Você nunca viu um trabalho tão forte assim

Você nunca viu um trabalho tão forte assim

Àquela altura do campeonato Vera já se achava perdida. Sentada em sua cama no canto mais escuro do quarto ela fitava aturdida a poça de sangue já negra que enfeitava o chão. A algumas horas atrás o sangue havia jorrado pelos orifícios singularmente circulares na cabeça do cadáver. O som que o martelo de cozinha fazia quando batia no crânio ainda mal formado da criança não saia de sua cabeça. Clunch, clunch, e alguns clcs. E o som de algo mole se desfazendo por baixo... era demais para seu espirito. Aquilo agora pairava sobre sua cabeça; eh... eu... ah... se eu me esconder aqui no cantinho da minha cama, fechar os olhos, ninguém mais vai me achar, nem lembraram do que eu fiz; mas estava lá, sobre ela, pairando sobre ela e logo a abaixo da lâmpada, e voltava em flashs que lhe tremiam os ossos, e espantavam o sono. O plano de que uma ou duas marteladas com certeza o matariam se desfez após o primeiro golpe. Num espasmo repentino ele levantou todo o corpo e expulsou todo ar dos pulmões, num grito estridente que rasgou tudo que havia restado de sua lucidez. O martelo prendeu, e ela puxou, e o clunch, estava lá, quando ela fechava os olhos. E tudo tinha sido muito recente, passaram-se poucas horas desde que aquela voz lá no fundo de sua consciência deixava de ser fala e virava grito, e oprimia qualquer outra voz em sua cabeça e impunha que aquilo tinha de ser feito. Oh, Vera não aguentava mais o maltrato da fome, ao seu corpo era suportável mas ao dele que mal sabia falar e já sofria assim, era muito. Se não fosse ela, seria a inanição, ou algo semelhante. E as últimas semanas tinham sido tão difíceis. Depois de perder o emprego de garçonete por advento da pandemia de Coronavírus, o desespero consumira dia após dia sua vontade de viver, como se roesse suas entranhas por dentro até que restasse só uma casca oca. E no vão de suas entranhas o que matinha em pé a inane estrutura, era o ribombar do choro de fome ou de dor, dele, encolhido no cantinho da cama. Seu marido fora-se a três meses, mas nisso ela havia decidido não pensar. Olhava o negro da poça de sangue, banhado pela luz noturna; quem, o portão???; num susto ela notou que alguém chamava, gritando lá fora.

De súbito levantou correndo da cama em direção ao lado oposto do quarto, que não era tomado pela vista do portão, ainda balançando ao som de batidas fortes. A borda de seu pé esquerdo tocou o sangue grosso da poça. Ela arrepiou-se e segurou um grito, com a força da convicção de que ninguém poderia saber daquilo. As pancadas pareciam estar dentro de sua cabeça. Latejando. Induzindo o auto fluxo cerebral aos mais incoerentes fins. Como se a cena ali já não fosse algo mais que incoerente.

- Vera, cê tá em casa? Escutou. Era a voz da megera que morava ao lado e dava conta da vida do quarteirão inteiro. Com um frio travando seu estomago como se tivesse mãos ela se se encolheu num canto; merda, merda, merda, merda! Desgraçada!; ela quis gritar. Eu vou... vou... empurrar ele pra debaixo da cama. E jogo um pano em cima desse carpete vermelho, e tudo certo. Acho que ninguém vai perceber nada. E orou para um deus que ela já não acreditava, para que a vizinha megera fosse embora. Orou pelo habito. Pra quem vê suas preces invariavelmente serem negadas, orar é um ato impróprio. Pede-se a Jah, Rá, Buda, quem estiver mais perto no momento. Talvez fosse uma prece a si mesmo. Para que ainda brotasse uma última força. E depois de algum silêncio, ela percebeu que a mulher havia ido embora. Mas o plano de o empurrar para baixo do colchão já não parecia tão bom.

Agora ela levava o pequeno corpo para os fundos da casa. A cozinha era o penúltimo cômodo, depois dela só uma área de serviço de um tamanho considerável. Onde em um dos cantos, havia um vão, um pequeno cubículo entre o muro da divisão dos lotes, e a parede de um banheiro. Que fora deixado para que uma janela pudesse ser instalada, pois se não, o lugar serviria também de sauna durante um banho quente. Ali ela o esconderia, como num conto de um escritor amador qualquer, os tijolos que sobraram da construção que havia começado ali, antes do vírus se abater sobre o mundo, pareciam ser suficientes, tinha cimento, areia, e a ideia pareceu que provocaria bem menos barulhos do que ato abominável de horas atrás. Ali seria um bom lugar. Só ela saberia. Ninguém lhe visitará desde que o traste a quem chamava de Amor lhe deixará. E o mais importante, parecia que dava para fazê-lo naquela mesma noite. Enquanto o carregava pela cozinha ela sentiu nos braços o corpo pesar como chumbo; a morte pesa. Nos meses que se correram até que as coisas culminassem naquilo, o peso dele, ela percebia ao o carregar como agora, diminuía exponencialmente. Notava (e como doía notar), que era possível, enquanto o banhava, contar as costelinhas, se tornando cada vez mais proeminentes em seu tórax. As lagrimas banharam seu rosto mais uma vez. Já tinham sido tantas que ela se impressionava de ainda escorrerem tão abundantemente. No começo pareceu que daria para aguentar. Três meses no máximo, e isso passa. Era pelo menos o que dizia o governo... O auxilio pecuniário que fora prometido a mães solo, chegou para seletas e abençoadas mães, para as quais Vera, ainda agora desejava sorte. Para ela restará a dura mensagem “em análise”, em azul, na tela principal do aplicativo que supostamente dava acesso ao recurso. A análise já durava quatro meses. Hoje já não tinha mais por que esperar.

