EM NOME DE UM DEUS QUE NÃO É O SEU - CLTS 11

Livro 1 – Capítulo 1

Todas essas mortes devem ter ou fazer algum significado para alguém muito especial e com razões muito importantes, um vírus novo não causaria tudo isso sozinho, por quantas pandemias a humanidade já passou e sobreviveu? E esse alguém deve estar confinado na escola religiosa EVOV, que pelo que sabemos quer dizer “Ele Voltará Outra Vez”. De lá não sai corpo algum, e muitos dizem que dentro das dependências existem cientistas, médicos e muitos novos religiosos fazendo pesquisas para que nosso mundo não acabe e sobrevivam apenas os que são ou que serão dessa congregação.

Não sei se acredito muito nisso, mas as poucas pessoas ainda vivas estão escondidas e esperando a morte, não podemos mais sair às ruas para buscar alimentos, apenas alguns corajosos fazem isso.

Se lá dentro não morre ninguém, não seria o caso de ir para lá? Mas também dizem que pessoas somem lá dentro, que existe um calabouço no subsolo, onde ficam os que não servem a EVOV. Acho justo, se for para lá tem que ir de coração, tem que abrir o peito para o Deus deles. Mas como ter certeza disso?

O pouco que sabemos é o que os corajosos nos contam ao nos trazer comida e água, porém, não ficam muito tempo, praticamente jogam o que acham nas suas andanças. Por eles também sabemos que a EVOV está construindo mais escolas em alguns lugares do mundo para recrutar mais pessoas, especialmente jovens, para começar a nova era dentro do que eles pregam. Não sei, tenho dúvidas, antes de o mundo ficar assim, diziam que foram eles que implantaram o vírus na população, queriam terminar com os pecadores e com as outras religiões. Fiéis de qualquer credo estavam morrendo aparentemente de forma natural, fechavam os olhos e não acordavam mais. É simples assim, quem já está na EVOV viverá tranquilamente, enquanto os outros estão em pânico.

No último senso mundial, a taxa de ateus aumentou significantemente, pois sabiam que assim sobreviveriam, baseados nas poucas notícias dos poucos corajosos que ainda resistiam àquela situação. Todos os dias alguma igreja, um templo, casa de umbanda, sinagoga e outras casas religiosas fechavam; às vezes, por medo, mas na maioria das vezes por falta de fiéis.

Eu, ateu convicto sempre, antes de vir para esse buraco fui poupado da tal vacina contra o vírus várias vezes. No final das contas, achava que não era a vacina e sim o próprio vírus que estava sendo implantado, já não sabíamos com certeza, os hospitais haviam fechado e os poucos médicos e enfermeiros que seguiam atuando, estavam nas escolas da EVOV. Tínhamos notícias de que já havia menos de um milhão de pessoas no mundo. Nossos corajosos organizaram-se para que o contato com os outros lugares se mantivesse sempre atualizados quanto aos números.

Contudo, mantenho-me aqui nesse pequeno espaço, que chamamos de casa a algum tempo, esperando pelas boas ações de pessoas que nem conhecemos. Somos três aqui dentro: Magnólia, uma senhora de 85 anos, cheia de problemas e o maior deles é a diabetes, que também precisamos dos corajosos para que ela tenha a insulina suficiente; Maria, de 25 anos, que cuida de Magnólia e que bravamente resistiu a distância de sua família para continuar com sua função de cuidadora.

Nosso bunker tem no máximo três metros de comprimento por dois de largura e com um metro e meio de altura, tudo isso em um buraco feito pelos corajosos antes de tudo isso começar. A portinhola fica ao lado de uma árvore e coberta de folhas a menos de um quilômetro da sede da EVOV.

Quando nos colocaram aqui, disseram que estaríamos seguros e que nada nos faltaria até que tudo voltasse ao normal, mas ainda não voltou e cada vez fica pior. Alguns dias recebemos visitas de ratos, cobras, escorpiões e outros insetos, não temos luz, nem ar suficiente, então mantemos a portinhola entreaberta e sempre um de nós, exceto dona Magnólia, temos que ficar vigiando para que os soldados da EVOV não nos encontre.

