O INCIDENTE DAS TRÊS AMIGAS

O inverno daquele ano havia começado de modo usual, como em todos os outros anteriores, com um frio cortante que costumava deixar, nas manhãs e nos fins de tarde, uma camada fina de gelo na superfície ressequida da vegetação. A folhagem das cerejeiras e pitangueiras, que se espalhava pelas ruas da cidade, exibia um aspecto vítreo ao olhar e quebradiço ao toque. Em cada canto, em cada suspiro enevoado, a melancolia se fixava. Entretanto, o que era corriqueiro e simples viria a ganhar algo mais do que a corrente fria com o decorrer das primeiras semanas da estação. O povo simples da pequena cidade ainda não sabia, mas a morte havia decidido apontar seu dedo fino e gélido em sua direção.

O horror inominável teve início com o primeiro desaparecimento. A menina de nome Amanda tinha dezesseis anos no ocorrido, e, pelo que consta, ela havia saído no fim da tarde de um domingo para buscar alguns itens para a mãe na mercearia do bairro. Uma chuva fina e insistente caía há algumas horas. A garota usava um impermeável transparente e pedalava uma bicicleta amarela com uma cesta atrelada ao guidão. Com quase todas as pessoas da redondeza reclusas por conta do dia de descanso e do mal tempo, as ruas estavam vazias e tudo o que se ouvia era o contato dos pneus contra o asfalto molhado, o tilintar estridente da corrente e o assobio do vento.

Amanda pedalava depressa, deixando um rastro de vapor pelo caminho. As mãos enluvadas apertavam com força os punhos emborrachados, ela queria voltar logo para o ambiente quente e acolhedor da própria casa. No entanto, ela nem ao menos conseguiu chegar ao empório, pois algo aterrador e até então desconhecido interrompera seu caminho.

Tudo o que encontraram ao perceberem o seu desaparecimento fora a bicicleta largada no chão enlameado de uma via secundária. A velha senhora Das Dores, cuja casa não ficava muito longe do local, dissera aos policiais que ouvira um grito forte e desesperado ecoar junto ao vento, mas que não ousara colocar a cabeça para fora para verificar a origem de tal bramido.

As autoridades procuraram por algum indício, mas nada foi encontrado e, a despeito do desespero dos pais, o caso foi encerrado sob a possibilidade de que o paradeiro da garota pudesse estar escondido numa fuga. A idade complicada e os poucos atrativos locais talvez a tivessem impelido a buscar seu destino longe daquele lugar esquecido por Deus. Obviamente, o relato da idosa solitária, ansiosa por atenção, fora deixado de lado.

Ora, a cidade não tinha histórico de violência, afinal. Mas, não tardou para que os alicerces de tranquilidade do local fossem abalados novamente e, dessa vez, com aspectos mais incisivos no que se referia a testemunhos.

O compromisso com as aulas da semana havia terminado, de modo que Fernanda caminhava no início da noite daquela sexta-feira no intuito de chegar à casa de Camila, aonde iria se encontrar com a anfitriã e com a outra amiga, Denise, para passarem o final de semana juntas. As meninas, todas da mesma idade, dezessete anos, planejaram cada momento que iriam compartilhar, porém não chegariam a se encontrar.

A garota já estava muito próxima da casa, tanto que já conseguia perceber a silhueta das amigas na janela. Mas, algo chamou a sua atenção, um ruído perturbador que ela já havia notado alguns minutos antes, um som que começara discreto e que aumentara consideravelmente nos últimos metros. Ela sentiu medo e aflição e ameaçou correr, porém não teve tempo, pois algo saltou sobre ela, derrubando-a no chão e arrancando-lhe um grito ao mesmo tempo.

As garotas na casa ouviram o apelo desesperado da amiga, mas antes que pudessem fazer algo, perceberam os contornos de uma figura de olhos vermelhos arrastando Fernanda para dentro da mata. Camila, aos gritos, pediu ajuda aos pais e juntos correram para socorrê-la.

O grupo chegou até o local, mas, no mesmo instante, cada um ali presente se arrependeu amargamente de testemunhar tamanho horror. O corpo de Fernanda estava estendido sobre a folhagem gelada. Seus olhos vítreos estampavam a essência mais pura do medo. No topo de sua cabeça havia um buraco e a autópsia revelaria mais tarde que toda a massa encefálica de seu crânio, de alguma maneira bizarra, havia sido retirada.

Quando a primeira vítima desapareceu, Camila não se importou muito com a decisão da polícia de encerrar as buscas, afinal não conhecia Amanda e, por conta disso, não julgou o seu pai, delegado da cidade. Mas, agora ela sentia todo o remorso ao compartilhar a dor que os pais da menina deveriam ter sentido.

