.

Não demorou muito e o casal já estava se arrumando para o grande baile. Eram quinze anos de casamento. Com muita luta, com muito empenho, construíram a casa, compraram o carro e ainda tinham uma pequena reserva no banco. Estavam felizes e muito animados para a comemoração. As crianças estariam bem, pois gostavam muito da fazenda da titia.

As crianças brincaram muito. Correram por todos os lados, trebelharam muito e no final da tarde, já cansadas, foram para o banho e jantaram. Assim que terminaram o jantar, o dono da fazenda ao lado chegou lá e disse:

- Dona Maria. A Sandra tem que ir para a cidade. Ela está com fortes dores na barriga e deverá internar no hospital. A Joana ficará sozinha. Eu não gosto que ela fique sozinha. Já está de idade e pode cair.

- Será que a senhora pode ir dormir esta noite com ela?

- Sim, compadre. Será um enorme prazer ir. Vou aproveitar e levar as minhas duas sobrinhas, que moram na cidade e vieram passar o fim de semana aqui, comigo.

- Está bem, Comadre.

Indo apressadamente para a fazenda e logo passava com o veículo conduzindo a esposa para o hospital.

- Minhas queridas sobrinhas.

- Hoje, a noite será diferente. Vamos deixar o titio dormindo aqui e vamos repousar na fazenda do Compadre, porque ele teve que levar a Comadre para o hospital e voltará somente amanhã.

- Oba. Eu posso levar a Gaúcha, uma gatinha muito mansinha e que se familiarizava com uma das meninas.

- Não, meu amorzinho. A Dona Joana não gosta de gato.

Juntaram a pouca bagagem e lá foram para felizes pela estrada em direção a outra fazenda.

- O de casa, venha ver que está aqui, de fora. Dizia a tia para a Dona Joana, que saiu com uma cara muito feia.

Dona Joana era a mãe de Sandra. Já anciã, com mais de oitenta anos, vestia-se um vestido na cor preta, que se arrastava até os pés. Com um paletó de cor preta, muito longo, mal se via as pequenas mãos, meio trêmulas, com duas alianças no dedo da mão esquerda. Era viúva e quando perdeu o esposo, colocou a aliança dele no dedo dela e nunca mais tirou e nem mesmo quis olhar para outros homens. Ficou viúva muito nova, mas com a força do trabalho e sua disposição, criou as duas filhas e um filho. Nenhum deles ficou na fazenda, somente Sandra. Eles foram estudar na cidade e moram na capital.

- Quem são vocês?

Usando óculos muito forte, segurando um pedaço de pau, o qual se chama bengala, meio surda, dizia várias vezes.

- Sou eu, Dona Joana. A Maria do Quinzinho. O compadre pediu para eu ficar com a senhora, nesta noite.

- É mesmo. A Sandra ficou doente e o Tião foi levá-la no hospital. Não é coisa séria. Ela vai ficar boa.

- Vamos chegar e entrar. Eu vou soltar os cachorros. O Amarildo chega amanhã bem cedo para tirar o leite. Os cachorros são bem acostumados com ele.

- E estas meninas, tão bonitas, de quem elas são?

- Dona Joana. Elas são minhas sobrinhas. Vieram passar o fim de semana comigo. O pai delas virá amanhã para levá-las para a cidade. São muito meigas e travessas.

- Boa noite, Dona Joana.

Disseram repetidas vezes, mas Dona Joana não agradou muito delas.

- Todas entraram para dentro e logo a anciã liberou os três cães. Eram muito bravos e logo foram até a sacada e latindo muito, pôs as meninas para dentro. A gatinha não foi e se tivesse ido, estaria morta pelos ferozes cães.

Conversas vão, conversas vão. A noite se distanciava do dia e sempre se ouvia as badaladas do relógio suíço fixado na parede: dão, dão, dão...

Com muito custo, resolveram deitar. As meninas já estavam cansadas e cochilando no banco duro e grande da cozinha. No fogão à lenha, o fogo ainda estava forte e aquecia a cozinha. A luz elétrica era fraca, porque eles não gostavam de lâmpadas fortes. O medo queria tomar conta das crianças, pois a casa era muito antiga, de formato velho, com o forro de bambu querendo despregar, os fios das lâmpadas muito longos, os portais grandes e as portas grandes davam um formato de castelo do famoso Conde Drácula. As janelas grandes e com vidraças altas davam muito trabalho para serem fechadas.

