TORMENTOS DE UMA OBSESSÃO

Uberaba, maio de 1976

A partir de agora, tomando desse aparelho vocal empestado, começo a narrar minha breve e trágica história, e desde já peço-lhes perdão pela crueza com que exporei os fatos; é que minha consciência culpada em nada deseja amenizá-los.

Retrocedo aos oito de idade. Lembro-me de meu pai como um rude lenhador, homem alto e forte, com a pele tostada devido à prolongada exposição ao Sol e uma barba espessa e grisalha. Não me recordo bem das feições de minha mãe, mas lembro que ela era uma mulher alegre. Gostava de se pintar e usar vestidos decotados, gostos que desagradavam muito a meu pai.

Morávamos um pouco afastado da cidade, numa velha casa perto de uma mata fechada, porém, dava pra chegar na área urbana tranquilamente com a nossa carroça, num percurso que levava mais ou menos uma hora.

Minha mãe detestava viver no meio do mato, queixando-se sempre ao meu pai que deveríamos ir morar na cidade, no entanto, ele retrucava “ora, o que eu vou fazer na cidade, mulher, meu ganha pão está aqui”? Este era um dos raros momentos em que minha mãe ficava aborrecida, mas, por fim se resignava, afinal aquele homem era teimoso feito uma mula.

Meus tormentos começavam de verdade lá pelas dez horas da noite, quando já estava deitado. Via sempre ao lado da minha cama um homem esguio, vestindo preto dos pés a cabeça, usando um chapéu estilo cowboy. O homem que tinha um rosto enrugado e com feições de um réptil nada falava, apenas ficava a me fitar com um olhar de profundo ódio. Também costumava ter um pesadelo recorrente. Sonhava que dois cães ferozes e enormes, de pelagem avermelhada e suja, mordiam sem parar meus braços e pernas e o contato daquele pelo imundo me provocava asco.

No começo acordava aos gritos, e minha mãe corria até o quarto. Não, nada de me oferecer conforto, para me acalmar a impaciente mulher me aplicava tapas nas faces. Depois passei a não mais gritar, pois assim pelo menos me livrava das bofetadas daquela louca alegre e às vezes embriagada de cachaça, a única bebida que podia entrar lá em casa. Foram tempos difíceis aqueles, mas o pior ainda estava por vir.

Meus pais não eram pessoas religiosas e eu nem sabia o que significava rezar. Aos nove de idade também não sabia ler nem escrever, porque meus pais nunca me matricularam na escola. Meu pai achava que pra rachar lenha eu não precisava estudar e minha mãe nunca ligava para o que eu fazia ou deixava de fazer.

Quando minha mãe e eu íamos até a cidade, ela me deixava numa casa grande aos cuidados de algumas moças e sumia à tarde inteira. As moças também eram animadas e uma das raparigas até me beijava na boca dizendo aos sorrisos “esse vai ser meu freguês quando crescer mais um pouco”. Eu não entendia nada, mas acabava rindo também.

Certo dia meu pai foi à cidade me buscar pessoalmente de carroça. Achei estranho, pois ele nunca fizera isso antes. Era sempre minha mãe quem voltava para me pegar.

No caminho ele mesmo me contaria, com toda calma e frieza do mundo para meu espanto, que havia surpreendido minha mãe na cama com outro macho em nossa própria casa, e que para lavar sua honra não tivera alternativa a não ser tirar a vida daqueles dois safados a golpes de machado. Por fim meu pai completou mal-humorado: “Tirei a sua mãe da vida, mas uma vez puta, sempre puta”.

Mais tarde viria a saber que foi uma despeitada moça do bordel quem delatou ao meu pai os encontros amorosos secretos de minha pobre mãe.

Chegando a casa meu pai e eu enterramos os corpos dos dois amantes perto de uma mangueira e o rude lenhador me fez jurar que esse seria o nosso segredo até a morte.

– Se alguém perguntar diga que sua ingrata mãe nos abandonou — recomendou meu pai. Nada respondi, limitando-me a menear a cabeça em sinal afirmativo, pois naquele momento eu só conseguia sentir uma profunda raiva da minha genitora.

No dia seguinte meu pai me disse:

-- Mudei de ideia, guri, ano que vem você vai pra escola. Aquela inesperada notícia foi uma das poucas alegrias que tive em minha vida. Finalmente aprenderia a ler, escrever e a fazer contas.

Aos dez anos entrei tardiamente na 1ª série da escola primária. Alguns meninos e meninas caçoavam daquele garoto mais velho que só estava aprendendo a ler agora.

