O FANTASMA QUE SAIU DO ARMÁRIO.

Um vento gelado soprou, lá pelas bandas da Moóca, anunciando a chegada da chuva. Mais chuva. Uma semana chuvosa. O trânsito caótico. Árvores caindo, rios alagados. -"Marilda! Cadê minha cueca, amor?" Renatão abriu o box do banheiro. A toalha azul marinho com seu nome bordado. Saiu do banheiro, enrolado na toalha. -"Roupão é coisa de frutinha, homem frouxo." Disse ele, ao ganhar um roupão no amigo secreto da firma. -"Adorei. Vou usar, Mônica!" Mentiu para não magoar a moça, com a qual tivera um breve romance. Renatão tinha fama de pegador. -"Vacilou, passo mesmo o trator! Falta homem de verdade no mercado." Repetia aos colegas de trabalho. Marilda doou o roupão para o asilo. O quarto. O bilhete no criado mudo. -"Caraca. A Marilda foi visitar a tia Belmira, em Carapicuíba! Me esqueci disso." O uniforme da firma, passado no capricho pela esposa dedicada. O boné do Timão. O botinão, as meias pretas. -"Macho que é macho, só usa meias pretas ou azuis!" Repetia aos parentes e amigos. Ele ajeitou o bigode. Alisou os cabelos com as mãos. -"Macho brucutu não usa pente, gel nunca. Isso é coisa de frouxo!" Perfume para ele era supérfluo, além de caro. Bastava o cheiro de sabonete. Passou a usar antitranspirante por insistência da esposa. Ele vasculhou a gaveta do guarda roupas. -" Que coisa! Onde estão minhas cuecas?" As outras gavetas de pijamas e calções. As gavetas da esposa. -"Caraca! Não tem cueca limpa? Será o Benedito?!" Olhou o relógio. Faltavam vinte e cinco minutos para o ônibus da empresa passar. O ponto de ônibus ficava a duas quadras de sua casa. -"O monte de roupas pra passar! Deve ter alguma cueca limpa lá." Ele entrou no quarto de hóspedes. A tábua de passar armada. O ferro elétrico num canto. A chuva começou a cair. Ele olhou, peça por peça, não achando o que queria. -" Pai do céu. Meu reino por uma cueca!" Gritou, parodiando a famosa frase do rei inglês Eduardo VII. -"O cesto de roupas sujas. Vou vestir uma cueca suja mesmo, embora a Marilda deteste isso! Não tem jeito! Não posso ir trabalhar sem cueca!" A área de serviço. Ele jogou as roupas no chão. Nenhuma cueca suja. O desespero. O tempo passando. O carro estava na oficina. Poderia chamar um carro de aplicativo mas seu celular era antigo e antiquado. -"Não. Macho alfa não tem ZAP, essas coisas. Tirar fotos pra quê, não sou fotógrafo! Um celular básico está ótimo." Dizia ele, relutando em aderir a tecnologia. -"Não é possível que a Marilda doou minhas cuecas pra caridade! Eu joguei pedra na cruz pois não acho uma cueca nessa birosca!!!" Esbravejou. -" Marilda lavou roupa ontem. Deve ter cueca no varal." Ele foi até a varanda. A chuva caindo. Os varais tomados de roupas. As cuecas estendidas, bem úmidas. -" Não secaram, filhas da mãe! Estou na roça!" Ele entrou. -"A máquina de lavar quebrou. Se, ao menos estivessem centrifugadas, daria pra usar uma cuequinha!" A garrafa de café. A metade de um pão. Engoliu rápido o desjejum. Marilda deixara a mesa pronta. Ele nem olhou para o bolo de aipim, a geléia de uva, o panetone. -"Macho brucutu só toma café puro. No máximo passa manteiga no pão e só! Tem que honrar a espécie em extinção!" Olhou o relógio. Correu para o quarto. Olhou a gaveta da esposa. -"Não tem jeito, Renato! Vai na raça!" Abriu a gaveta da mulher. -" Força, homem. Só dessa vez!" Ela era muito organizada. Uma carreira de calcinhas pretas, brancas, coloridas. Separadas e dobradas com extrema habilidade e carinho. Ele torceu o nariz. Respirou fundo e pegou uma calcinha rosa. -"Fio dental jamais. Aí já é demais! Essa é grande, ela usa pra dormir. Todas as grandes são rosa! Um dia só, Marilda têm centenas desses paninhos, como ela chama. Uso e jogo fora depois sem ela perceber!" Fechou a gaveta, a porta do guarda roupas. Vestiu a peça feminina. A calça grossa do uniforme por cima. -"Eita, coisa apertada. Por sorte, Marilda têm coxas grossas! Por baixo do uniforme ninguém vai perceber!" Ele vestiu a calça, calçou a botina. A camisa. O boné do time de coração. O crachá, a identidade, dez reais pra tomar a tradicional cervejinha no bar do Mosquito, após o trabalho. Ele sorriu ao se lembrar da nova garçonete do boteco. Trocou olhares com a moça, recém chegada do Maranhão. -"Não vai mexer com a Toninha, minha sobrinha. Sei que você é o maior garanhão do bairro, Renatão!" Disse o Mosquito, percebendo as intenções do outro. -"Sossega, Mosquito. Já namorei mais de trinta mas estou casado. Sou um burro amarrado. Tá suave na nave, como diz o Chico Pinheiro, no Bom Dia, Brasil." Ele apagou as luzes e trancou a casa. O portão. Abriu o guarda chuvas. -"Negócio louco, fica entrando na bunda. Na hora de ir ao banheiro, vou sozinho. Ninguém pode saber que estou de calcinha!" A vizinha acenou para ele. -"Bom