O Último Prego do Caixão (Iº Trecho)

O maior erro do Criador foi conceber
Sua mais perfeita criação, o Homem.
A Tentação de Davi, O Marceneiro.
 
          Edgarpo orava fervorosamente ao pé da cama, os joelhos doloridos e o rosto inchado de tanto chorar, quando batidas soaram à porta. Tentou ignorá-las, porém elas continuaram, compassadas e insistentes. Resignado, levantou-se, atravessou o pequeno quarto, a sala e a atendeu, estacando, boquiaberto.
         Posso entrar? — disse o homem retirando os óculos escuros e o chapéu panamá da cabeça, a pele negra destacando um sorriso tão branco quanto ossos ressecados. Estarrecido, Edgarpo apenas saiu da frente, permitindo-lhe a passagem.
          Em silêncio, o visitante entrou e caminhou pela modesta sala, seu terno risca de giz bege farfalhando ao movimento do corpo esguio, bem talhado, remexendo aqui e ali, enfim parando diante de um porta-retratos preso à parede. Mãe e filha num exuberante sorriso, ao fundo um interminável jardim. 08ª Festividade da ADV.1989!, dizia a legenda.
          — Há quanto tempo frequenta a Assembléia do Deus Vivo, Eddy?
       — Você não devia ter feito aquilo, pastor Nicolas… — Edgarpo conseguiu dizer, engasgando no meio da frase.
       — Pastor Nicolas — repetiu, como se saboreasse as palavras. — Pastor Nicolas. — O tom era suave, vincado de um risinho insidioso enquanto tocava a foto. — Sabe quantos anos praticamente passei fome para subir ao púlpito e roubar as migalhas do seu salário? Sabe quantas vezes você disse não à sua esposa para que o pastor-presidente dissesse sim a um carro novo ou a uma viagem missionária extravagante?
          Edgarpo fechou a porta com estrondo, mas o homem não se abalou, permanecendo encarando a foto, voltando-se apenas algum tempo depois, dizendo:
          — Faz ideia de quantas vezes deixou sua filha nua para garantir o dízimo, caro Eddy?
        — Não tem o direito de dizer isso, você roubou nosso ministério, acabando com a fé…!
     — Foi o que disseram? — Sua voz adquiriu uma firmeza acalentadora, tão característica às pregações que atraíam centenas de fiéis aos seus antigos cultos dominicais. — Não roubei ninguém, apenas me rebelei contra o Homem que vende a palavra de Deus durante o dia para queimar com os prazeres do diabo à noite.
          — Não é verdade! — a negativa saiu numa súplica.
         — Há quantos anos foi isso? Três talvez? Nesse meio tempo, você continuou fiel… e o que mudou em sua vida? — A pergunta foi feita girando os braços e apontando para a simplicidade quase miserável da sala, que, embora limpa e organizada, constituía-se de uma cômoda sob uma televisão, sofás e tapetes surrados e bibelôs espalhados pela estante; o telhado de amianto estava devastado por infiltrações e uma linha escura nas paredes evidenciava que o local passara por recente alagamento. — Além do mais, quanto tempo seu casamento resistiu após sua filha ser estuprada e morta pelo sobrinho de sua esposa?… o mesmo que tantas vezes sentou-se contigo à mesa e orou junto com vocês nos cultos da igreja. Fiel, consegue me explicar por que Deus permitiu isso?
          Edgarpo reclinou a cabeça, olhos e dentes aferrados para reprimir a certeza das lágrimas. Já se fizera aquela pergunta, resistindo à verdade como a mesma resiliência de quem suporta constantes chicotadas. Subitamente sentiu uma mão pousar em seu ombro.
         — Sirva quem te melhor serve, meu caro Eddy. Vê isso? — Edgarpo abriu os olhos, notando o chapéu panamá na mão do homem. — É um Montecristi: só ele garantiria seu sustento por meses… Não me olhe com essa cara de espanto… Tenho um propósito para você e garanto que a recompensa será mais proveitosa que a falácia do Reino dos Céus.
          Devagar, abriu a porta e começou a sair; contudo, parou no umbral, voltando-se. Tinha recolocado os óculos e olhou por cima deles, aquele risinho insidioso curvando-lhe os lábios:
          — E tome cuidado… o vizinho não vai gostar de saber o que você faz com a mulher dele, atrevido fiel.

 
Sabor de Sangue e O Marceneiro
Enviado por Sabor de Sangue em 18/06/2020
Reeditado em 02/07/2020
Código do texto: T6980487
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