A professora do 1º ano era muito gentil e dedicada, e me ajudava muito, mas às vezes as lições da cartilha faziam a minha cabeça doer. Nessas horas ouvia uma voz sibilante que parecia vir de dentro da minha cabeça dizendo “seu burro, não aprende nada mesmo” acompanhada de uma estrondosa gargalhada.

Por esta época as minhas visões com o homem réptil e os pesadelos com os cães diminuíram um pouco, contudo, nunca cessaram totalmente.

Aos quatorze anos larguei a escola, pois entediado, julguei já ter aprendido tudo o que precisava saber. Sabia ler, escrever e dominava as quatro operações básicas para fazer contas.

Abro um parêntese aqui para falar de Cristiano – meu único e verdadeiro amigo na adolescência. Cristiano e eu éramos como unha e carne: ele me ensinou matemática e a andar de bicicleta e eu o ensinei a pescar e a nadar.

Numa ocasião em que estávamos sozinhos em sua casa, meu amigo resolveu me mostrar a espingarda nova do pai dele. Ora, de repente Cristiano apontou o cano da arma para a própria cabeça e brincando, apertou o gatilho. Sem saber que a espingarda estava carregada, o infeliz acabou estourando os miolos. Apavorado, fugi dali e depois da cidade, o mais rápido que as minhas pernas trêmulas me permitiram, afinal quem ia acreditar na minha palavra? Cristiano estava morto e eu seria acusado de assassinato.

Depois desse trágico episódio não mais retornei à cidade e passei o resto da minha adolescência ajudando meu pai a vender sua lenha pelas redondezas.

Quando finalmente completei dezoito anos, meu velho genitor me disse:

– Filho, não há mais nada pra você aqui, hora de voltar pra cidade. Essa foi a última vez em que falei com meu pai.

Na cidade logo arrumei um emprego de auxiliar de mecânico na oficina de um amigo do meu pai. Hospedei-me em uma humilde pensão e passados alguns meses vivendo ali, tornei-me amásio da proprietária do estabelecimento; uma viúva simpática beirando seus cinquenta anos.

Logo a maledicência corria a boca solta, mas a mulher dava de ombros e dizia para todos que quisessem escutar “vou aproveitar a juventude desse rapaz o máximo que eu puder”.

Depois que enjoei um pouco da minha companheira, mas sem largá-la, pois adorava ter casa e comida de graça, passei a frequentar a zona do baixo meretrício.

Numa noite estava no meio do sexo com uma cabrita fogosa, quando subitamente a imagem do corpo ensanguentado da minha mãe ao lado do seu amante invadiu minha mente. Cuspi no rosto da jovem prostituta e esbofeteei-a na face.

– Sua cadela sem-vergonha, por que teve de nos abandonar?

Entrei em luta corporal com a rapariga, que gritava desesperadamente por socorro, e quando estava prestes a estrangulá-la, dois brutamontes atraídos pelos gritos da moça arrombaram a porta do pequeno quarto e me arrastaram nu até outro compartimento desocupado da casa.

Indefeso, fui atingido por uma saraivada de golpes. Os socos e chutes vinham de todo lado. Senti um ferimento se abrir em minha testa e logo minha boca, meu nariz e meus olhos estavam cobertos de sangue. Mais um tempo de espancamento e finalmente perdi os sentidos.

Nesse instante o comunicante começou a se expressar em tom mais emocionado:

– Misericórdia! Peço-lhes que se compadeçam da minha infortunada alma e orem por mim. Estou sinceramente arrependido de ter acobertado o crime do meu pai e das minhas próprias faltas. Não obstante, esse implacável verdugo com feições de réptil continua a me manter cativo neste buraco imundo e escuro. Ah, como sofro, meu Deus!

O infeliz espírito desencarnado chorava agora copiosamente enquanto o dirigente das tarefas daquela noite aplicava passes no médium a fim de restituir-lhe as energias.

Enquanto isso, uma outra médium de faculdades psicofônicas que também estava sentada à mesa, deu passagem a outro espírito que inconformado protestava:

– Não! Deixem-no comigo, ele ainda não sofreu o bastante. Este patife e eu éramos sócios em alguns negócios. Depois de ganhar minha plena confiança, este canalha seduziu minha mulher e de comum acordo os dois me envenenaram, levando-me à morte. Felizmente a morte não existe e vou continuar cobrando tudo o que este calhorda me roubou.

Uma gargalhada sinistra ecoou naquele ambiente.

Somente o amor com a força do perdão poderá um dia ser capaz de dissipar todo o ódio dessa nefasta obsessão.

Depois de comovente prece feita pelo irmão dirigente em prol de todos os necessitados, as atividades da noite foram encerradas.