A Besta de Eksau

Este conto me chegou através de um ritual durante a lua cheia, feito às portas de um mausoléu abandonado...

O mestre da porta se chama Kaizel, o insaciável.

Não faça piadas com os seus olhos vesgos.

Não o olhe diretamente, pois corre-se o risco de ficar cego.

E o mais importante, não esqueça do sangue de gato preto, colhido sete dias antes em uma garrafa vermelha de vidro.

Não durma!

Era uma sexta-feira comum de outono e o sol brilhava sobre a vila de Eksau, que ficava entre dois morros, ao norte das terras de Uävallir, extremo oriente do mundo antigo. E os aldeões se preparavam para o festival da colheita, agradecidos pela safra abundante de suas plantações. O clima de festa impugnava o coração de todos a louvarem a Mãe da Natureza pela dádiva de colherem a cem por um, muito mais do que os mais experientes agricultores esperavam, afinal, muitas vilas foram atacadas pela praga, mas Eksau ficou fora do caminho da doença e da morte.

No entanto, nem tudo eram flores para todos.

Num pequeno loteamento, distante da vila e fronteiriço à floresta, a família de Liv atravessava por uma provação desde que o pai foi encontrado morto à beira do lago azul, quando saiu para pescar. Ela e sua irmã eram menores na época e pouco se lembram do pai falecido, que tinha um sorriso grande e olhos sulcados com enormes olheiras. E diferente dos demais homens da vila que trabalhavam com a caça e a curtição de couro, Fellyr preferia passar tempo na floresta colhendo raízes e pescando.

Isso deixava os homens da vila com raiva, porque sua cota de impostos era sempre atrasada e todos acabavam pagando com juros para os coletores do rei, que vinham em caravanas pela região para garantir que o ouro não seria roubado por ladrões e salteadores, principalmente pelos Espectros do Rei, uma unidade de elite da guarda real que se desgarrou desde a última guerra.

A mãe de Liv e Karia, Meredine, à época do luto, começava a passar pelos sintomas iniciais da Febre da Lua, uma doença que diziam as curandeiras — acometia as mulheres que não pariram filhos homens —, e com o tempo, a febre veio acompanhada de um sangramento em suas partes, que sempre durava quase o mês todo, tanto que mesmo os panos de pele de bode não eram o suficiente para segurar o fluxo de sangue que lhe escapava entre as pernas, deixando-a com um odor azedo e com uma aparência pálida, como uma vela.

— Liv, Liv! — chamava a irmã caçula por sua irmã, com uma diferença de idade de dois anos, para menos.

— O que foi, Karia?

— É a mãe, ela está com febre de novo.

— Eu pensei que a senhora Misha tinha curado a mãe dessa vez. Você deu o chá como ela mandou?

— Claro que sim. A mãe tomou tudo, mas daí caiu arqueada na cama reclamando de dor e tremendo por causa da febre…

— Acho que terei que ir à floresta para colher mais cogumelos e flor de papoula — pensou Liv, enxugando a testa de suor por causa das mãos no arado da pequena horta que cultivava para manter alguns repolhos e tomates na sopa. Desde a morte do pai e da doença da mãe, a irmã mais velha assumiu o cuidado com a casa e com a irmã, que passava a maior parte do tempo ao lado da mãe.

Vez ou outra também as meninas recebiam a visita de Misha, uma velha curandeira corcunda com cheiro de alho e sal que morava em outra vila, ao norte de Uävallir; e de Ballaror, um homem de feições grosseiras e barba. Ele era o chefe e o açougueiro da vila, que sempre usava a desculpa de trazer Misha para saber da moeda de ouro que todos pagavam da cota do imposto, caso contrário, Eksau perderia a proteção dos soldados. E o prazo daquela estação já parecia estar apertado para que as cem moedas fossem coletadas.

Liv sabia pelo sol no meio do céu de que Misha se aproximava com Ballaror e não demorou muito para que escutasse o trotar dos cavalos e dos cachorros que vinham atrás, latindo, pela estrada de terra batida, ladeada por pinheiros altos e pontiagudos.

A tranquilidade foi trocada por um alvoroço de relinchos e ganidos afobados.

— Oh, oh, oh, calma! — disse Ballaror com Misha na garupa de um garanhão cinza, puxando a rédea para controlar o cavalo. Os cães pararam de latir, entediados porque os cavalos pararam de galopar, deixando-os sem motivo para continuarem com os latidos.

