JUNTANDO AS PARTES

Depois da ventania que assombrou os banhistas e transeuntes da praia e que os fez correrem enlouquecidos atrás dos seus pertences e protegendo-se dos ataques dos guarda-sóis que voavam como dardos nos corpos seminús, sob o sol se pondo ao longe e as gaivotas subindo e voltando em rasantes em todos que chegavam perto dos ovos e dos recém-nascidos, estava um corpo de uma mulher que aparentava trinta e poucos anos, nua, de bruços aparentemente morta e sendo observado pelos olhares incrédulos dos curiosos que pisavam na areia ainda quente daquela tarde de verão.

O corpo estava praticamente seco, parecia que já fora colocado ali daquela maneira, parecia óbvio, mas quem o colocou ali? Como ninguém viu?

A praia era extremamente movimentada, moradores e turistas enchiam os hotéis e os quiosques que beiravam a areia que ficava sempre lotada, pessoas brotavam de todos os lados, era impossível passar despercebido.

As únicas pistas eram as marcas fundas que formavam um quadrado em volta ao corpo, o restante era apenas areia impregnada em todos os orifícios da mulher.

Seria algum ritual macabro? Como não viram acontecer? Um corpo surgir do nada e de lugar algum, era inacreditável.

Nesse momento a polícia já havia isolado a área e a perícia recolhera o corpo.

Na manhã seguinte os jornais sensacionalistas estampavam nas suas capas a foto do corpo na areia, sugerindo várias razões para a morte e criticando a demora dos resultados periciais.

A polícia ainda não tinha nenhum suspeito, apenas fotos com imagens do local e um mistério que abalava o interior do delegado Moacir, responsável pelo caso.

O resultado da perícia constatou que não havia marcas de tortura, estupro, nem outro tipo qualquer de violência. A morte teria sido por infarto e de acordo com os exames a morte teria ocorrido mais de 72 horas.

Com isso o cerco abriu-se em volta dos estabelecimentos comerciais, a polícia queria saber das câmeras de vigilância, porém, a maioria era falsa, apenas para inibir pequenos furtos. O policiamento era suficiente no local e não havia nada além de brigas entre machões que enchiam a cara e bolinavam mulheres alheias.

Muitos interrogatórios foram feitos pela polícia, sempre comandada pelo delegado Moacir, que era considerado um dos melhores na função. Todos os comerciantes das redondezas e principalmente os donos dos quiosques próximos ao local onde o corpo foi encontrado, foram interrogados, mas nada, nenhuma pista.

O que seriam as marcas em volta do corpo e, por que ninguém deu falta da menina?

A segunda pergunta foi respondida por um homem de meia-idade, rosto surrado, cansado, mas valente em perguntar:

— Onde está Cristina, o que fizeram com a minha filha?

O delegado lhe olhou e sentido pela perda do homem disse:

— Tenha calma senhor, como é seu nome e quem está a procurar?

— O meu nome é Elie, onde está a minha filha, o que fizeram com ela?

— Acalme-se senhor, nós não sabemos a identidade da vítima.

— O nome dela é Cristina, a minha filhinha.

O delegado o levou para a tenda que estava sendo usada para as investigações.

— Senhor Eli, gostaria de uma água ou café? — Perguntou o delegado.

— Não quero nada, só quero saber onde está o corpo.

— Ainda está na perícia, como já deve saber, a maneira que o corpo foi encontrado e como ele foi deixado sem que ninguém nessa praia lotada tenha visto, ainda é um mistério.

— Mistério para vocês, que só enxergam o que querem ver. Já não deu para perceber que toda essa história está além das visões limitadas de vocês?

— Senhor Elie, sei que o senhor está estressado com a perda da sua filha, mas não precisa ofender, estamos fazendo o possível para resolver o caso.

O delegado começou a fazer as perguntas comuns de todas as investigações, “Ela tinha inimigos? Usava drogas? Teria motivo para se matar?". Elie, ainda em choque, apenas ria, sabia que as perguntas eram de praxe, mas não levariam a nada.