Nos fundos da casa ela depositou o pequeno cadáver no vão, e começou os preparativos para fecha-lo com um pequeno muro. Achou por bem cobrir o pequeno corpo com alguma areia. O pequeno Miguel, meu Miguelzinho, eu queria tanto outra vida pra gente, queria, queria mesmo. Mas não aguentava mais te ver chorando a cada propaganda de comida na televisão, era demais pra mamãe. Você me entente? Cê entende que a mamãe só queria seu bem? Miguel não a responderia, mas sua consciência sim. E ao invés de pesar o fato, pesava o atraso de sua consumação. Que tivesse sido ainda na gravidez, quando não haveria tanta dor... Mas o crânio de Miguel jazia agora disforme atrás de um muro, numa casa qualquer da periferia de Brasília. As duas marteladas do plano original haviam se transformado em... sei lá quantas. E a cabecinha que um dia conquistaria as garotas nas festinhas da adolescência agora estava mole e meio afundada, e o sorriso que tanto tinha alegrado Vera era só um buraco de um rubro escuro, com um inchaço acentuando a falta de dois dentes. O serviço do muro fora feito com certa facilidade. Agora, tinha também de limpar o quarto.

Marcha soldado; cabeça de papel; quem não marchar direito vai preso pro quartel. Empurrando com o rodo o sangue diluído em água, agora com um tom vermelho que se aproximava do vinho, ela via seu bebê correr e cantar pelo quarto. E chorava, soluçando. A dona aranha subiu pela parede... Ela escorregou e num baque surdo bateu as costa e a parte de trás da cabeça no chão tingido de vermelho. Manchando-se toda com o sangue da criança. Olhou para o teto e só chorou. O sentimento de repugnância contra si mesmo a mortificou, ali, deitada na poça do sangue de seu próprio filho. Filho que ela própria havia matado. Ficou ali, imóvel, durante uma meia hora que pareceu mais uma eternidade. Terminaria tudo, pois o dia logo amanheceria. Agachada ela levou o rodo até de baixo da cama, para puxar o que escorrerá para lá, e o rodo arrastou uma cerâmica deslocada. A arma do Jorge?! Será? Vou dar um fim nisso. Ela sabia que era ali que ficava uma arma que o marido comprará a muitos anos, bem antes do Miguel. Quando bateu a mão no buraco abaixo da cama, o frio do aço trouxe consigo pensamentos mais que fúnebres. Seria rápido e indolor, e pouparia e muito, noites e noites em que com certeza as imagens voltariam, o rosto apavorado dele olhando-a e gritando sem entender. Enquanto o martelo descia e produzia aquele clunch, e arrancava a vida do menino. Decidiu deixa-la ali mesmo.

O dia se abriu e o sol ditava lá de cima que mais um dia começava, e ele não se importava com as condições dos viventes, desde que o dia fosse vivido. E foi o que ela decidiu, que ainda viveria, e saiu para rua, na intenção de que o grande deus Rá se apiedasse e direcionasse-a ao menos pior dos caminhos. Numa curva, ao olhar para o chão, viu um panfleto todo preto com as letras em branco, pegou-o e leu “Você nunca viu um trabalho tão forte assim, chegou na sua cidade, O profeta da Vicente, Bispo exorcista Paulo Mara” dizia outras coisas, como a data e local onde encontra-lo, mas aquele enunciado chamará demais sua atenção. E longe de afeição por fé, decidiu que o visitaria naquela noite.

As vinte e uma horas do domingo ela saiu para aquele que seria seu último flagelo. O que aconteceria naquela noite colocaria um fim em toda aquela vida que se confundia tão facilmente com a angústia. Ela conhecia o prédio em que o tal bispo atendia, não ficava tão longe de casa. Chegando lá, na sala do apartamento acontecia uma pequena celebração, com hinos católico e algumas danças. Eram poucas pessoas, no máximo vinte. Ao ver a estranha um anfitrião se aproximou, e feitas as devidas apresentações ela se juntou ao grupo. O bispo era um homem pequeno, bem distante do que ela havia imaginado. Ela solicitou uma palavra com ele, e num dos cantos da sala contou tudo o que havia acontecido e o que havia feito. Ele olhou-a e alteando a voz para que todos ouvissem bradou que seria realizada ali uma cerimônia de purificação. Em meio ao alarido acalorado da pequena aglomeração, ele ordenou que fosse trazida a maca, e depois pediu a ela para que se deitasse. O canto subiu, e alguma coisa doce foi despeja em sua boca, o cântico aumentava, e sua língua tornava-se seca, eles gritavam coisas sem coerência enquanto o bispo dava voltas na maca olhando para o alto e lhe apalpando em todas as partes. Minutos depois sua visão não conseguia focar em nenhum lugar da sala, o canto estridente penetrava seus ouvidos, e ela sentiu que outra parte de seu corpo também estava sendo penetrada. Tentou num desespero se mexer mais parecia que o corpo todo agora pesava uma tonelada, não conseguiu emitir se quer um grunhido. Arqueou com aumento cântico e com evolução do estupro. O hino se silenciou, e ela destingiu o bispo fechando as calças. E de novo chorou. Com a cara da mais lavada, no final da noite ele fitou os olhos dela e sorrindo, declarou que ela havia sido libertada do carma que arruinará sua vida.

Vera foi embora dali perdida em seus pensamentos. Talvez, mesmo, pensasse era nada. Chegou em casa e num ato mecânico se direcionou ao seu quarto, agachou-se, encontrou o .38 no lugar onde tinha ô deixado. Foi a área de serviço, encostou-se no muro construído naquela noite mesmo, e com um único ruído alto, oco, e depois úmido, juntou-se a Miguel, na única morada que acolhe de bom grado, o pobre.