Lapa-da-Calagem 


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         Enorme paredão calcário com cerca de trinta metros de altura. As intervenções arqueológicas eram feitas numa área delimitada pela presença da caverna, de um lado, e pela presença da mata de capoeira, pelo outro: a Lapa-da-Calagem.
 
 
          Quando encontrei minha irmã no corredor, eu a abracei. Se Vivi estava aqui, não foi a sua cama que foi encontrada vazia esta manhã. Que criança teria sumido? Logo saberia a resposta, pois podia ouvir a vizinha tagarelando. 

            — Nenhuma pista? — perguntou papai. Fiquei ali, ainda abraçando minha irmãzinha e ouvindo frações de conversa.

           — Nenhuma pista. Não estou surpresa. O vento veio e roubou cada menina da cama.
 

          Mudamos para a Lapa havia poucos meses. Fomos nos adaptando, papai reformando a velha casa e contando sobre as descobertas no sítio arqueológico, onde trabalhava. Praticamente no nosso quintal.

            Contou-nos que se sentiu um invasor na catacumba lacrada. Os passos ecoando e as lanternas lançando faixas na escuridão. Raízes pendiam do teto e as paredes úmidas eram raiadas de calcário branco. Tagarelava animado:

      — SHLAAC! A picareta atingiu a parede de terra, afundou e parou com um baque. Avançamos, engatinhando pelo túnel. Ninguém pôs os pés ali por décadas.

        — Que tal uma descoberta dessas? — perguntou e continuou:

     — Esqueletos de crianças, meninas e todos tinham sinais de rituais mortuários. Pense só nisso!
 

       Naquela noite, ele disse que precisava ir a São Paulo a trabalho:

       — Vão ficar bem enquanto eu estiver fora?
 
      — Claro — respondi, tentando esconder que a casa e redondezas podiam ser bem assustadores.


     — Vão dormir com dona Sinira.
 
 
 
          Estávamos tensas. A anfitriã quis nos distrair. O rosto da velha se enrugou mais entre os olhos e claramente desconfortável, começou:

         — Essa história está escrita em sangue, nos ossos e na memória, em vez de estar em papel.
Os moradores não incomodavam Jurema, mas tampouco gostavam dela. As crianças gostavam de visitá-la. Uma menina não voltou para casa. Procuraram-na pela capoeira e redondezas, chegando até a cabana. Ela estava na horta. Dormiu entre as plantas e nunca mais se levantou...

         A índia voltou com os braços cheios de ervas e frutos, a cabana estava em chamas e a preciosa horta, destruída.

          Um grupo a esperava: “Assassina!” “Feiticeira!”, gritavam. E caíram sobre ela que gritou para as árvores, para as pedras, para a terra... Nada pode salvá-la.

        — Então, ela voltou agora? E, por que raptaria crianças? — Minhas palavras, em tom mais alto do que esperava, ecoaram pelas paredes.

          A velha me ignorou e continuou:

         — Os caçadores enterraram o corpo bem fundo, na capoeira...
 
A terra é como a pele, cresce em camadas.
O que está no alto, descasca.
O que está embaixo pode chegar ao alto,
se estiver bravo o suficiente e se for forte o suficiente...
 

           A velha, misteriosa, recitou em meio à fala e continuou:

         — Uma morte muito errada... Com os anos, o corpo pode ter chegado à superfície e reaparecido. Sua pele é feita de mato. O sangue vem da chuva; a voz é o vento.

       — E ela está furiosa. É a razão pela qual as crianças estão desaparecendo, não é? — indaguei — Jurema está levando todas elas para punir a cidade...

        — É. Ela aparece e crianças somem. Mas por mais poderosa que seja, está morta. Coisas mortas devem ficar em seu lugar — a velha acreditava no que dizia.

          — Ela não matou aquela garota, não é? — perguntei.

         — Às vezes, uma vida é muito curta — d. Sinira confirmou. A menina tinha o coração doente. Ela se deitou naquela horta e não mais se levantou. Precisavam culpar alguém...

         — Por que não fizeram nada?
     
      — Saber e provar são coisas diferentes. Os moradores nunca vão acreditar — a velha resmungou.


      — Encontrar os ossos de Jurema e dar um descanso a eles... enterrá-los. Isto sim ia dar um paradeiro nessa desgraceira — d. Sinira murmurou quase com reverência. — Guardados de forma apropriada. 

        — É possível encontrar os ossos? — perguntei arrepiada

       — Está ali, em algum lugar — a velha apontou para o morro e a mata cerrada que compunham a Lapa. Você tem o dom. Posso sentir. Sei que poderá encontrá-la — cada palavra cuidadosa e medida. — E, tem um perigo...
 