— Li nos jornais que a minha filha teria infartado, mas estou aqui com os exames dela, não tinha problema algum coração, bem pelo contrário. Era uma atleta.

O delegado pegou os exames, chamou o seu assistente e pediu que levasse até a perícia.

— O que o senhor pode contar-me sobre a sua filha?

Elie começou a contar sobre a infância feliz, dizendo que sempre foi estudiosa e nunca gerou problemas para a família, e que ela apenas teve uma queda no humor após a morte da mãe. Silenciou.

— Vou aceitar agora um copo de água.

— Claro! Vou pegar. - Respondeu o delegado.

Ele bebeu num gole só e continuou dizendo que a uns três meses, Cristina vinha tendo pesadelos com praias e extraterrestres que viriam roubar o seu coração, acordava gritando dizendo que estava amarrada e não conseguia mover-se.

O delegado ouviu tudo aquilo incrédulo, mas acompanhou cada detalhe dito por Elie.

Elie viu a cara de descrente do seu interrogador.

— Ninguém vai acreditar nisso. Vão dizer que estou enlouquecendo ou que já sou louco, mas tudo bem, estamos acostumados. A minha filha estava sendo chamada assim, mas no fim, sabemos que não era loucura e que algo sobrenatural está acontecendo. Fique com o meu cartão, se tiver alguma novidade, que duvido que tenha, ligue-me.

O delegado ficou com a conversa na cabeça, levantou-se para acompanhar Elie até a porta e sentiu uma falta de ar que quase o fez desmaiar. Foi acudido pelos colegas que chamaram a ambulância e o levaram para o hospital. Elie já na porta de saída percebeu o que acontecera, mas deu os ombros e continuou sua caminhada.

Os médicos disseram que era o pulmão que estava comprometido, devendo ser pelo excesso de cigarro. O que eles não sabiam é que o delegado nunca havia fumado.

Ficou em observação para mais exames. Nessa noite ele teve pesadelos exatamente como os descritos por Elie, “Devo ter ficado impressionado com as histórias que ouvi” - Pensou.

O médico entrou na sala pedindo desculpas e dizendo que provavelmente os exames teriam sido trocados. No último, feito pela manhã, não havia aparecido nada e que a razão das tonturas, teria sido pelo estresse do trabalho.

— Senhor Moacir, o senhor está bem, não há nada com que se preocupar. Sugiro um ou dois dias de descanso.

— Obrigado doutor, vou ficar em casa hoje.

O Delegado foi para a sua casa, deitou-se no sofá e adormeceu. Sonhou com as mesmas coisas, entretanto dessa vez ao abrir os olhos estava numa sala dentro de uma espécie de caixa de vidro, sem fundo, apenas as laterais e cercado por pessoas iguais, parecia estar entre gêmeos, todos vestindo roupas brancas e em silêncio. Tentava perguntar onde estava, mas não saia som da sua boca. Olhava para os lados e aqueles seres iguais como que mantendo um diálogo silencioso, apenas consentiam com a cabeça. A comunicação era feita de outra maneira, mas pelos movimentos, parecia ser muito eficiente, as feições eram de felicidade. Foi muito rápido e Moacir apagou novamente.

Aqueles seres iguais, com fisionomia de intelectuais agora rasgavam aquela pele superficial e mostravam as suas reais formas, eram arredondados com pernas e braços curtos, sem cabeça e com uma antena no centro superior do corpo.

O som parecido com voz humana saiu de um deles:

— Coração e pulmão estão prontos, a nova raça está quase completa. O que falta?

Ele mesmo respondeu:

— Cérebro! — e continuou — Devolva esse corpo.

Dia normal, sol forte, praia lotada, a ventania surge sem avisar e pega os banhistas de surpresa. A correria atrás das crianças e pertences só cessa após os gritos de algumas pessoas.

Lá estava o corpo do delegado Moacir, nu, de bruços, no meio de um quadrado e coberto por uma fina camada de areia.

Perícia: embolia pulmonar.

Mais um caso encerrado.