dia, Rê. Meu marido caminhoneiro viajou!" Ele fez sinal de positivo e sorriu. Jurema vivia dando em cima dele. Acelerou o passo pois não queria perder o ônibus da firma. Duas moças passaram por ele. Olharam-no de cima abaixo. Sorriram para Renatão. -"Carne nova no bairro. Eu devo ter imã, só pode ser pois elas me comeram com os olhos! Renato, você é o cara. O pai tá On!!" O ponto de ônibus. Marcelo e Leandro, colegas de trabalho. Renatão cumprimentou os amigos. -"Dia. Que chuvarada!" Disse Leandro. -" Está chovendo mulher bonita também. Viram aquelas duas que passaram aqui??" Disse ele, nem reparando que o ônibus chegara. -"Por pouco não perco o busão da firma. Não sou nada sem a Marilda em casa!" Ele notou que havia algo diferente. -"Bom dia, motorista. Até que enfim tiraram o chato do Almeida e colocaram uma motorista mulher. Gatinha, por sinal." Leandro e Marcelo sorriram. -"Cuidado, motorista. Esse é o maior garanhão do bairro!" Disse Marcelo. O ônibus seguiu viagem. Os bairros. O ônibus cheio de funcionários. A pista. A chuva mais forte. Um pneu estourou. O ônibus desgovernado. Os funcionários em pânico. -"Meu Deus, vamos pro saco!" Gritou Renatão. Uma batida forte na mureta de concreto da passarela. Renatão, sem cinto de segurança, voou pela janela frontal. Muitos feridos. O trânsito parado. As equipes de resgate. As sirenes. A motorista em choque. Todos saíram do veículo. Renatão foi colocado na maca. Tinha caído de cabeça no asfalto. -"Ele respira! Afastem, pessoal. Vamos imobilizar o rapaz!" Marcelo e Leandro, com arranhões apenas, choravam. O corpo do amigo, ensanguentado e lutando pela vida. O paramédico tirou as botas, a camisa e a calça de Renatão. -"Vamos massagear. Me ajudem aqui." Outros paramédicos chegaram. Renatão era o que inspirava maiores cuidados. Leandro e Marcelo se olharam. O riso misturado com a tristeza e dor daquele momento. -"Marcelito, o nosso amigo está... está?!! Não é verdade!" Eles olharam. Viram o amigo de calcinha rosa. -"Meu Deus. Aquela Coca era Fanta, Marcelo! Tô bege!" Os outros funcionários presenciaram, incrédulos, a cena dantesca. -" Era o último brucutu da espécie. Dizia que era macho, brucutu e troglodita mesmo. Um dia a verdade aparece!" Filosofou Marcelo. A notícia se espalhou pela empresa. Renatão morreu assim que chegou ao hospital. O seu espírito se desprendeu do corpo. -"Turma. Essa motorista é gata mas é navalha, dirige mal." Ele olhou pra baixo. Viu seu cadáver, durinho e geladassso, na mesa de mármore do necrotério. -"Eu...eu morri!!?! Que merda!! Deu um grito de pavor ao ver seu cadáver. A cabeça girou e ele sentiu um torpor. Uma sensação de vazio, tudo escureceu. Ele voltou a si. -" Morri mesmo. Oh, não! A calcinha rosa, não. Eu desencanei com a carssóla da Marilda. Fu...." Firmou o pensamento e estava na empresa. Ouvia todos os comentários. -"Que pena. Um ótimo cara mas mentiroso, era fruta!" Ele avançou sobre o seu chefe. -" Osmar. Não sou fruta nada, não tinha cueca seca. Pombas! Que saco, ninguém me escuta." Ele viu Leandro e Marcelo, saindo da enfermaria. -"Fomos liberados. Coitado do Renato, morreu como um passarinho! Um passarinho que usava calcinha!" Eles riram muito. Renato tentou falar com eles. -"Marcelito, não foi assim. Sou alfa, meu amigo! Espada!" Eles não o viam nem ouviam. Renato pensou em Marilda e logo estava na sua casa. -" Ser fantasma tem suas vantagens, a gente pensa e acontece. É tipo Ghost!" A esposa chorava, ao lado da mãe e algumas vizinhas. -"Eu soube que ele morreu com uma de minhas calcinhas. Nunca desconfiei mas o que importa é que era um bom marido." O fantasma de Renato ficou furioso ao ouvir isso. -"Marilda. Sou eu. Amor, não tinha cueca seca, caramba. Oh, céus!" Durante o velório, o comentário corria a boca pequena, entre sussurros. Renatão escutava tudo. -"Saiu do armário, enfim. Gostava de usar roupas femininas!" Disse uma mulher que ele não conhecia. -"Quando o cara diz pegar todas, ser machão, desconfie. Está aqui o exemplo!" Disse seu chefe, Osmar. -"Chefe fio da mãe! Idiota!" Vociferou o fantasma. Estava bonito num terno preto e um cravo no bolso. Marilda pediu ao rapaz da funerária pra colocar uma calcinha rosa no presunto. -"Ele gostava, né?!? Ficará feliz assim." Renato estava decepcionado. -" Feliz? Estou super feliz, aqui do outro lado da vida. Eu mereço. Bati as botas e vou ser enterrado de calcinha rosa! Minha reputação foi pros quiabos!" Notou que Marcelo olhava muito para a viúva Marilda. -"Pronto. Agora é demais. Marilda, o Marcelo é palmeirense. Não dê bola pra ele, amor! Seres de luz, eu vos invoco! Venham e me levem. Não aguento mais!" FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 23/11/2020
Reeditado em 24/11/2020
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