Beijando Cadáveres

Beijando Cadáveres

A previsão do tempo errou mais uma vez. Era para ser um dia ensolarado, não quente, mas com poucas nuvens. Nada disso aconteceu. Desde as primeiras horas daquela quinta-feira a chuva não deu trégua encharcando o asfalto e as paredes das casas sem telhado. Para a família Farias o dia poderia ter sido de sol forte, não faria diferença alguma, afinal de contas, sepultar a matriarca é de uma dor imensurável. Filhos, netos, genros, noras, amigos e conhecidos, todos lotam o cemitério naquela tarde lamacenta. Robson, o filho mais novo de sete é o mais inconsolável de todos. Dona Benedita Farias era mais de que uma mãe para ele. Ela o ajudou a abrir seu negócio. Ela segurou as pontas – financeiramente – quando tudo estava ruindo. Ditinha, como era conhecida, ajudou a salvar a vida de todos os filhos quando eles achavam que tudo estava perdido.

Benedita Farias se encontra deitada na urna, inerte, com suas mãos magras unidas em cima do abdômen. Todos que se aproximam do caixão não suportam vê-la naquelas condições e choram forte. Ditinha era uma mulher boa, de fala suave, quase uma freira, tinha tudo na dose certa. O que realmente a tirava do sério era a injustiça. Benedita não admitia a injustiça. Quem merecia, merecia e quem não merecia, não adiantava argumentar, não levava de jeito nenhum. Ela também era bastante espiritual, amava a Deus sobre todas as coisas, mas não era religiosa. Frequentava a igreja Batista, tinha fé, tentava ajudar ao próximo. Ditinha era do tipo que se pudesse ajudar ela ajudava, porém se não pudesse não atrapalhava. Uma mulher ponderada.

*

Celso Calixto parou no portão do cemitério quando a chuva apertou consideravelmente. Terno preto, gravata branca, chapéu surrado que um dia foi marrom e sapatos precisando urgente serem engraxados. Calixto está usando um guarda chuva, mas devido os fortes ventos seu paletó na parte de trás se encontra ensopado. Ele entrou pisoteando as poças até alcançar a varanda lotada. Fechou a sobrinha pedindo licença aos presentes. Em meio aos murmúrios, lamúrias, choros e até escândalos ele foi abrindo caminho até a capela mais próxima onde velam um senhor que faleceu de câncer na próstata. Entrou sem ser percebido passando por familiares sentados no canto da capela. Andou até a urna e leu no quadro negro do nome do finado.

- Jacinto Machado. – olhou para o defunto de pele cor de giz e fez de forma desastrosa o sinal da cruz numa ladainha inaudível.

Celso Calixto se inclinou perto da cabeça do morto e o beijou na testa balbuciando algo como “volta”. Ele deixou a capela assim como entrou, sem ser notado. Lá fora a chuva deu uma estiada, mas seguia trazendo aquela quinta-feira uma lúgubre sensação de dia preguiçoso. Entrou em outra capela e na entrada alguém o questionou.

- O senhor é o padre? – perguntou uma jovem de cabelos soltos e olhos inchados.

- Não, me desculpe, estou apenas de passagem. Posso? – tirou o chapéu.

- Conhecia minha vó Bernadete? – perguntou aos soluços.

- Não. Me dê licença por favor.

Calixto caminhou até o caixão. A morta estava lá, toda enfaixada feito uma múmia. Parou e antes de beija-la ele olhou para a neta enlutada que chorava copiosamente.

- Qual foi a causa do óbito?

- O que? – a moça franziu a testa.

- Do que Bernadete morreu?

- Acidente doméstico.

- Fique tranquila, farei uma prece, você pode me acompanhar nesse momento?

Relutante a menina assentiu com um gesto de cabeça. Fechou os olhos e uniu as mãos segurando o terço. Celso beijou a testa da morta.

- Volta!

