CAJADO PERIGOSO

Esse acontecido foi narrado pelo compadre do meu pai, numa sexta-feira, depois que seus companheiros chegaram da colheita de café.

Era mês de maio. A gente ia à igreja na quarta-feira, sábado e domingo. Nesses dias, havia quermesse, a igreja ficava cheia e o culto era animado. Não tinha padre, o diácono, ou, algum leigo preparado para isso, fazia a celebração. Ao final, meninas e mocinhas vestidas de anjos, faziam a coroação de santa Maria, mãe de Jesus. Nos outros dias da semana a lida na roça era ferrenha e à noite escutávamos as histórias do nosso vizinho.

Senhor Geraldo Perigoso, era assim que todos o chamavam. Diziam que o perigo dele estava no cajado que carregava consigo. O porrete era tão liso, que brilhava como se tivesse sido envernizado.

Nesse tempo, eu ainda criança, e olha que já sou velho e nunca esqueci do tal cajado do nosso vizinho.

Ele nos contou que o madeiro o acompanhava desde os trinta anos de idade, quando quebrou o pé e passou seis meses sem poder pô-lo no chão. O cajado servia-lhe de muleta na hora de andar.

Disse certa vez, que ao ir à cidade, um cachorro raivoso cercou-o e queria de toda lei, arrancar um pedaço da sua perna e ele o escorou com o tal porrete. Deu-lhe apenas uma paulada e o cachorro afastou-se.

Depois desse dia, ele resolveu incrementar o referido. Com ele acertou a cabeça de uma cascavel e resolveu aproveitar o que a serpente tinha que lhe pudesse ser útil.

O velho compadre do meu pai, era um sujeito cheio de criatividade. Depois de matar a cobra, arrancou um dos dentes e o chocalho dela, levando-os, consigo.

Em casa, fez um orifício no porrete com uma broca, colocou no buraco o dente da cobra e fechou com um pedaço de madeira e lixou bem, de modo que não aparecia que ali tivesse algo que não fosse somente o cajado. Na outra ponta do porrete, fez um segundo furo mais largo e nele enfiou o chocalho da cobra, cobriu também direitinho, lixou e arrematou com perfeição. Tanto fez que o cajado, além de ser um cerne bruto, que não quebrava, agora, estava envenenado, segundo o senhor Geraldo.

Contava isso e balançava o madeiro, e o chocalho fazia barulho, como se fosse o rabo da serpente.

Assim, ele seguia toda tarde, depois da lavoura, sempre a nos contar a histórias horripilantes. A gente, às vezes, nem conseguia dormir, com medo.

Todos respeitavam o velho como tal... morria de medo de que ele quando bebesse, quisesse usar o cajado no lombo da gente.

Sua fama correu longe. Nas cidades da redondeza, todo mundo sabia quem era o velho do porrete envenenado.

Sim. Nessa dita sexta-feira, veio nos narrar um certo feito seu, para lá de medonho que me fez passar a noite em claro de tão assombrado que fiquei.

Contou-nos que havia ido à cidade comprar remédio para a esposa que tinha tido seu primeiro bebê. Era tarde da noite.

De volta para casa, tinha que atravessar uma serra cheia de curvas e cercada de mata, pela qual todos que por ali transitavam viam um monstro muito feio. A dita assombração era famosa na região. Os homens da época, passavam no boteco que havia ao pé da serra e bebia uma boa cachaça de alambique para ter coragem de enfrentar a fera, isto é, subir meio tonto, talvez, os olhos ficassem turvos e a assombração não pudesse ser vista.

O velho contava e ria muito, enquanto a gente se encolhia de medo.

Disse ele, que nesse dia, não pôde beber, porque a mulher estava em casa esperando a medicação que ia aliviar suas dores.

Antes de subir a serra, parou, pensou, engoliu seco. Não tinha outro jeito, precisava encarar a situação.

A coisa feia que se materializava no alto da serra, era tão temerosa que até os animais que serviam de transporte às pessoas, refugavam e saiam em desabalada carreira, porque o bicho, montava na sua garupa.

Senhor Geraldo, nesse dia, floreou a história como só ele sabia fazer. Era um narrador nato. A gente passava a noite mudo e ele falando, ou, declamando poesia. Sabia inúmeras de cor.

Para nós, que vivíamos longe dos grandes centros, era a mais interessante diversão – Escutar as histórias que ele contava.

Então, pôs-se a subir a serra. A mula em que estava montado, já sabia que por ali, não era fácil. O medo, o suor frio, era uma agonia que não havia como se livrar dela. Mal começava a subida, ela já esturrava e no seu trote costumeiro ia com o rabo e as orelhas murchos, isso significava que ela já estava vendo o troço de outro mundo.

Segundo o narrador, os animais vêem essas coisas de outro plano, primeiro que os humanos. O bicho feio esperava embaixo, no pé da serra e só deixava do outro lado, quando chegava à porteira que fazia divisa com o vale de São Jorge. Dali em diante, o animal ficava mais leve, relaxava, depois de estar pingando de tanto suor e quase sem forças.

Todos que moravam na região diziam que o animal de montaria não podia ser frágil, se não, caía estatelado ao chão com o peso da assombração.