Eu sabia quase tudo sobre elas e contei apenas o necessário sobre mim, não havia necessidade de tantas informações. Dona Magnólia era uma senhora muito debilitada, necessitava de cuidados integrais, foi casada com um coronel do exército que morreu no que chamamos de terceira guerra mundial, foi mais para guerra civil, as pessoas confrontavam contra os pelotões como se fossem leões contra homens. Isso tudo gerou uma mortandade tão grande quanto a pelo vírus. Ela tinha três filhos, dois deles seguiram o caminho do pai. O mais velho foi tentar a pacificação na África e possivelmente morreu, pois o Continente foi extinto. O mesmo aconteceu com a Europa, com a economia entrando em pane total, os saques e assassinatos, o exército teve que intervir, e grandes bombas foram lançadas quase que acabando com tudo, mas ela tinha esperança que o filho do meio que foi para lá ainda estivesse vivo. E todas as noites rezava para encontrar o mais jovem, que estava junto com os corajosos; porém, eu não acreditava. Da portinhola eu via pouco, mas conseguia enxergar o tamanho do estrago e sentir o cheiro de sangue que já impregnava as ruas.

Maria era uma jovem mulher magra, que nesse momento estava muito magra e malcheirosa, cabelos longos e negros com olhos na cor mel e ovalados. O sorriso raro era o que abrilhantava meu dia. Era casada, mas foi separada de seu marido sem explicações, ele estava vindo junto conosco, mas foi puxado e levado para outro bunker... Foi o que nos disseram no dia do acontecido. Era formada em saúde de idosos, cuidava também de seus pais, mas sem ter como optar e mesmo com sentimento de abandono, continuou com dona Magnólia.

Eu, Voltaire, trabalhava em uma madeireira que fazia móveis de péssima qualidade, fui casado por apenas seis meses, poucas namoradas nesses meus trinta e três anos e pouquíssimos amigos. Quanto à família, nem lembro mais. Mas, apesar disso, estudei e li muito, pelo menos setenta livros por ano, sobre vários assuntos. Li sobre Lincoln, Luther King, Steve Jobs, Edgard Allan Poe, inspirei-me com Hitchcock e, principalmente, com Mein Kampf, que ditou alguns rumos de alguns capítulos de minha vida, mas sempre com uma pitada de Cury, mantendo-me sempre como autor e personagem principal de minha história.

Fora isso, minha vida foi pacata em níveis absurdos, não havia razão para estar tentando sobreviver, mas quando elas me olhavam, tentando me encorajar e a resistir, via que eram especiais, por isso ainda tentava sempre ajudar. Não poucas vezes ressuscitamos dona Magnólia em paradas cardíacas, ela tinha que viver, iria ver como mudaria o mundo, isso era o que eu acreditava.

Não estamos acreditando mais em solução, os corajosos já estão demorando a vir com alimentação e insulina, e o tempo aqui dentro passa muito devagar, não temos mais o que falar, os assuntos já acabaram há muito tempo. Dona Magnólia tenta fazer com que eu acredite no seu Deus, que eu tenha mais fé, mas não consigo nem pensar nisso, nossas atuais condições provam que esse Deus, se um dia existiu... Morreu!

Ninguém que se diz pai abandonaria os filhos nessas condições. Animais resgatam filhotes, mesmo que suas vidas estejam em risco, sem cobrar algo de volta, e parece que esse suposto pai que nos venderam desde o nascimento vive jogando em nossa cara que morreu por nós. Numa noite dessas, ela começou a falar nos dez mandamentos, e eu a ouvi.

Começamos então com “Amar a Deus sobre todas as coisas”, ela falou, falou, mas eu não concordei. Sempre achei que devemos nos amar e acreditar em algo que nos faça bem, isso que sempre procurei e ainda procuro. Depois foi “Não matar”, e eu adiantei que se fosse um dos corajosos, mataria tudo e todos, para que eu vivesse. “Não furtar”, como viveríamos se nossos corajosos não estivessem roubando para nos alimentar e trazer remédios que ela mesma precisa. E para finalizar a conversa, pois não deixei que continuasse os mandamentos, falamos em “Não cobiçar a mulher alheia”, eu fitando os olhos castanhos e grandes de Maria, sabendo que era casada, disse que nunca nem havia ouvido isso e que nos tempos de hoje, teríamos que refazer nossas histórias, caso aquilo tudo voltasse ao normal. Não acredito que um dia isso mude, mas a crença daquelas mulheres me mantinha ali, contra minha real vontade, queria estar em meu trono, de onde nunca deveria ter saído, mas tinha que viver tudo aquilo, tinha que ter certeza de que estava fazendo a coisa certa, não poderia me entregar sem razão. Então fiquei.

Os dias passavam e nada mais se via, além dos guerreiros da EVOV, que farejando com seus cachorros, iam detonando os bunkers e matando os corajosos. Com dois dias sem insulina, dona Magnólia não aguentou e morreu. Não podíamos sair de lá, então enterramos ali mesmo, cavando com as mãos uma cova rasa, foi o que deu pra fazer.