O açougueiro e Liv trocaram olhares sérios por alguns instantes.

— Como você está crescida, menina! — disse Misha, descendo do cavalo com dificuldade por causa da corcunda, até que os cães voltaram a latir, fazendo o garanhão coicear e derrubar a velha, que caiu toda embolada, fazendo um barulho surdo de baque.

Ballaror deu um aperto no cavalo com os calcanhares e se controlou para não rir da velha, que agora se levantava do chão ajudada por Liv…

— Uma piada disso e eu corto seu pinto fora, chefe — ameaçou a curandeira com uma carranca para Ballaror, que se encolheu sem graça sobre o garanhão.

Depois um outro cavalo apareceu, montado por um jovem de rosto oval e de cabelos tão escuros. Era Ran, o filho mais novo de Ballaror e o mais parecido com ele, que não foi enviado à guerra porque sua mãe se agarrou à sua perna e não a soltou até que os soldados tivessem desistido de levá-lo, indo, portanto, apenas Ryan, o mais velho, o que tinha olhos azuis e cabelos cor de mel, e que morreu atravessado por uma centena de setas em uma batalha do rei para contar uma invasão de bárbaros etrusquianos, ao sul.

— Menina, eu vim apanhar a cota de imposto da sua família.

— Chefe, ainda faltam semanas antes que a caravana do rei passe para coletar o dinheiro. Preciso de mais tempo...

— Seu pai sempre pedia mais tempo também — respondeu Ballaror, cínico.

Liv sempre escutava piadas infames sobre o pai, e uma delas é sobre como ele adorava gastar o dinheiro que ganhava, vendendo raízes para os mulmeranos, com hidromel e putas da montanha, sendo este o motivo derradeiro — é o que comentavam —, porque sua mulher contraiu a doença: porque o marido se deitou com tantas meretrizes que seu pau ficou coberto de verrugas. Um detalhe que Liv e Kaira odiavam ouvir, pois já estavam quase na época do desabrochar de mulher e já sabiam o que isso significava. Mas apesar das duras palavras que ouviam, elas preferiam guardar a débil imagem do pai que tinham, a de um homem honrado com o casamento…

— Liv, não ligue para o chefe — disse Misha, caminhando em direção à moça, que estava desconfortável com a cobrança. — Leve-me até a sua mãe. Eu quero saber se o chá que deixei para ela fez algum efeito.

— Adianto que não, senhora — respondeu Liv, de imediato. — Kaira passou por aqui falando da febre que ela sente. E tem a dor também, que nunca abandona seu corpo, mesmo enquanto dorme.

— Isso parece ser um efeito adverso, menina.

Liv olhou de maneira terna para a curandeira, mas não compreendeu o que seria um “efeito adverso”, porque aquelas coisas das quais fala Misha são difíceis de entender. A única coisa que menina aprendeu mesmo foi a trabalhar na terra e a colher plantas quando caminhava pela floresta, um momento que ela muito apreciava porque ali na mata fechada, ela podia ser livre para ser o que queria. Lá não existia mãe doente, pai morto, irmã caçula e os impostos do rei. Sua única preocupação eram as maçãs que pendiam das macieiras, vermelhas e suculentas que saciavam sua fome.

As duas deixam Ballaror e Ran para trás na companhia dos cavalos e dos cachorros.

O chalé em que moravam era tão simples que mais parecia um lugar abandonado, coberto de teias de aranha e escuro. Dentro dele, dois caldeirões ferviam, um com ensopado de legumes que tinha mais água do que legumes, e no outro o chá de raiz amarga e pele de cobra em pó que Misha deixou na última visita.

O cheiro de doença impregnava nos narizes, que se contorciam pelo odor de terra e sangue, o qual salpicava a cama em que gemia Meredine.

— Já está assim há muitos dias — disse Kaira, quando viu que Misha entrava com a irmã. — Não sei mais o que fazemos.

Misha tirou da bolsa um ramo de pinheiro e rezou na antiga língua dos uavallianos, invocando deuses que já não habitavam mais as preces dos homens.

Meredine pareceu sufocar na cama, com o pescoço se apertando, com tons de roxo e preto enquanto a curandeira batia em seu corpo magro com a ponta do ramo, fazendo um agudo shick shick.

