ESCRAVO – CLTS 09

Tudo começou com a curiosidade. Não posso mentir que uma boa dose de cobiça e de luxúria também ajudaram. Afinal, quem não quer ser rico, belo, saudável, bem-sucedido e sexualmente atraente?

Comecei rezando. Meus pais sempre me disseram para pedir para “Deus” o que eu precisasse e ele me atenderia. Rezei por dias, semanas, meses, anos, mas nada mudou. Minha vida seguia de mal a pior! Que tipo de Deus é esse?! Fiquei cansado dessa baboseira. Esse “Deus” não serve para nada!

Pois bem, comecei a ouvir alguns comentários e a ler sobre algumas pessoas que diziam ter alcançado tudo isso muito facilmente, sem esforço praticamente nenhum. Bastava fazer alguns rituais, simpatias, mandingas, macumbas... e estava tudo certo. Bem, eu sou completamente leigo nisso, não sei sequer distinguir um do outro. Sabia que eram crenças diferentes do que chamamos de religião no sentido convencional, mas isso não me importava. Besteira. Queria saber do resultado... e que fosse rápido!

A internet foi uma ótima fonte de conteúdo. Qualquer dúvida era só procurar na web. Vídeos, textos, relatos, como fazer etc. Tinha uma “mãe de santo” aqui no bairro que se dizia ser capaz de realizar todos esses pedidos por um preço. Sendo que eu estava quebrado, liso, sem um tostão no bolso. Achei melhor aprender a fazer sozinho. Afinal, os materiais para esse tipo de atividade são baratos e facilmente disponíveis.

Acabei me deparando com uma tal de “GOTÉCIA”, ou algo do tipo. Ela prometia usar DAEMONS como escravos, bastava seguir o que o livro mandava, fazer os desenhos e rituais escritos e tudo se resolveria num passe de mágica. O que eu teria a perder? Mãos à obra.

Dos 72 DAEMONS, escolhi aquele que achava ser o mais poderoso. Afinal, se ele é o mais importante, ele poderia realizar todos os meus desejos de uma vez só, não é? Pulei toda a leitura introdutória, as páginas de advertência e fui direto para a página que ensinava a invoca a tal entidade. Lógico e direto.

Fiz o ritual conforme o livro. Tudo bem simples: comecei com os desenhos geométricos a serem feitos com giz consagrado, rabisquei os nomes nos locais adequados, fiz o círculo de sal, posicionei e acendi as velas negras e vermelhas conforme as instruções do livro. Tive sorte, pois a noite do ritual era, por coincidência, uma noite de lua-de- sangue. Proferi as palavras em latim, acho, pois não tinha a menor ideia de que língua era aquela e fiz meus pedidos. Entoei as palavras de comando e poder, quase gritando e, de repente...

Que sentimento seria aquele? Que sensação seria aquela? Notei meus pelos se eriçarem, uma presença estranha, uma lufada de ar deveras macabra adentrou o recinto, apagando as velas. Mas nada... nada visível, nada palpável. Teria dado certo?

O próprio livro dizia que eu deveria tentar mais algumas vezes, que o primeiro contato poderia acontecer depois de seis dias. Mas eu estava com pressa. Procurei formas de acelerar o contato e a realização dos meus desejos. Acabei descobrindo que esses seres gostam de bebidas, de sangue e de outros materiais de origem animal e humana. Assim o fiz nos dias seguintes. Primeiro, sacrifiquei um rato, depois uma pomba, depois uma galinha – que acabei comendo para não desperdiçar. No penúltimo dia, pus uma peça de roupa minha contendo meus pelos e suor. Só no último dia, quando ofereci meu sangue e fluídos reprodutivos foi que a entidade de fato se manifestou.

A partir de então, tudo mudou!