Ficamos Maria e eu, só nos olhávamos e poucas palavras saíam, esperava que Maria viesse me beijar, na verdade não poucas vezes sonhei com isso. Mas ela começou a falar em se matar, não aguentava mais, tapava os ouvidos quando começava os cânticos da nova religião que se anunciava.

“Nossa vida mudará quando Deus Edward recuperar o poder dele roubado por falsos profetas e casas amaldiçoadas.”

Esse cântico era repetido tantas vezes que nós, sem perceber, já estávamos cantando, decoramos a letra.

Segundo os últimos Corajosos, que já vinham raramente, tudo já era patrimônio da EVOV, tanto que acharam o Papa escondido em uma casa subterrânea no Vaticano e o mataram junto com mais alguns bispos e cardeais, era o último grande homem religioso na terra. O corpo foi trazido em uma espécie de maca feita de madeira e tratado como troféu pelos integrantes da nova seita.

Depois disso, até os corajosos estavam desistindo, ficava cada vez mais difícil sair às ruas, tudo estava acabando junto com a fé da maioria dos sobreviventes, que questionavam a existência de Deus.

A ideia de mundo da EVOV era mais forte que os desejos de Hitler, e eu aqui, como Anne Frank, tento manter tudo escrito para que um dia todos saibam do que passei e o que o mundo passou para que algo novo fosse criado.

Certo dia precisei amarrar Maria junto a estrutura que segura o bunker, ela estava tentando cortar os pulsos com as próprias unhas e eu não podia permitir isso; até agora a protegi, não vou desistir e quero que ela saia comigo daqui quando chegar a hora, seremos testemunhas um do outro.

Tudo foi acalmando, os tiros diminuindo, pode ser que a resistência tenha acabado. As últimas pessoas que não aceitavam a vacina eram assassinadas ali mesmo em frente ao templo. Não havia piedade, eram guerreiros matando crentes de um Deus inexistente.

Maria agora está amordaçada, não pode gritar, ninguém pode nos achar aqui, ela não entende que morrerá se alguém a vir, não entende que com essa crença besta que ela carrega a morte será seu destino.

É mais difícil para mim, pois não aguento mais choros, são horas e horas de lágrimas e lamentos, está acabando, sinto isso; tento convencê-la que dará tudo certo.

O cheiro está insuportável, a cova de dona Magnólia foi realmente muito rasa e não contém o odor de zumbi. A comida está sempre acabando e a espera de mais mantimentos está sendo mais longa. Se precisar, vamos ter que começar a comer esses pequenos roedores de cola longa e as baratas, essas, dizem ser de forte concentração proteica, mas por enquanto temos alguns enlatados de feijões e ervilhas.

Os cânticos agora estão saindo de caixas de som, tomando conta da cidade, deixei Maria falar, tirei a mordaça. Ela disse que achava estranho ainda estarmos vivos, pois estávamos muito perto da sede principal “daqueles monstros”, usando a forma com que ela chama a EVOV. Eu respondi o que respondo sempre, temos sorte e estamos bem escondidos, não nos acharão, a não ser que eu queira.

Passavam os dias, até que um dos corajosos jogou uma mala cheia de mantimentos perto da porta de nossa casa, escutamos tiros e sussurros, cheguei perto da saída e ouvi o que ele disse, era o último corajoso da cidade e talvez fosse do mundo. Ele não entendia o porquê de ainda estar vivo, pois atendia apenas aquele bunker, mais alguns tiros e tudo silenciou, depois o som foi de corpo sendo arrastado e o cântico mais uma vez soou estremecendo as madeiras da estrutura de nosso buraco.

“Nossa vida mudará quando Deus Edward recuperar o poder dele roubado por falsos profetas e casas amaldiçoadas.”

Esperei que eles se afastassem e fui buscar a mala, havia bastante comida ali, mas não sabia o quanto duraria. Dentro da mala, havia também umas anotações, que deveriam ser do homem morto, nelas estava escrito:

“Senhor, não entendo por que estou vivo, ninguém mais está. Eles me veem, mas me deixam passar... Para economizar munição, estão crucificando os corajosos em frente ao prédio da EVOV. Não poderei mais protegê-los. Não existe mais ninguém além de vocês no mundo que não esteja na seita deles. Virou uma loucura, entreguem-se, não há mais nada o que fazer e, por favor, cuide de Maria.”