— O que é isso? — indagou Kaira, assustada.

shick shick

— É coisa de gente velha, irmã — respondeu Liv, de maneira resignada.

shick shick

Meredine parecia espremer-se sobre a cama, com dentes cerrados como um animal. A mãe da meninas respondia de maneira agressiva às palavras de Misha, que parecia prendê-la pelos pés e mãos, mas sem tocá-la, no entanto.

Kaira afundava o rosto no braço largo da irmã, temendo encarar a mãe naquele ritual.

— Aesira Nuah Hoked’Ash — cantarolava Misha. — Forrá Nuê Ricquial — Shabath Vouleit Ishtar…

Meredine flutuou alguns centímetros sobre a cama, antes que despencasse como uma pedra fria e sem vida.

Kaira chorava timidamente e Liv engolia o choro, tentando parecer forte. Misha continuou com a reza, mas dessa vez ela erguia uma pedra verde amarrada em um fio de cobre tirada de uma pequena bolsa de pano, balançando-a sobre o corpo de Meredine, como um pêndulo.

Liv viu quando um gota brilhante caiu sobre o peito descarnado da mãe, uma gota de um verde nebuloso que penetrou roupa, pele, carne e músculos. A mulher retornou ao seu corpo num súbito assustador, que foi sinalizado por um grito estridente seguido de violência, urina e fezes, até que tudo se tranquilizou num repente sem explicações, como uma tempestade de verão...

Misha pediu a mão das meninas e foi socorrida por Kaira, que a sustentou com dificuldades. A velha curandeira suava muito e suas mãos tremiam descontroladamente. Sua fala também estava mais pesada que o habitual.

Liv sabia que o que viu não era algo comum e sequer tinha certeza se o que Misha fez ajudaria sua mãe.

— Eu pedi ao vento que a carregasse… a doença — falou a velha, sentada em um banco ao lado da cama.

Meredine dormia como se nada tivesse acontecido. Sua expressão era tranquila como se jamais tivesse sofrido com as dores que lhe roubaram a paz nos últimos meses e pela primeira vez, desde a morte do pai, Liv sorriu aliviada...

A noite já ameaçava cair quando Misha deixou as meninas e sua mãe, voltando acompanhada de Ballaror e seu filho para a vila, onde passaria a noite comemorando à colheita. Então anoiteceu e as corujas montaram guardas nos galhos da floresta, iluminando a escuridão da natureza com seus olhos brilhantes e cabeças que se torciam para trás.

O clima estava fresco para a época do ano e as tochas iluminavam a estrada pavimentada que cortava a vila. As moças vestiam seus melhores vestidos, coroadas também com flores vermelhas, azuis e verdes. Os rapazes colocaram suas melhores calças e camisas. As pessoas se confraternizavam tomando vinho e comendo bolos. As crianças brincavam de ciranda ao redor de um fogueira pequena, vigiados por suas mães que falavam alguma coisa sobre a colheita e fofocas sobre Liv, Kaira e Meredine.

Todos esperavam pelo momento de acender o memorial para a Mãe da Natureza quando ouviram um sibilo que correu das árvores, um som de agouro que fez até mesmo os soldados do rei ficaram arrepiados por baixo da cota de malha que usavam, mas nada que fizesse urgir alguma expedição ao interior do bosque que os cercavam.

— Cadê Ballaror? — perguntou Sanny, quando passou por Lisgia, mulher do chefe.

— Eu não sei. Ele deu caminho há muitas horas com Misha para a casa do finado Ferlys e não retornou desde então.

Depois passou Orgue, o filho mais velho do padeiro e voltou a perguntar o mesmo que Sanny. Lisgia se resignou a responder a mesma coisa, mas já torcendo o nariz em desaprovação por causa do inquérito.

— Não havia ninguém mais preocupada do que ela com o marido — pensou enquanto apertava uma coroa de flores sobre a cabeça. O que lhe chateava é que as perguntas revelevam o que sentia. Ballaror saiu ainda quando o sol estava em riste e já anoitecera, o festival começara e ele não retornara.

Um outro sibilo veio do bosque, dessa vez mais alto do que o anterior, que fez música e goles de vinho pararem em meio ao caminho de ouvidos e bocas. O sibilo então deu lugar a um relincho melancólico de um garanhão cinza que entrou trotando na vila, carregando consigo apenas um pé preso às rédeas.

