O Conto do Cervo

Já amanheceu o dia e eu não quero sair da cama, tive um sonho durante essa noite que me deixou muito intrigado. Eu vi o vilarejo inteiro com vestimentas de carrasco. Dizem que devemos interpretar os sonhos para compreender o que eles querem nos dizer, mas eu não entendi e não sei nem por onde começar. Mas eu tenho que levantar, preciso ir trabalhar e fazer minha parte pela vila, trabalhar na plantação não é fácil, mas pelo menos hoje estou livre disso. O dia pelo menos está nublado e não está aquele sol escaldante de ontem.

Passo na cabana ao lado do campo para pegar uma cesta. Hoje é dia de seguir para a floresta, procurar pelas frutinhas vermelhas que as crianças tanto gostam, confesso que vou mais por mim mesmo do que pelas crianças, eu adoro essas frutinhas (risos). Desde a minha infância fui apaixonado pela natureza e sentir o cheiro das flores, das plantas e o cantar dos pássaros é fenomenal. A floresta que cerca a vila é bastante agitada por conta dos pássaros, mas o mais engraçado é que nunca vi um, talvez eles fiquem com medo e se escondem no meio dos galhos. Finalmente achei algumas frutinhas para coletar, conto uma dúzia delas. Ficou tudo quieto agora, eu não escuto mais nenhum pássaro. Minha nossa! Eu acabei de se deparar com um cervo morto, devo chegar mais perto pra dar uma olhada. Nessa hora eu gelei, ele não tinha olhos, literalmente sem olhos e sem marca de sangue, não sei o que pode ter acontecido, mas uma coisa eu posso garantir, ele estava morto, de verdade. Eu estava muito assustado com isso, não era uma coisa que se vê todos os dias. Peguei a minha cesta com as frutinhas e segui em direção a vila, não pretendo ficar nem mais um segundo ali.

Ao sair da floresta senti um alivio tão grande como se eu tivesse tirado um peso das costas. Perguntei para os responsáveis pela caça na vila se foram eles que fizeram isso com o cervo, eles dizem que não e ficam bravos comigo porque eu não trouxe o cervo para a vila, oras eu pareço um brutamontes para trazer um cervo nas costas? Eu mostro a direção do acontecido e eles dizem que irão checar e trazer o cervo para a vila, afinal se a carne estiver apodrecida ainda da para utilizar o couro. Pego o meu cesto com as frutinhas vermelhas e levo para a dispensa na vila, algumas deixo na minha casa para comer pela tarde. As crianças ficam loucas quando digo que trouxe frutinhas e deixarei na dispensa, elas sabem que só eu vou para a floresta em busca das frutinhas, de alguma forma os mais antigos contam histórias assustadoras sobre a floresta para as crianças, houve uma vez que uma criança foi raptada e morta na floresta, essas histórias servem muito bem para afastar as crianças de lá, eu faria a mesma coisa.

O dia está terminando e o por do sol por mais que não consiga ver ele por completo por conta das árvores e de algumas nuvens que permanecem no céu ainda é estonteante. Pela noite o sino toca e todos devem se reunir na grande mesa da dispensa para jantar, as cozinheiras tinham preparado o jantar. Chegando lá, vejo os dois caçadores que disseram que iam em busca do cervo, porém faltava o outro. Pergunto se acharam o cervo e eles concordam com a cabeça, mas e o outro caçador, eu pergunto, e um silêncio domina no ar, eu continuo perguntando mas eles me ignoram completamente e continuam comendo como se estivessem vindos de uma guerra. Eu não entendi direito o que estava acontecendo, mas se eles não queriam conversar pra mim tudo bem. Eu comi a minha comida e fui pra casa, foi um dia que definitivamente irá ficar na minha mente martelando por um bom tempo.

Durante a madrugada sou surpreendido com gritos e um alvoroço vindo do lado de fora de casa, eu me acordo assustado, visto minha camisa e abro a porta. Há alguém deitado no chão e um monde de gente em volta pedindo ajuda, eu vou em direção ajudar, obviamente. Era o terceiro caçador e ele estava completamente ensanguentado e cheio de cortes profundos. Todo o vilarejo se comove a ajudar e colocamos ele na casa do ferreiro da cidade, havia um quarto sobrando. Lá deram banho nele e suturaram do jeito que podiam as feridas juntamente com aço quente para esterilizar os ferimentos. Eu não fui interromper, afinal pelo o que ele deve ter passado deveria por ora descansar.