      Deitada na cama, com as cobertas até o queixo, eu ouvia o vento entre as árvores e o aguaceiro batendo forte no telhado. Meu corpo estava estranho; cada músculo tenso e as veias cheias de algum líquido formigante. O sangue havia sido drenado e substituído por água com gás? Tentava entender meus instintos, incapaz de me concentrar.  Lembrava, tonta, confusa, dos sonhos que vinham se repetindo: eu, meio guiada para casa, deslizava por uma estradinha de terra, uma voz esbravejando.
 
 
 
           Cinco dias depois...

         Empenhava em entender como me perdi do grupo de busca. Mas forçava meus pés a entrarem no matagal. A chuva mais forte e eu lutando contra os arrepios. Um cinza duro se difundia pelos galhos das árvores que formavam linhas pontudas. E tudo parecia morto.

       Subi a ladeira desnivelada, o vento fazendo ondas com as pontas do mato: rajadas com força condensada em um assobio. 
É a Xamã — pensei, sem ar. Ela está controlando... tudo ao mesmo tempo... puxando na direção dela.

         No topo, avistei um brilho estranho, não ao redor, mas abaixo: no vale. Os espaços entre o arvoredo brilhavam, iluminados por brasa branco-azulada.

     Uma sombra se moveu: pequena silhueta envolta pela escuridão. A forma girou em direção à mata com velocidade antinatural, meio carregada pelo vento e pelo mato.

     — Minha irmãzinha!? Vivi? — gritei, mas ela não se virou para mim. Desapareceu... Eu não podia deixá-la!

 
        Procurei qualquer sinal em forma de criança, mas tudo que encontrava eram folhas mortas. O lar de animais. Andavam pelo chão, pelas árvores. Saltavam voavam ou se empoleiravam...

          E, então, um grasnido cortou o silêncio. Outro. E outros. Segui a trilha de granidos e penas escuras pelo meio dos troncos, galhos prendiam minha jaqueta, arranhavam-me as pernas. Peguei velocidade até algo me jogar na terra dura. Debati-me... o apertão só ficou mais forte. Uma comprida raiz retorcida tinha agarrado a bota. E, enquanto lutava com ela, descobri, meio apagada, entre o musgo e a terra, uma pegada. Cinco dedinhos. Um calcanhar.

         Pegadas, mas nada das crianças. Segui-as e descobri que, apesar de tomarem caminhos diferentes, todas acabavam se dirigindo para o mesmo lugar: um ponto à frente onde os troncos se abriam para permitir uma espécie de clareira. Ali, as pegadas desapareciam.

         — O que é isso? — Falei em voz alta. Às vezes, era melhor fingir que havia alguém com quem dividir o medo.

       Os guaxes abriram as asas, ameaçadores, sem saírem das árvores meio-mortas, que se dobravam de forma estranha para guardar o espaço de um aterro, no centro, onde havia um casulo feito de galhos secos. A terra parecia estranhamente nua em um lugar tomado por mato e flores. Estéril.

        Embrenhei pelos espaços mais largos entre os galhos. Já tinha uma perna no casulo quando uma rajada levantou o ar de dentro dele.  Cheiro de podridão.

       No alto, uma das aves bicava algo branco que acabou caindo, quicando em um galho antes de mergulhar no vazio. Consegui vê-lo repousando no montículo de terra. Notei que havia cacos lá dentro, meio enterrados. Brilhavam nas faixas de luz que conseguiam penetrar a mata: ossos. Um antebraço se sobressaía de uma massa de cipós emaranhados. Só podiam ser de Jurema.
 

       Sobre o casulo, uma dúzia de guaxes o guardavam. Os galhos rangiam e estalavam em protesto quando me enfiei por uma abertura, desaparecendo no interior. De joelhos, bem no centro, na semiescuridão, comecei a cavar um osso atrás do outro; limpos, apesar do barro e do musgo que estavam por toda parte.

     Cada um era uma surpresa. Um dedo fino. Um fêmur dividido. Um ombro. Então, um crânio com o rosto meio destruído no ponto em que havia algumas flores sujas de musgo e ervas. Era como um horrível vaso de flores, as raízes escapando do olho.
 

         Então foi isso que fizeram com Jurema quando encontraram a menina morta. Passei meus dedos pelo crânio arruinado – o rosto quebrado, o olho destruído – e tremi quando pensei no grupo de caça arrastando-a para a mata.