Todos pararam de fazer o que estavam fazendo para pegar o animal, que golpeava coices por causa da aglomeração dos guardas e dos vilões.

Lisgia precisou avançar entre as pessoas com cotoveladas distribuídas sem critério, acertando cabeças de crianças levadas e costelas gordas e magras.

— É o cavalo que Ballaror selou para ir à casa do Fellyr — foi o que disse, quando viu o membro decepado que pendia das rédeas entrelaçadas. Por um momento seu coração bateu tão fracamente que ela sentiu as forças das pernas se esgotarem com num relâmpago, mas a mulher do chefe precisava ser forte para que as outras esposas não temessem por nada. Ela era o exemplo de que dispunham. Ela e o marido, que recobrou o crédito de chefe desde que ela deu vexame pelo filho caçula, protegendo-o de servir na guerra, a mesma que ceifou seu filho primogênito que parecia com ela nos cabelos.

Outro sibilo cortou as vozes que falavam boatos sobre o cavalo do chefe e o pé decepado quando um frio cortante caiu sobre todos. As tochas e as fogueiras se apagaram e apenas a luz da lua iluminava o lugar com um tom azulado, quando uma massa negra de olhos vermelhos surgiu no meio dos vilões.

A coisa era duas cabeças mais alta que os homens e tinha presas que rasgaram como papel o pescoço de uma donzela, destruindo cordas vocais enquanto sua boca se esforçava para gritar inutilmente.

Os homens se apertaram para correr com suas mulheres, pisoteando algumas crianças que caíram no meio do desespero, esmagando-lhes os crânios com pisadas afobadas de sobrevivência que fizeram pular sangue dos olhos.

As músicas deram lugar a grito e choro por toda a noite…

O dia nasceu e o sol raiou sobre uma vila quieta. Não havia criancinhas e nem mães, não havia cachorros, nem homens indo curtir o couro, ou tosquiar ovelhas. Tudo estava no mais absoluto silêncio de gente, até que Liv apareceu acompanhada de Meredine, que naquele dia resolveu caminhar depois de uma centena de dias acamada.

No entanto, tudo o que encontraram foram membros decepados e um mar de sangue pelo chão. Corpos pendiam dos telhados, outros estavam empalados pelos postes que seguravam as tochas. Mulheres tiveram seus seios arrancados e crianças morreram sem os olhos. Os homens morreram com os braços arrancados e outros pareciam ter sido estripados do pescoço a barriga, projetando para fora uma efusão de intestinos...

— O que aconteceu aqui? — indagou Meredine, numa tremedeira.

— Mãe, todos estão mortos… — respondeu Liv.

Mãe e filha ouviram um trotar da estrada e quando perceberam estavam cercadas por um grupo de soldados reais, que hasteavam a bandeira do sol faceado do Rei Warissey III, senhor dos homens e dos elfos.

— Prendam essas mulheres! — declarou Illdo, um elfo de cabelos castanhos e sargento daquela guarnição da polícia real. — Elas são suspeitas.

Liv se abraçou a mãe, que lhe apertou entre os braços magros. Sua aparência ainda esmorecida conferia aos homens do rei a acusação perfeita — uma bruxa pálida e sua aprendiz obesa capturadas em flagrante —. Não havia o que fazer, pois era a palavra de um soldado juramento contra qualquer palavra de duas mulheres pobres...

Lugar errado na hora errada.

A caminhada até a cidade de Brighton foi uma prova árdua para Meredine, que ainda sentia o corpo fraco. Puxadas por cordas amarradas às mãos, mãe e filha permaneceram juntas até encontrarem com o magistrado do rei, um homem de estatura pequena e temperamento ranzinza, que distribuía palavras duras e mordazes para seus servos e réus.

— É um trabalho ingrato esse meu — disse Mortred, do alto de uma bancada, flanqueado por dois guardas que empunhavam alabardas decoradas com plumas negras. Era um homem da justiça do rei, encarregado pela palavra sã e sem retornos. Seu julgamento deveria ser como a lâmina de uma espada, pronta para lutar pelos interesses do reino. — Liv! — chamou.

A menina se arrastou até a sombra da bancada, ficando de pé em uma pequena meia caixa de madeira, de onde encarava o juíz.

O pátio do julgamento não era um lugar de sorrisos e a maioria das pessoas que ali estavam eram criminosas de fato, mas Liv e a mãe só foram passear pela vila antes de serem capturadas pelos soldados e acusadas de bruxaria. — Como? — era o que pensava a menina.