Repeti todo o procedimento com os elementos adicionais. Era uma noite de lua nova. O céu era só breu, destacando as constelações zodiacais no céu. Quando terminei de proferir as palavras de comando e poder, senti uma poderosa presença no meu quarto. As velas consumiam a minha oferenda quando aquele espectro enorme se materializou na minha frente. Era uma sombra escura tão grande que se encurvava ao atingir o teto. Notei que ele possuía vários chifres e emanava um cheiro diferente, de peixe podre e enxofre. Ao inspirar aquele ar, sentia-me energizado, como se aquilo fosse tomando conta do meu corpo.

– Quem me chamou?! – em um tom ameaçador o ser trevoso arguiu.

Eu sabia que tinha de demonstrar força e firmeza. Afinal, aquele ser seria o meu escravo e me daria tudo o que desejasse.

– Eu sou seu mestre! Você está aqui para me obedecer – respondi com a maior firmeza possível, embora minhas pernas tremessem, e sentisse um nó no estômago. Acho que o nervosismo era tanto que eu poderia vomitar a qualquer momento.

– Sim, mestre, diga qual é o seu desejo? – senti que a voz dele mudava de tom ao falar a palavra mestre. Mas como eu poderia distinguir? Afinal, ele falava diretamente dentro da minha cabeça. Me senti como um esquizofrênico ao falar com vozes do além.

Dei-lhe os comandos: queria ser rico, belo, saudável, bem-sucedido e sexualmente atraente. Ele sorriu um sorriso estranho. Tudo para mim era a primeira vez, como saber o que era normal ou não num momento daqueles?

Como um gênio, ele agitou seus fortes braços no ar, num gesto brusco, e bradou com uma voz que parecia um trovão:

– Está feito!

Num clarão intenso e eletrizante, senti um pulso intenso tomar o meu corpo e uma forte onda de choque se irradiar pelo meu quarto. As velas se apagaram e o espectro misterioso havia sumido.

Acordei no dia seguinte me sentido revigorado, disposto e feliz. Havia um cheiro ácido no ar. Tomei um banho sentindo que algo havia mudado.

Saí de casa e fui tomar um ar, dar uma volta na pracinha que tem perto de onde moro. Tinha apenas três reais no bolso e nada mais. Três reais para passar o resto do mês, e ainda faltavam quinze dias. Mas eu não me preocupava com isso. Sabia que o meu poderoso servo me daria tudo o que eu havia pedido. Senti aquilo como uma certeza dentro de mim. Uma adorável certeza.

No caminho, vi na lotérica que o sorteio da mega-sena acumulada seria no dia seguinte. O valor mínimo de uma aposta era de exatamente três reais. Era tudo ou nada. Apostei tudo o que tinha.

No dia seguinte, para minha alegria, fui contemplado com centenas de milhões de reais. Tentei sacar na lotérica, mas a moça me disse que só poderia sacar no banco, devido ao elevado valor.

Quando fui ao banco, ao ser atendido pela caixa, foi paixão à primeira vista. Ela era linda, cabelos ruivos naturais, olhos de uma cor verde acastanhada que lhe imprimiam um ar misterioso sem igual – seu nome era LILITH, mas todos a chamavam de Lili. Embora ela usasse uma roupa recatada, suas curvas eram perceptíveis, belas e harmônicas. Sua voz era levemente rouca, parecia sussurrar, algo que elevara instantemente a minha libido. Após realizar todos os procedimentos burocráticos, ela me passou o número do seu telefone pessoal. Disse que estaria disponível para me assessorar nos meus investimentos.

Liguei e, após quebrar o gelo e ir direto ao ponto, marcamos de sair no fim de semana. A cada dia que eu acordava, me sentia mais forte, musculoso. Ao correr pela praça, sentia os olhares das pessoas a me desejar. Meu escravo era poderoso! Ele me deu, depois de apenas poucos dias, o que passei anos me humilhando e pedindo a “Deus”!