O pânico se espalhou pela cidade como o fogo que atinge as serras na estação seca. As escolas foram fechadas, o comércio e as repartições tiveram o funcionamento reduzido. As pessoas quase não saíam às ruas, sobretudo as mais jovens. Mas, a mudança no modo de agir não impediu que as atrocidades continuassem. Com o decorrer dos dias, diversos jovens foram atacados, grande parte deles sequestrados de dentro de suas casas. Alguns apareceram com os cérebros drenados, a maioria nunca mais foi vista. Em comum, a idade entre quinze e dezessete anos. Dentre os atacados estava Denise, a segunda vítima do trio de amigas.

Camila sabia no fundo da alma que sua vida estava realmente em risco. Não somente por ser uma jovem como todas as vítimas, mas, sobretudo, porque ela tinha olhado diretamente para aquilo que atacou Fernanda, e que ela tinha sido vista também. Assim, em cada noite desde o ocorrido, ela se recostava na cama e não conseguia dormir. A janela, lacrada por um pesado armário, isolava o mundo exterior de onde estava. Ela não ousava olhar pelo mesmo vão que trouxera para seus olhos aquela imagem de dor e medo.

No entanto, mesmo quando queremos e fazemos de tudo para manter o mal longe de nossos pensamentos e presença, às vezes, mesmo assim, ele insiste em nos encontrar.

Camila estava naquele estágio entre a consciência e o sono, onde as imagens e os pensamentos formam uma amálgama com a realidade. Desse modo, ela demorou a perceber que o ruído que ouvira, como o produzido por sapatos molhados encontrando os fios macios de um tapete, estava, de fato, no interior do seu quarto, e não no delírio de um sonho.

Seu grito foi abafado por uma mão áspera e úmida, enquanto seu olhar cruzava com o fornecido por órbitas arregaladas e injetadas por vasos sanguíneos rubros e intumescidos. Pela maciez alva e gélida do rosto da garota, lágrimas tão frias quanto escorreram. Ela se debatia, tentava a todo custo se livrar do jugo de seu agressor.

Dizem que o medo é importante para realçar o estado de alerta, para ajudar a nos manter vivos. Mas Camila descobriria que esse sentimento também era capaz de resgatar forças que ela nem julgava ser capaz de possuir. Com as pernas como alavanca, ela projetou todo o esforço que era capaz de produzir numa única investida, conseguindo, com isso, arremessar o invasor de encontro à sua penteadeira.

O estardalhaço fez com que o pai da menina, de arma em punho, irrompesse pelo cômodo, dominando o infeliz que estava estatelado no chão em meio a escovas, frascos de perfume e cacos do espelho.

Logo, descobriu-se que o assassino era um fugitivo do sanatório penal de uma cidade vizinha. Ele fora encarcerado em tal estabelecimento por ter sido declarado incapaz mentalmente depois de ter assassinado toda a família de maneira cruel e sádica. Os psiquiatras disseram que um ser humano em suas faculdades mentais sãs seria incapaz de tais atos, e nisso o louco concordava.

Segundo o interrogatório subsequente à prisão, ele disse agir em nome de uma entidade que lhe prometera vida eterna e prosperidade, bastando para isso que ele a alimentasse com nutrientes que ela apreciava: massa encefálica em maturação. Não tão jovens e irrelevantes e não tão velhas e insípidas.

Felizmente, o maldito ficaria enclausurado com todos os seus demônios por toda a vida, o melhor seria que a morte o tomasse, mas isso a lei ainda não permitia. Mas que dessa vez, ao menos, a justiça conseguisse mantê-lo assim.

A noite seguinte chegou, e com o fim do inverno e do horror, Camila esperava encontrar o descanso que não tivera por conta do sono roubado pelas incertezas e inquietações. Ela tentava convencer a si mesma de que estava tudo bem e que as coisas voltariam ao normal, na medida do possível. Mas havia algo que a incomodava, um detalhe que insistia em colocar uma ruga de preocupação em sua jovem tez. Ainda assim, ela dormiu. Seu corpo entorpecido se entregou ao cansaço.

Se Camila resistisse um pouco mais ao sono, e tivesse acreditado mais no instinto que lhe dizia que os olhos do psicopata, por mais vermelhos que fossem, não acendiam a escuridão como aqueles que levaram sua amiga Fernanda, ela teria ficado em alerta e talvez percebesse a estranha garrafa deixada num das extremidades do seu quarto.

O sono de Camila não deixou que ela percebesse o pequeno demônio de olhos vermelhos faiscantes deixando a proteção do invólucro envidraçado e crescer em tamanho. Ela também não viu o apêndice afiado projetar-se da boca escancarada da criatura, pronta para perfurar seu crânio e drenar seu cérebro, sua vida.

Logo, as três amigas estariam reunidas novamente...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 21/07/2020
Código do texto: T7012968
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