— Menina, você e a mulher foram acusadas de bruxaria — disse Mortred, indiferente, enquanto anotava com uma caneta de pena um grosso livro de páginas amareladas.

— Não somos, senhor — respondeu Liv, timidamente. No fundo, ela sabia que não adiantaria muito lutar pela sua justiça, por ela e pela mãe, que ainda estava se recuperando da febre da lua.

— Sua sentença é a separação de membros por práticas das trevas e pelo assassinato dos vilões — declarou Mortred, batendo um martelo de madeira, que ressoava na sua mesa como uma centena de ossos quebrando.

Crack Crack

Quatro soldados apareceram dos portões laterais, girando laços. Outros dois apareceram para pegar Liv, que chorava inconsolável. Os soldados levantaram seus braços com brutalidade, que em seguida foram laçados. Os cavalos soltaram uma relincho abafado e se afastaram, erguendo a filha de Fellyr alguns centímetros do chão que fez arder seus músculos e tensionando sua pele ao limite, que já estourava algumas bolhas de sangue. Depois seus pés foram laçados, e então a sentença.

— Oh, oh, oh — disseram os guardas, quase em uníssono. Os cavalos esporeavam com os gritos de Liv, que já sentiam seus braços separando pela força bruta, até que se faz um shraaaack.

Os braços de Liv se separaram do tronco, deixando rasgos de pele irregulares e respingos de sangue que salpicaram as paredes e a bancada do pátio do julgamento. Os demais réus rufaram com a justiça do rei, pois bem sabiam que dos crimes, o pior era o uso de arte das trevas.

O corpo da menina pendeu, preso pelas pernas nas cordas rijas que erguiam o resto dela entre o ar e o chão. Liv ainda gritou um pouco antes que seu corpo perdesse todo o sangue, jazendo ali uma vida encurtada pela “prática da bruxaria”.

E sua mãe assistia a tudo, sentada em um banco comprido de madeira, ao sol, que lhe temperava a pele sensível com queimaduras. Sua expressão era de uma calmaria mórbida, alienada ao momento. Um artifício da mente diante da dor, provavelmente. As vozes dos espectadores pareciam distantes e confusas, numa profusão de insultos que rompiam o ar, mas ela não ligava. Sua mente a levara a caminhar por memórias antigas de um tempo nas profundezas da floresta, quando rasgava a carne de suas presas com suas garras poderosas e moía seus ossos com os dentes...

Meredine foi se afundando mais e mais no banco, lembrando da última coisa que viu no pátio, o resto de sua filha sendo arrastada para um buraco ao fundo do pátio. Foi então que sua pele branca deu lugar a uma criatura de pelos negros e olhos vermelhos. A criatura estava livre outra vez e poderia cruzar o pátio destroçando homens e elfos indistintamente, mas parou ao sentir o cheiro de sangue que Liv deixou, um rastro profuso de um vermelho vivo e inocente.

A besta olhou para os homens e os elfos que se aglomeravam, apertados em torno dos portões em busca de salvação. Mas os olhos do monstro queriam algo mais específico, buscando por uma carne diferente das demais que se apertaram para fugir daquele lugar. Então seu focinho, negro como o piche, farejou um odor amadeirado e medo, que escapava pelas calças em um jato quente e amarelo como ouro.

A criatura pulou sobre a bancada, farejando o cheiro de sua vítima, que se encolhia toda urinada.

— Mortred — disse o monstro, que apertou sua mandíbula na cabeça do homem, estourando seus olhos com a força da mordida. A besta de Eksau só parou de morder quando sentiu que os ossos cranianos tornaram-se uma papa debaixo da pele furada de dentes.

A besta rugiu um choro de lamento e escalou as paredes de granito do pátio, até alcançar solene o topo da muralha e alcançar o lado de fora, indo para a floresta e sumindo, deixando para trás uma trilha de mistérios que nunca foram resolvidos.

E a história que se conta em toda Uävallir desde então, é em como a vila de Eksau foi devorada em uma noite por uma fera tão terrível e faminta, e como Mortred, o juíz do rei, morreu em nome da justiça e da verdade, protegendo o povo de uma criatura que tomou o sangue de suas vítimas e que fugiu para algum lugar das terras de Wistonheim.