Encostado no carro

Nicolau, trabalhador do porto, era casado com dona Creuza. Esta uma morena, olhos graúdos, falava pouco. Sua genética era assim, jeito retraído. Cada um traz um comportamento particular.

Tinham uma filha.

Ao lado do casal – Creuza X Nicolau – morava “Seu” Orlando. A mulher dele era Vera, dona Vera.

Se conheciam há pouco tempo, cerca de 2 meses – tempo em Creuza e Nicolau vierem residir ali, naquela casa. Logo se entrosaram. Tanto Orlando com Nicolau – e Vera com Creuza.

Conversavam nos fins de semana. E durante a noite, como muitos ainda fazem hoje, embora com menos intensidade. Os contatos interpessoais (entre pessoas) reduzem cada vez mais. Relações humanas ficam mais frias e calculistas.

Orlando tinha um fusca, cor vermelha. Esses veículos, inventados pelos alemães, fizeram sucesso nos anos 1960, na Europa. E nas Américas. Aqui no Brasil também.

Certa noite Nicolau fez um pedido a Orlando.

O fez de maneira bem discreta. Estavam a sós, os dois, em frente à casa dele.

----- Orlando, preciso de um favor seu.

Ele: ----- O que é, Seu Nicolau? Peça...

------ Bem, minha mulher – Creuza...

E ficou em silêncio, parou de falar. Parecia constrangido. E estava, na verdade.

------ Prossiga, Nicolau – disse-lhe o vizinho. Mesmo a gente se conhecendo há pouco tempo, confio em você.

Continuou ele: ----- Vou te contar uma coisa, é bem particular. Minha mulher, Creuza, mexe com magia negra, essas coisas estranhas. Eu não gosto disso, certamente que essa atividade não vem de Deus, mas... Já conversamos, pedia a ela parar com isso. Não consegui.

Creio que saiba disso, dessas atividades, magia negra, umbanda, sei lá.

------Sim, claro que sei... É verdade, tais práticas não são aconselháveis, dizem que vêm do maligno, do demônio.

------ Ela entrou nisso – prosseguiu Seu Nicolau – quando moramos numa cidade do sudeste. Uma amiga dela, de lá, dessa cidade do sudeste, “fez a cabeça dela” com esse negócio de Vodu, Quimbanda.

------- Bem, cada um tem o direito de seguir as convicções religiosas que achar correta. Não podemos discriminar, de forma alguma. Precisamos aconselhar, com diplomacia, com jeito, fazendo com que os envolvidos – opinou Orlando.

Nicolau fez-lhe o pedido: ------ Creuza precisa ir o cemitério, o da Soledade. É muito antigo, já desativado. Dá para você nos levar lá, amanhã (uma segunda-feira), às 23 horas? Conversamos com o vigia – ele vai nos receber, nos dará acesso àquele local... Como você tem carro, o fusca, pode nos levar...

------- Tudo bem, irei lá, os levo, sem problema – ele garantiu.

Foram, como acertado, na segunda-feira, os três. Não sabia Orlando, porém, o que o casal faria naquela lugar, o cemitério, a conhecida “pátria derradeira de mortos”. Nossa última morada e macabra morada.

Foram. Noite meio fria. Deserta. Ninguém pelas ruas, “nenhuma viva alma”, como antigamente dizíamos.

Segunda-feira à noite é dia em que todos querem descansar, exaustos do fim de semana. E da própria segunda-feira, dia de trabalho.

Chegaram ao cemitério. Desceram do fusca e dirigiram-se ao portão, à entrada do cemitério. Olharam para dentro, à procura do vigia. Ele veio, um homem de seus 50 anos, magro, baixo, boné na cabeça.

Entraram. Orlando foi junto, não quis ficar sozinho no carro, a hora estava avançada.

Noite, escuridão, trevas, elas nos amedrontam. O vigia lhes disse: ------ Fiquem à vontade, amigos, irei para o alojamento, o local onde descanso à noite.

Seguiram os três, para o fundo do cemitério. Creuza disse que teriam de ir até o fundo, perto do muro de trás, dos fundos.

Estava a área pouco iluminada: parte das luminárias apagada. Passaram por mausoléus, árvores. Lugar de mortos já sepultados há 70, 80 anos, ou mais.

Gente desconhecida, cujas almas não se sabe por onde andam, por onde vagam. De repente um galho de uma mangueira balança.

Fez-se um ruído – eles se assustaram, certamente. Talvez uma ave noturna, uma coruja, se espantou com os intrusos. E fugiu.

Seguiram.

Orlando estava curioso para saber o que Creuza faria naquele lugar sinistro, habitado pelos mortos.

Nicolau disse: ----- Bem Orlando, ela (Creuza) vai recolher um pouco de terra, na sepultura de um morto. Esse morto, um homem, está enterrado desde 1904. Foi morto por ter estuprado e assassinado uma menina de 10 anos. Foi degolado, antes de ter recebido muitas pauladas.

A terra será para um trabalho de magia negra. Ela, terra, seria usada para destruir uma pessoa, matá-la. Uma inimiga de uma cliente de Creuza.

Orlando assustou-se com isso. Mas nada falou, não demonstrou pavor. Deixou correr.

E os três ali, sob trevas, escuridão. Então Creuza pegou uma pazinha, recolheu a terra, a colocou num saco plástico.

Orlando ouviu um gemido. Alguém, quem a alma daquele morto, o degolado, gemia, uma dor sufocada.

Perguntou ao casal: ----- Vocês ouviram um gemido?

----- Não – disseram.

------ Eu ouvi. Bem, vamos embora, Nicolau. Sua mulher já pegou a terra. Vamos, ele pediu. Foram.

O vigia lhes abriu o portão. O fusca estava no outro lado da rua, tudo deserto, ninguém, completo silêncio.

Orlando viu um homem, uma estranho, desconhecido.

Estava encostado no carro, no fusca. Calça preta, camisa branca, fumando. Disse: ------ Dona Creuza, Nicolau, tem um homem ali, encostado no carro.

------ Deve ser algum morador de rua, respondeu Creuza.

Se aproximaram. Chegaram perto dele.

O estranho os encarou, deu-lhes boa noite, tinha voz rouca.

Jogou o cigarro fora. Nada falou.

------ O que o senhor faz aqui, sozinho, a esta hora, em frente ao cemitério? Quis saber Nicolau.

------- Sempre dou um passeio aqui fora, de madrugada, venho fumar, respirar, só isso...

Vi vocês saindo do cemitério. O que vieram fazer, a essa hora?

Eles ficaram em silêncio. Dona Creuza respondeu: ------- Viemos recolher um pouco de terra. Do sepulcro daquele homem morto a pauladas. E depois degolado. Um crime de muito tempo...

O desconhecido disse: ------ Conheço bem esta história. Bem, boa noite a vocês – disse-lhes o estranho.

Orlando abriu a porta do fusca, entrou.

Entraram Nicolau e a mulher, que carregava o saco com a terra retirada da sepultura. De dentro do veículo ficaram observando o homem, o estranho de calça preta, blusa branca.

Ele atravessou a rua.

Calmamente adentrou no cemitério, sumindo na escuridão. Não precisou que o vigia lhe abrisse o portão.

Menos de dois meses depois dona Creuza foi acometida de uma doença no estômago, um tumor maligno. Passou por uma cirurgia, não resistiu. Nicolau vendeu a casa. Foi morar noutro bairro, mais distante dali.

Salatiel Hood
Enviado por Salatiel Hood em 14/11/2019
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