Um dia se passou e nesse meio tempo a vila inteira já tinha criado teorias sobre o que poderia ter acontecido, uns diziam que ele foi pego por algum animal selvagem, outros que caiu em alguma pedra no riacho na floresta, mas o que diabos aconteceu a gente ia descobrir agora. Ele estava totalmente debilitado e falava baixo e com muita dificuldade, mas aos poucos fui conseguindo entender o que ele dizia. Segundo sua história os três caçadores foram em busca do cervo e nesse meio tempo a floresta escureceu e apareceu uma névoa de tal forma que eles tiveram que parar e acender uma pequena tocha, e nesse momento diversos estralo vindos de várias direções na floresta, nessa hora eles sentiram um medo que dominou seu corpo por completo e ficaram catatônicos, mas da mesma forma que tudo mudou rapidamente tudo ficou em silencio rapidamente também, e da nevoa surgiu a cabeça de um cervo. Eles queriam correr, mas estavam imóveis, eles queriam gritar, mas não saia nada de suas bocas, eles queriam fechar seus olhos, mas estavam catatônicos olhando a figura do cervo. Quando o cervo voltou a se esconder na névoa o terceiro caçador pode novamente ter o controle de seu corpo, porém ele estava sozinho, então ele saiu correndo no meio da névoa, aonde quer que o leve será melhor do que ficar onde eles estavam. Mas ele tropeça e criaturas que não podem ser vistas o devoram, porém elas o abandonam e a névoa se dissolve logo em seguida, ele não possui mais forças para se levantar e só lhe resta rastejar por entre as árvores. A vila é vista ao fundo e sua esperança por ajuda enche seu coração de forças para continuar rastejando por entremeio daqueles musgos e terra. E aqui termina sua versão da história.

Ele não pode contar mais detalhes pois morreu horas depois que contou sua história.

Ele estava louco, afinal eu conversei com os outros dois caçadores ontem à noite. Fui procurar pelos outros dois caçadores e por minha surpresa eu não encontrei nenhum deles, deuses o que está acontecendo aqui. Eu tenho uma ideia, irei até onde encontrei o cervo morto e irei ver que história é a verdadeira, que isso tudo que ele falou aconteceu de verdade, ou que ele esteja louco. A floresta está silenciosa como se estivesse morta por dentro. Eu juro que esse era o local, eu juro. Não há cervo nenhum, apenas o que eu não esperava, os dois caçadores estão aqui, mortos. Obviamente eles estão sem os olhos, porque não. Eu reconheço pelas roupas que eles estão usando, são as mesmas que vi no dia que eles saíram da vila, porém eles estão completamente magros, uma magreza que eu nunca vi nada parecido em minha vida, não há lábios, não há ossos. Meu deus, eu não quero morrer aqui sozinho, por favor.

Eu sinto o mal, eu oro por deus e não sou respondido. Eu peço a paz e só encontro a guerra. Eu sinto o frio e sei que vou morrer, sozinho. Provavelmente a névoa me rodeia, mas eu não quero olhar e descobrir isso, eu não vou. Sons estranhos vem de diversas direções, eu tampo meu ouvido pois eu não quero ouvir isso. Algo tira a minhas mãos dos meus ouvidos, e me diz:

- Não há o que temeres. – diz o desconhecido.

- Eu estou cansado disso tudo, eu quero a verdade e somente a verdade. – Eu digo, desesperado.

- Ninguém gosta da realidade, por isso alguns sucumbem a insanidade. – Diz o desconhecido.

- Eu sou louco? – Eu pergunto.

- Depende do ponto de vista, do vilarejo você é insano. – diz o desconhecido.

- Eu não entendo – Eu digo, confuso.

- Você fez coisas. – Diz o desconhecido

- Que tipo de coisas? – Eu pergunto, confuso.

- Assassinato. – Diz o desconhecido

- Por deus, quem eu matei? – Eu pergunto, aos prantos.

- Os três caçadores e eu mesmo. Na cabana você não foi pegar o cesto, e sim a foice. Em busca de frutinhas? (risos), analisando os mortos dá para se entender que tipo de frutinhas vermelhas seriam. Eu tentei impedir você de matar os caçadores, mas você me matou também e tirou meus olhos, não pude mais ver o que você fazia, fiquei sem controle. – Diz o desconhecido

Não consegui dizer uma palavra por um bom tempo.

- Eu conversei com o caçador que retornou, essa história que você conta não é verdade. – Eu digo, esperançoso.

- Nada disso é real, a mente é confusa e a sua se tornou insana. – Diz o desconhecido.

- O que vai acontecer comigo agora? – Eu pergunto, aflito.

- Não depende mais de mim. – Diz o desconhecido.

Por minutos eu não ouvi mais nada a não ser minha respiração pesada e meu coração palpitando desesperadamente. Eu abro meus olhos e só vejo a névoa, o que estava conversando comigo não está mais aqui, eu estou sozinho. Eu me levanto e olho em minha volta e saio caminhando por entre as névoas e a densa floresta. Eu consigo sair da névoa, mas eu apago no mesmo momento como um passe de mágica, pelos menos uma coisa é certa eu senti como se tirassem um peso de minhas costas. Acordo com golpes em meu corpo e uma dor intensa em minhas costelas, por mais que eu grite ninguém irá vir me salvar, ninguém quer. O vilarejo quer justiça, e eu não discordo.

Eu sou insano.

Eu sou insano.

Eu sou ...

Eu ...

...

...

...

...

STRIT
Enviado por STRIT em 14/11/2019
Código do texto: T6795009
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