Até então não se ouvia trovões. A chuva voltou a apertar trazendo com ela os berros celestiais deixando a todos ali presentes com medo e receio. Calixto deixou a capela e antes de seguir com sua jornada ele observou bem aquele lugar. As covas, os jazigos, as gavetas, tudo ali é de uma certa forma causa nele uma certa fascinação. O ser humano teme a morte porque desconhece o outro lado, não consegue mensurar. Celso Calixto é diferente. Ele consegue ver a partida de alguém desse mundo como sendo algo maravilhoso, um verdadeiro ato de misericórdia do Criador. A morte é o ponto final na dor crônica, na solidão, na busca pela felicidade, mas principalmente, ela é o fim de uma trajetória de sucesso ou insucesso. Isso sim é uma obra fantástica para ele.

Celso Calixto andou até a capela onde dona Ditinha está sendo velada. Lá dentro o clima é dos piores. Muita gente chorando, conversado e outras simplesmente curtindo a dor da perda sozinha. Ele parou na porta e viu um homem de paletó sem gravata segurando uma bíblia e conversando com um rapaz ao lado do caixão.

- Sua mãe descansou, pense nisso.

- Eu sei, pastor, mas dói demais, só em pensar que nunca mais a verei parece que meu coração é feito em pedaços.

- Entendo. – colocou a mão no ombro do filho da finada. – sua mãe foi uma mulher incrível, incansável na luta contra o mal, contribuiu muito para o sucesso de nossa congregação. Nós também sentiremos a falta dela.

- Obrigado por ter vindo, pastor. – o abraçou.

Assim que o pastor se afastou o filho caçula da morta visualizou Calixto parado na porta fazendo menção de entrar. Contrariado o rapaz foi até o homem de chapéu tirar satisfação.

- Olá, o senhor quem é?

- Celso Calixto, posso entrar? – tirou o chapéu.

- Olha, a capela foi reservada só para familiares e amigos, me desculpa.

Calixto deu um passo para trás. Um dos irmãos foi até a porta afim de saber o que estava acontecendo. Calixto explicou com toda paciência do mundo de que só queria entrar e fazer uma prece pela alma da falecida. Foi explicado para Celso de que não havia a necessidade de outro líder religioso ali uma vez que o pastor Bráz já se encontrava no recinto. Calixto insistiu.

- Faço questão, prometo ser rápido.

Os irmãos se olharam, o mais velho deu de ombros e se afastou.

- Vai lá então.

*

Benedita Farias estava lá, olhos fechados, narinas tapadas por chumaços de algodão. Maquiada por opção de sua filha. Calixto se aproximou do corpo e não pode deixar de notar a beleza da mulher.

- Deve ter sido disputada aos tapas quando jovem.

Celso sentiu que estava sendo observado. E agora, como proceder? Um trovão estremeceu as paredes fazendo os presentes saltarem de suas cadeiras tamanho foi o susto. Uma luz se acendeu em sua mente, usar a força da natureza a seu favor. Calixto aguardou o próximo estrondo e ele veio, mais forte, mais assustador, eis a oportunidade. O beijo na testa de Benedita foi dado.

- Volta!

Houve uma curta queda de energia e quando se restabeleceu Celso já havia saído da capela. Lá fora ele abriu seu guarda-chuva e atravessou o portão do cemitério. Com a chuva batendo forte nos telhados, Calixto olhou para dentro daquele lugar e disse.

- Voltem!

Celso Calixto desapareceu ao atravessar a rua e enquanto isso de dentro das capelas só se ouvia gritos de pavor, pessoas saindo correndo de dentro delas para a chuva. Havia também gente desmaiando, funcionários do cemitério tentando entender que se sucedia. De repente o que era dor e pranto deu espaço para corre corre e gritaria. Ambulâncias foram colocadas a disposição para levarem as pessoas que sofreram mal súbito. Aquele cemitério lamacento se transformou num palco de horrores com pessoas buscando abrigos entre os túmulos. FIM.

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 25/05/2020
Código do texto: T6957690
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