Nas conversas entre a tia e a Dona Joana, elas sempre falavam em fantasmas e almas do outro mundo. Dona Joana assim dizia:

- Esta fazenda foi construída na época dos escravos, aqui no Brasil. Foram muitos que a construíram. Muitos deles morreram de doenças, pois vieram da África e uma enorme epidemia de gripe passou por aqui. Morreram e foram enterrados debaixo do porão.

- Eu sempre escuto a dança deles. Batem tambores, tocam violão, pulam e até, de vez em quando, vem puxar a coberta da cama de quem está dormindo. Já vi e já ouvi muito disto. São quase noventa anos vivendo aqui e se eu morrer, quero ser enterrada debaixo do porão, para ficar junto deles. Eu brinquei muito com eles e sempre me trataram bem. Aprendi muito com eles. Aprendi a história deles, o canto deles, a religião deles e os poemas deles.

Na altura do campeonato, as meninas acordaram meio depressa e sentiram pavor em ouvir a anciã contar tudo aquilo. A casa era velha e na mente delas, os escravos iam atacá-las a qualquer momento. Quiseram ir dormir no quarto da tia, mas a cama era de solteira e mal cabia a tia.

Em um quarto do outro lado do corredor, chamado quarto da sala, Dona Joana acomodou as crianças. Pôs bastante cobertas, duas toalhas, uma jarra com água e dois copos. Estavam em uma bandeja azul, pintadas com flores brancas. Ao lado, colocou dois pratos cheios de biscoitos caseiros, quatro pedaços de bolo e quatro pães de queijo. Dizia Dona Joana que era para comer, caso a fome apertasse no decorrer da noite. Dois penicos estavam debaixo da cama e disse às meninas que era para urinar, se sentissem necessidade, pois o banheiro é longe e os cães estavam soltos.

Pediu para as meninas irem para a cama. Uma cama de casal, com colchões altos. O quarto era grande e tinha duas janelas voltadas para os fundos da fazenda. Da janela, a vista era linda. Via-se uma pequena colina, várias árvores, moitas de bambu, plantação de laranjeiras, jabuticabeiras, mangueiras e até uma parte cercada onde se plantavam as verduras da fazenda. Outra lindeza daquele local era poder ver e ouvir a bica de água, bem próxima do local. Ouvia-se a água cair sobre as pedras com um barulho tão belo que se fazia estar no paraíso. Podia-se ouvir a serenata dos grilos, sapos, cães, enfim, a bicharada toda fazendo a mais linda seresta da noite.

Assim que as meninas deitaram e se cobriram, Dona Joana apagou a luz do quarto, fechou a porta e foi para seu quarto, onde fez as orações e adormeceu.

A noite ia passando. O relógio sempre badalava e anunciava mais uma hora passada. Dona Joana dormia firme no quarto dela e sempre roncava. A tia das meninas adormeceu profundamente, pois a lida do dia era grande e quase não aguentou acompanhar Dona Joana nas conversas.

Por volta das três horas da manhã, uma das meninas rolou na cama e caiu no assoalho, levando consigo parte das cobertas. O barulho foi grande que acordou a outra irmã. A coberta era puxada pela irmã, debaixo da cama. Ela segurava firme. Queria gritar, mas a voz não saía. Queria chorar, mas o choro e as lágrimas não vinham. Com a movimentação de uma menina puxando a coberta e a outra tentando segurar, o assoalho se movimentava e logo ouviu o prato de biscoito cair e a jarra de água espatifar no assoalho, molhando a menina do chão. A mesinha de cabeceira caiu sobre ela, fazendo barulho. Então o grito das duas foram ouvidos por toda casa:

- Eles estão vindo. A festa está começando e seremos fritas no caldeirão do assoalho.

Com o alvoroço, a tia acordou e logo foi até o quarto. Quando acendeu a luz, viu a baderna causada pelas meninas. Ficou o resto da noite junto delas e sempre contanto estórias dos acontecimentos da fazenda.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 21/09/2019
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