Era uma assombração que tinha corpo, volume e peso, enquanto a maioria das que já se ouviu falar, saem do nada e voltam para o nada, como se fosse fumaça, mas, essa do senhor Geraldo, era desaforada.

Segundo ele, quando chegaram no alto da serra, exatamente no ponto plano de linha reta, antes de começar a descida, ele resolveu dar um basta.

A mula estava quase arreando. Ai ele pensou: - vou por esse porrete para funcionar. Não aguento mais essa situação.

Então, parou. Apeou e gritou a plenos pulmões:

- Apareça, traste dos infernos que quero te dar uma surra!

O silêncio foi quase mortal, não fosse o cri-cri dos grilos na escuridão, que na hora também se fizeram de mortos.

Gritou de novo.

Nessa hora, pulou na frente dele uma criatura de corpo parecido com gente, porém, com um par de chifres curtos e os olhos enormes. A boca cheia de dentes de onde chispavam faíscas, a medida que ele esturrava numa gargalhada que ecoou mata adentro.

Os chifres eram vermelhos cor de brasa os olhos acesos também feito fogo. Assim que o bicho pulou na frente dele levou a primeira paulada. O trem saltou de banda, mas, o porrete pegou de raspão. Nesse hora ele notou que o bicho tinha rabo, pois, deu-lhe uma rabanada que ele foi ao chão. Levantou imediatamente e deu-lhe outra porretada com a força que lhe saiu dos bofes, acertando um dos chifres do bicho que saiu fogo e tinou como a bigorna batendo no ferro. Na terceira cacetada o bicho deu um berro. Ele foi pra cima e deu mais, espremeu o bicho no chão com a ponta do cajado e pisou no seu pescoço. Nessa hora ele viu que o bicho soltava labaredas pelos olhos e gemeu, num estouro apavorante. Pulou no mato e saiu quebrando tudo.

Ai, Geraldão gritou:

- Se me aparecer de novo, esteja pronto para tomar outra surra!

Respirou fundo, quando procurou a mula, ela já tinha descido a serra no galope.

Ele foi atrás, correndo com o cajado nas costas e com muito medo.

Encontrou a mula que o esperava na porteira que dava para o vale.

Ele disse que só deu conta de tudo o que aconteceu quando chegou em casa.

Montou na mula, passou pela porteira e foi galopando, por mais de dez quilômetros, até chegar na sua casa.

Já em casa, viu que sua roupa estava molhada, como se tivesse tomado uma chuva forte. Observou também, que a boca estava seca, com muita sede.

A luta com o bicho foi terrível, por um triz, Geraldo ia a nocaute.

Ele disse que passou mais de um mês sem ter vontade de ir à cidade, por medo de atravessar a serra.

Depois, contou o que aconteceu ao seu irmão que morava do outro lado do igarapé, a poucos metros da sua casa e os dois combinaram de irem juntos à cidade e voltar à noite para dar outra surra no bicho.

João era seu irmão caçula, um sujeito que não tinha medo de nada.

Esse aprontou um belo chicote de couro de boi, trançado com oito pontas. Caso o bicho aparecesse, eles eram dois e a surra seria bem maior.

Era num sábado, os irmãos saíram bem cedo, com destino à cidade. A conversa dos dois estava animada, o plano era de voltar à noite, segundo João, dessa vez, o bicho ia esturrar de dor e se não corresse ia morrer, se é que esse tipo de criatura morre, disse ele, soltando uma gargalhada.

Passaram o dia inteiro na cidade bebendo e articulando sobre a sova que iam dar no chifrudo.

Na volta, ainda pararam no pé da serra para beber a derradeira da noite.

Geraldo, em sua mula Ruana e ele em seu burro Russo trotão, bom de coice. Depois da saideira, cada qual, mais bêbado que o outro, montaram em seus animais e tocaram serra acima.

A cachaça foi tanta que nem se deram conta de nada. Dormiram sobre a celas e caíram ao pé da porteira, na entrada do Vale de São Jorge.

Quem os encontrou dormindo no meio do cocô das vacas e os animais também dormindo ao lado deles, foi o vaqueiro Nelzinho. Esse sabendo dos planos que os levaram à cidade, não deixou por menos, queria a todo custo saber sobre a tal surra - mas, por si mesmo, chegou à conclusão de que a "marvada" pinga, impediu-os de realizar o serviço.

Segundo eles, estava de bom tamanho, com a surra que levou do senhor Geraldo, decerto não quis aparecer, com medo de apanhar em dobro.

As histórias eram muitas, mas um dia, esse fantástico narrador, partiu. Lembro como se fosse hoje, na hora do velório, aproximei-me do caixão e vi que o cajado estava lá, junto dele, embaixo do braço. Nem morto ele se apartou do porrete. Levou-o consigo.

Tenho certeza de que ele não desceu aos infernos. Aposto que quando o encardido o viu com o cajado na mão, lacrou as portas e o mandou ir falar com seu Pedro. E, ele, que não era bobo, nem nada, deve ter ido feliz da vida.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 21/11/2020
Reeditado em 13/03/2021
Código do texto: T7117173
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