        Ouvi clique, clique... e olhei para cima. Um pássaro brincava com um pequeno osso, como antes. Só que, desta vez, precisava dele. Atirei uma pedra. Não pareceu nem um pouco perturbado pelo assalto. Na segunda, deu certo. Colhi o osso, juntando-o aos da cesta.
 

        Investiguei os arredores, antes de voltar, esperando achar as crianças. Meus olhos correram pelas árvores, do alto até o chão. O chão... debaixo dos meus pés estava seco, com cachos de capim e pedaços de musgo bem assentados. Mas, alguns metros adiante, ao lado do casulo, a terra estava diferente. Mexida recentemente.

      Palavras vindas dos pesadelos me incomodavam: NÃO OUSE PERTURBAR O MEU CULTIVO...

        Não pensei. Caí de joelhos e comecei a cavar com as mãos. Não encontrava nada. Nada. Então, meus dedos sentiram algo macio. Solapei a terra com força: um rosto. Pálido, sujo, cabelo emaranhado.

        Reprimi a vontade de gritar e, em vez disso, desenterrei o peito e pressionei o ouvido contra ele, procurando a pulsação. Ouvia-a, lenta, baixa e regular. Meu coração bateu aliviado enquanto puxava a menina pelos ombros.

      Logo, outros rostos apareceram. Cinco crianças ao todo, plantadas em calagem. Entre elas, minha irmã.
 
 
        Podia ouvir vozes e latidos cada vez mais perto. O grupo de busca!

         Precisava levar os ossos de volta para d. Sinira antes do pôr do sol. Não podia abandonar as crianças... 

      Os sons mais altos e perto... Os guaxes abriam as asas, nervosos... Então pensei: se tenho algum dom, está na hora de usá-lo.

       Agarrando a cesta de ossos, corri da clareira, implorando ao céu, aos pássaros e ao mato que protegessem as meninas.

        A mata ia se fechando atrás de mim, quando senti um empuxo nas costas. Uma súbita reviravolta debaixo dos pés e uma forte rajada de vento arrancou-me a cesta das mãos. Caí.

       Ainda sem descobrir o que aconteceu, vi a cesta derrubada, com todos os ossos espalhados na beirada do paredão. Arrastei-me para juntá-los.

        O solo parecia ondular. A vários metros, a cesta se moveu; ou melhor, algo dentro da cesta se moveu. O osso de um braço saiu dela, contorcendo-se, enquanto o mato subia ao redor dele, cobrindo aquela coisa branca com terra e ervas.

        Soltei uma praga, indo atrás do braço que deslizava pelo chão e buscando se conectar com uma mão. Cinco linhas brancas se seguravam em um arbusto: ossos de dedos! Saltaram e avançaram para mim. Dei uns passos para trás. Arranhavam o ar, fazendo o musgo crescer. Terra e touceiras de capim se formavam ao redor deles, como músculos e pele.

       Mantinha os olhos focados no corpo que ia se montando. O mato selvagem era amassado pelos ossos que se juntavam. Um pé encontra uma perna. Costelas encontravam a coluna.

        Um braço, totalmente montado, enfiou-se na cesta e recuperou o crânio, a flor ainda plantada acima do olho.   E, ainda na palma da sua mão já coberta de mato, a terra e as ervas começaram a subir para o crânio, enquanto o restante do corpo se montava.

    Dois círculos brilhantes flutuavam, aproximando-se. Subiram ocupando o lugar dos buracos dos olhos onde as raízes esperavam, como nervos.

      A aberração recuperou a cabeça e se virou para mim. Da boca saiu um vento forte que amplificava palavras que pareciam saídas de uma garganta entupida de terra:

      — NÃO OUSE PERTURBAR O MEU CULTIVO... — o som, entre um grunhido e uma risada, ecoou e foi morrendo aos poucos, transformado em uivo.

         O arvoredo se distorcia, ondulando. A criatura se aproximava. Começou mancando, a perna ainda se prendendo, mas, quando ia chegando perto, sua caminhada era mais firme. A cada passo, capim se adicionava aos membros, fortalecendo-os. Esticou os braços para mim:

         — Eu avisei — palavras viajavam pelo ar — para não mexer em minha horta.

        Corra — gritou uma voz dentro da minha cabeça. Recuei. Em vão. A criatura segurou-me firme com uma das mãos, enquanto a outra vagou do queixo até o pescoço onde os dedos se fecharam. Tentei lutar, mas atravessei aquele corpo como se ele fosse nada mais que... ar.