No meu encontro com Lili, descobri que aquela moça pacata na verdade era uma fera. Ela me levou para locais e fizemos coisas que nunca iria imaginar. Descobri o termo “swing”. Descobri prazeres para além da minha imaginação. Consumi substâncias que me abriram os horizontes e sentidos. Novas cores, novos sabores, novos corpos. Tudo o que eu queria e, muito mais, eu tive acesso. Graças a meu escravo poderoso!

Em poucos meses, Lili me transformou em um novo homem! Era rico: comprei mansões, iates, carros de luxo; me vestia com as melhores marcas, usava os mais caros relógios, usava o que havia de mais moderno em dispositivos eletrônicos e vivia rodeado de mulheres – Lili não ligava para isso - na verdade, ela até gostava também. Meu dinheiro estava aplicado em investimentos que rendiam 30% ao mês! Obviamente não eram exatamente lícitos, mas quem se importa? Durante os “swings” regados a todo o tipo de drogas possíveis, conheci e me tornei íntimo de pessoas muito importantes e poderosas. Era chamado para fazer comerciais e passei a frequentar a alta roda da sociedade.

Mais ou menos um ano se passou e me esqueci completamente do meu escravo. Ele me serviu bem. Me sentia livre e poderoso, mais que qualquer homem! Enfim, um dia Lili disse que iria me fazer uma surpresa. Algo que eu não teria experimentado em toda a minha vida. Seria um outro nível de prazer e de sensações. Era uma “festinha secreta” que eu deveria ir só a uma fazenda de um novo amigo nosso.

Minha imaginação projetou um nível de luxúria nunca antes alcançado. Esse nosso novo amigo era um dos parceiros de negócios mais lucrativo, mas que pessoalmente não tive a oportunidade de ter o contato. Diziam que ele era envolvido com tráfico de drogas, armas e de pessoas, mas oficialmente seu negócio era importação e exportação de bens complexos.

No dia, hora e local, ao chegar na fazenda, Lili me ofereceu uma bebida de um sabor delicioso. A cada gole embotava os meus sentidos e a minha razão. Num piscar de olhos, eu estava sentado no sofá, vendo os convidados chegarem. No outro, estava amarrado em uma cama de madeira revestida de pregos a consumirem minha pele, sendo torturado enquanto estranhos cânticos eram entoados. As pessoas estavam cobertas por capuzes pretos, roxos, vermelhos e dourados. Do prazer celestial, desci para o tormento infernal em segundos.

Enquanto eles se deleitavam com o meu sangue, vi novamente aquele enorme espectro cheio de chifres a dançar pela sala, ele ululava demoniacamente, sugando os nossos fluídos.

Pouco antes de apagar de vez, olhei para ele e chamei:

– Escravo?!

– Sim, mestre? – mais uma vez o termo mestre saía de forma diferente. Senti que fora de forma pejorativa.

– Me tire daqui! – ordenei enquanto sentia minha pressão se esvair.

– Seu pedido é uma ordem! – ele gargalhou mais uma vez.

Uma onda de dor sobre-humana tomou o meu corpo e desmaiei.

Quando acordei, estava com meu corpo desnudo, coberto de dejetos, acorrentado ao poderoso espectro maquiavélico.

– Mas o que é isso, escravo?! – questionei indignado.

– Já chega desse teatro! Não preciso mais disso! Escravo é você, seu imundo! Eu sou o seu mestre! – dizia o ser espectral enquanto minha boca era costurada por um fio mágico.

Não sabia distinguir se aquela visão fora real ou não, mas, quando olhei ao redor, percebi que estava preso dentro uma caixa metálica, junto com outros corpos amontoados no chão. Acho que estamos presos dentro de um container. Pilhas de livros de magia negra nos ocultavam a porta. Estou escrevendo isso a muito custo com o meu próprio sangue em um exemplar que consegui tirar do bloco de embalagens.

A você, que agora encontra esse livro, peço: queime-o e esqueça de tudo o que leu. Consegui gravar aqui nesse escrito o que pude. Sinto que, se ele descobrir, irá decepar minhas mãos.

Tema: Magia.

Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 11/11/2019
Código do texto: T6792241
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