Li em voz alta para que Maria ouvisse também, ela arregalou os olhos e chorou, entendendo que o último corajoso era o marido dela. Engoliu em seco a situação, mordeu forte o braço que jorrou sangue em seu rosto. Perguntei se deveríamos nos entregar mesmo se fossem crucificá-la e ela consentiu meneando a cabeça, isso me irritava muito, a covardia desses pseudofiéis, que no primeiro problema desistem. Mas não aceitei a sua ideia, iria dar tudo certo, estávamos começando a nos dar bem, já não precisava mais amordaçá-la, prometeu não gritar e eu confiei. Além do cheiro do cadáver que estava dentro, o cheiro de nossas necessidades estava voltando com o vento, quando ainda recebíamos os corajosos, eles jogavam longe, porém, agora, eu lançava da porta e ficava na beirada. Os dias passavam e não havia mais o que fazer, já estávamos repetindo nossas histórias, sabia tudo de Maria, ela sabia de mim o que quis que soubesse, só o necessário.

Quando saiu a notícia pelo sistema de alto falante de que os guerreiros da EVOV sairiam com bombas de gás para terminar com possíveis resistentes, olhei para Maria, sorri e disse que enfim, chegou nossa hora, precisamos ter nossa última e derradeira conversa. Disse:

Olá Maria, sou Edward, Deus da EVOV, como seu Jesus, passou por alguns testes antes de ter sido o “filho do homem”, eu quis fazer o mesmo, fiquei todo esse tempo aqui com vocês, as mantive vivas, pois dona Magnólia ainda estaria, caso não tivesse diabetes. Você, eu mantive alimentada e consciente para que ficasse comigo e fosse testemunha de tudo que vivi. Poderia ter feito algumas coisas piores, como furar as palmas das mãos ou carregar algo muito pesado nas costas, mas cicatrizes e lesões para vida toda não fazem parte de alguém superior. Vamos voltar para o meu castelo e lá a proclamarei como minha esposa e viverá os louros de ter sido minha companheira por todo esse tempo e terá apenas a mim acima de você...

Saímos bem de nosso bunker. Havia um carro nos esperando, fomos levados em direção ao meu castelo. Pessoas de nossa seita formaram um corredor e levantavam e baixavam os braços fazendo reverência a mim. Na chegada, alguns de meus melhores guerreiros nos esperavam do jeito que sempre imaginei, vestiam roupas compridas na cor preta e carregavam incensos cheirosos. Tudo muito lindo, o que um verdadeiro rei, um verdadeiro Deus merece, eu tive. Agradeci meneando a cabeça, olhei para o lado e vi Maria com um riso tímido no canto da boca, parecia que estava entendendo o processo, mas ao passar nos portões ela gritou nomes de santos e começou a rezar “Ave Maria”, exagerou, teria que ser “Ave Edward”, apenas isso. Lembrei-me de uma das conversas com dona Magnólia e dei dois beijos em seu rosto, e sem que eu precisasse dizer qualquer palavra, meus guerreiros viram que eu estava brincando de Judas e a levaram à cruz.

Aqui de minha sacada a vejo, ela não entendeu que eu tenho tudo que eu quero, tenho todas que quero, não preciso dela, mas mesmo assim vou aguardar alguns dias, vou ver se será tão resistente a dor como fomos em nosso bunker e talvez mude de ideia e não a crucifique. Talvez a mantenha dentro de um buraco feito aqui em meus aposentos. Não! Isso não! Seria muito cruel... Comigo.

Não aguentaria o cheiro católico que desprendia daquele corpo, acho que mandarei acabar logo com isso. Sou muito indeciso, às vezes, minha principal decisão foi criar um mundo melhor para mim, e isso deu certo, tenho tudo o que preciso... Tudo.

“Nossa vida mudará quando Deus Edward recuperar o poder dele roubado por falsos profetas e casas amaldiçoadas.”

E mudou, tudo foi recuperado. Como consegui? Poder de persuasão, alguns tentaram durante nossa longa história e não conseguiram, mas deixaram boas dicas de como fazer e também do que não repetir.

Agora espero que essas pessoas que tiveram que perder as suas medíocres vidas crentes entendam que quando voltarem para essa terra terão de aprender que só existe um Deus e ele se chama Edward.

O que aconteceu com Maria? Não sei, não lembro mais das coisas que me fizeram mal, que tentaram me trair ou que não acreditaram nessa nova vida... Perderam, não estão mais entre nós...

“Porque todos que nascerão nessa esfera infinita saberão que apenas um Deus será louvado e ele se chama Edward.”

Ano 1 - Versículo 1 – Edward Voltaire Omus Vivencius - EVOV

TEMA: Fanatismo religioso e Teoria da conspiração.