        — Fui eu que fiz. Peguei cada menina — um silvo feroz. — Você arruinou minha horta. — Ela sabia que eu tinha as crianças. Sabia que queria acabar com ela.

      – Você roubou a minha irmã – gritei em resposta, levantando minha faca como se tivesse ideia do que fazer com aquilo.

       O vento soprou forte.

       — Quieta, quieta – ela gritou com a boca meio formada, pedaços de terra caindo dos lábios. O chão se movendo... Meu calcanhar tocou um novo sulco e tropecei.

         — Quieta — as palavras tinham uma força tangível. Vinham sobre o vento como um feitiço e, antes que eu pudesse me levantar, raízes podres se enroscavam em mim e subiam pelos braços e pernas, prendendo-me ao solo. Eu perdia o fôlego quando me apertavam. Cortei as raízes com a faca, somente para ver mais uma dúzia subindo pelas botas. Com o braço livre, golpeei as ervas que seguravam meus tornozelos.

     De um salto, colidi com a bruxa, ainda fraca, que se desequilibrou. Corri, enquanto ela se recuperava.
Dei outro passo e senti o declive. O muro de pedras e, ao lado dele, a casa de Sinira, mais abaixo.

        — Como você ousou? — Girei o corpo e o espectro estava a centímetros de meu rosto, seus lábios de musgo demonstravam raiva. Dedos ossudos, cobertos de ervas, seguraram minha garganta. Fechei o punho, sentindo o cabo da faca do meu pai, e dei um golpe certeiro, cortando-lhe a mão. Ela caiu e eu também, rolando pela ladeira vários metros antes de conseguir parar.

           Ela vinha atrás de mim, recolocando a mão. Consegui ficar de pé, e deslizei para a base do morro. Olhei para a casa de Sinira e vi uma catacumba retangular onde antes só havia terra árida e uma pilha de pedras. A tumba, aberta, esperava os ossos.

            Precisava enfiar a criatura ali. Esperei-a, mas ela parou de se mover, enquanto olhava para a cabana e para a horta ao lado.

           Um som alto, o suficiente para fazer o ermo tremer e a criatura se virar na direção do barulho, arrancou-a do devaneio. Peguei-a desprevenida, empurrando-a para a sepultura. Rolamos juntas. Abraçadas. Uma só.

             Os ossos bateram contra a terra cavada, com tanta força que o esqueleto se desmontou — um monte de ervas, musgo, ossos e terra.

               E, de repente, tudo fica quieto.

        Um silêncio estranho, os ouvidos bloqueados, uma forte pressão antes do retorno do som. Eu me sentei na tumba, confusa, vendo como ervas e flores começavam a crescer lentamente ao redor, até a estrutura de pedras parecer velha.

           Ergui-me com dificuldade. O lábio ardia, e, quando afastei a mão dele, havia sangue nas pontas dos meus dedos. O metal brilhava ao lado do muro de pedra, a fonte do ruído agressivo. Homens parados, rifles levantados. Puro espanto.

          Finalmente um deles abaixou a arma, pulou o muro e correu até mim. Outros homens, caminhando mais atrás, traziam em seus braços pequenas formas aninhadas.
 
          D. Sinara examinou as crianças, as cinco sentadas ao lado do muro de pedra. Vivi começou a se mexer, rolou ainda dormindo. Dormindo... todas elas. Alívio.
 
 
 
       Já se passaram anos desde que cacei a maldita, o medo tem sido meu companheiro constante; queria reaprender a viver sem ele.
Se fecho os olhos, por instantes encontro-me novamente lá, de pé na clareira da mata, olhando em direção às escavações. O vento, a varrer o vale, gemendo...
 
        Tornei-me a guardiã. Sinto nos meus ossos. Farejo no ar. Minha função na Lapa é tão facilmente reconhecida quanto o cheiro da mata quente ou do suor de cem homens trabalhando ao sol: Jurema está comigo.

            Olham-me de um modo engraçado quando eu digo que tenho um demônio... Temo o dia em que o espírito do mal me domine, completamente. Não posso acreditar que eu seria capaz de sequestrar crianças e plantá-las. Tentei ir embora para longe... Voltei. Estou aprisionada na Lapa-da-Calagem.


          Olho em torno em busca de uma resposta, mas as escavações, a caverna e a capoeira não passam de uma extensa escuridão.

                 Tenho que confessar que herdei a raiva de Jurema. Toda a raiva que correu pelos galhos da injustiça. A índia não se comparava a mim. E, eu só estou começando.
 
Nenhuma luz.

Nenhuma justiça.

Só a capoeira...




 
TEMA: lugares amaldiçoados.