ASSOMBRAÇÕES DA QUARESMA

A quaresma lá roça era tempo de muito respeito a tradições religiosas.

Ninguém ousava nem em pensar questionar os costumes.

O período era de muita oração acompanhada de rituais e cantigas religiosas típicas da época.

O simples tocar das matracas, mesmo que em um momento qualquer, fora de um contexto religioso, já causava reações; principalmente naquelas pessoas mais medrosas ou sensíveis às causas da crença.

Nas noites da quaresma, um ritual sagrado era a oração pelas almas.

Os homens, cada um com a sua matraca, reunidos, saiam para rezar nas casas da vizinhança.

As mulheres com as crianças ficavam sozinhas em casa. O medo era inevitável.

Elas tremiam de medo e não era para menos.

O modo como acontecia o ritual da reza para as almas, com o tocar das matracas a entoação meio funestas das cantigas e o que os homens contavam que viam na escuridão daquelas noites, assombrava a todos.

Diziam, que com seus cantos religiosos e o toque das matracas conseguiam passar pelas criaturas da noite que os tentava impedir de caminhar de uma casa para a outra.

Falavam de vultos que seguravam as porteiras tentando impedir que fossem abertas.

De cães invisíveis que rosnavam nas margens das estradas enquanto passavam.

Cavaleiros com seus cavalos negros que galopavam como que os fosse atropelar e que depois sumiam sem que compreendessem como.

Dos porcos nos mangueirões, em correria sendo perseguidos por criaturas estranhas.

De lobisomem que corria na escuridão feito um homem e uivando feito um lobo.

Dos cães de gurda das casas que não paravam sossegados, correndo de um lado para o outro atacando ou se defendendo de criaturas que não se via mas se ouvia o tropel e o som de ferocidade.

Dona Maria, ali na sala, atarracada com seus quatro filhos pequenos, chorava de medo.

Quando começou a ouvir vindo lá da estrada a cantiga dos homens que seguiam para a sua casa, agarrou seus filhos e junto com eles se deitou em um canto e puxou por cima deles uma coberta de pura lã e ali chorando apavorados ficaram aguardando.

Eles abriram a porteira do curral e caminharam rumo ao alpendre.

O bater das matracas intercalados com a cantiga, cada vez mais próximos da casa deixavam mais desesperados a mãe e seus filhos que não paravam de chorar.

Os homens entraram no alpendre e Dona Maria ficou um pouco mais calma e as crianças silenciaram seus choros, mas permaneciam ali amontoados e cobertos.

As matracas e a cantiga silenciaram por um momento e teve início as orações e ladainhas.

Dentro da casa começou um movimento que Dona Maria e as crianças ouviam mas não tinham coragem para olhar.

No momento em que os homens começaram a orar para o Arcanjo Miguel, intercalando as matracas com as cantigas, um vento forte apagou as lamparinas, escancarou a porta da cozinha e as janelas. Dona Maria sentiu que a coberta foi arrancada de cima deles, abraçou mais forte ainda seus filhos e continuaram deitados do mesmo jeito em que estavam.

Rapidamente silenciou tudo.

Depois de algumas horas o Sr. Eustáquio chegou em casa.

Encontrou-a toda escura, com as janelas e a porta da cozinha abertas e deitados imóveis no chão, sua mulher e seus quatro filhos. Estavam acordados mas mudos em consequência do medo que passaram.

Com o amanhecer do dia, todos refeitos da situação, surpresos, perceberam que o menor dos meninos, que há tempos já passara a idade de caminhar e não conseguia, caminhava e corria alegremente pela casa.

A segunda criança, que tinha um cobreiro quase crônico no pescoço, também estava limpa, não havia nenhum sinal da doença.

Ao organizarem tudo o que aquele vento desarrumou, perceberam que aquela coberta que os cobria, um quadro de santo que estava na parede e uns outros objetos de louça que estavam no armário cristaleira, não estavam mais na casa.

Lembraram então que tudo aquilo que havia desaparecido, fora dada e eles por uma pessoa conhecida, e que teriam pertencido a uma antecedente dela que havia falecido.

JV do Lago
Enviado por JV do Lago em 18/10/2020
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