OS ESTRANHOS DA NOITE
Conto de Terror e Ficção Científica Steampunk
Parte 2 de 2

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 ...uma dor excruciante partiu do baixo ventre e sentiu a água descer em grande quantidade por suas pernas trêmulas.  “Ele vai nascer! Ele vai nascer, e vai ser hoje!”, pensou preocupada.

   Ela respirou fundo. Não podia perder tempo porque precisava saber em que pé se encontrava o combate lá fora. Já ia escorar a testa novamente à janela quando o enteado irrompeu à sala assustado.
   — Tia Klara, tia Klara! O que está acontecendo? – Choramingou nervoso o garoto.
   Não havia tempo para explicações. Respirou fundo pela segunda vez, segurou novamente o baixo ventre com força, contraiu a fisionomia numa carranca e rezou para ser obedecida sem discussão. Apontou o dedo indicador na direção do corredor de onde o pequeno acabara de vir.
  — De volta para o quarto! Vá cuidar da sua irmã - ordenou determinada.
   — Mas, tia Klara...
  O garoto fez menção de atravessar a sala, porém se deteve quando o matraquear da metralhadora se fez ouvir com estrondo novamente acima do zunido dos ventos que estremeciam as paredes do velho sobrado.
   — Para o quarto! – Intimou elevando um tanto mais o tom de voz.
   O menino deu meia-volta e sumiu no corredor.
   “Meu Deus, onde Alois estava com a cabeça quando resolveu trazer esta máquina de matar para dentro de casa?”
   Tornou a espremer o rosto contorcido de dor de encontro ao vidro da janela. A cena, então, assim se lhe apresentou: duas massas ensanguentadas encontravam-se inertes, afundadas na grama espessa do jardim. Dezenas de folhas secas, embaladas pelos redemoinhos de vento, colavam-se nos corpos disformes. Esforçando por desviar os olhos daquele espetáculo grotesco, ela lançou a sua atenção para os outros dois sobreviventes do massacre que, por razões óbvias, afastaram-se do Sobretudo Negro. O autômato, sem a menor hesitação, baixou a metralhadora giratória.
   “Não faça isso! Não, criatura burra, não faça isso!”
   Os dois estranhos sobreviventes entreolharam-se por um breve momento, coisa de poucos segundos, contudo foi o suficiente para perceber a vulnerabilidade do robô diante das diretrizes de comando que ela própria lhe impusera. Eles não estavam mais atacando o "Anjo Protetor". A dupla sinistra, numa velocidade impressionante, sobre-humana, começou a correr em círculos, de espadas em riste, em volta do autômato.
  O Sobretudo Negro, aproveitando-se da situação, decidiu levar combate ao adversário mais próximo dele em relação à órbita circular em torno da máquina robótica. O rudimentar engenho central analítico de Raduk, viciado nas tarefas domésticas sugeridas pela jovem mulher, travou diante do impasse dos comandos de programação para definir prioridades: defender o homem de cabelos compridos ou defender a si próprio do ataque contra a sua retaguarda.
   Quando o autômato, dentro do seu processo analítico rudimentar, decidiu priorizar a ordem da jovem senhora, iniciando o alinhamento da metralhadora para desferir as rajadas devastadoras contra o elemento hostil à vida de quem deveria proteger, “Gustav Decker”, livre da alça da mira mortal, abandonou a trajetória circular e partiu como uma flecha para dentro da lateral do autômato. Tomou impulso, deu um salto impressionante e, mal os seus pés tocaram o solo, desceu a espada com força para aplicar um golpe violento, que chegou a cortar as ligas de metais no centro do robô como se fosse uma faca de gume afiadíssimo a dividir, num único e preciso talho, uma simples cenoura ao meio.
   A estrutura oblonga de Raduk se arriou sob as quatro patas no chão orvalhado do quintal. As entranhas de fios, válvulas, engrenagens, pistões, bielas, cilindros de combustão a vapor, pularam para fora de ambas as partes separadas, provocando chiados, fumaça e muitas faíscas.
   Agora, eram dois contra um!
  Enquanto Gustav Decker tentava desvencilhar a espada das correias, fios e engrenagens da carcaça metálica faiscante, o Sobretudo Negro entregava-se a um embate intenso com o outro estranho. Nenhum dos dois em momento algum ousou emitir qualquer palavra, grito de guerra ou lamento de dor dos ferimentos letais. A agilidade deles impressionava!
   Klara jamais tinha visto semelhantes habilidades para pular, correr e flexionar a coluna vertebral daquele modo para esquivar-se tão rápido das lâminas! E foi naquele exato momento, a acompanhar o insólito combate, que se deu a confirmação de forma inquestionável às suas desconfianças: os que lutavam no quintal penumbroso eram realmente figuras sobrenaturais!
  O Sobretudo Negro, depois de esquivar-se por diversas vezes seguidas, desferiu um golpe preciso ao atingir o pescoço de seu adversário, fazendo a cabeça dele despencar do corpo, assim como uma fruta madura costuma despencar do galho de uma árvore. Ela testemunhou a mais estarrecedora das cenas, das várias que tão vividamente carregou nas lembranças para o resto de seus dias: do corpo do estranho amontoado no chão se desprendeu uma silhueta etérea levemente brilhante, parecendo humana, fantasmagórica! Klara quase surtou quando aquela forma luzidia, de aspecto irreal e sinistro, ficou suspensa a um metro e meio do chão e, não mais que dois segundos, entrou no corpo do companheiro vivo!
   “Meu Deus, dá-me proteção! É uma legião de criaturas infernais!”, rezou para si horrorizada.
   Gustav Decker, após ter recebido a forma etérea, grunhiu umas poucas palavras na direção do Sobretudo Negro num idioma que não haveria com certeza de ser deste plano terreno. Após ter livrado a espada da carcaça destruída do robô, deu-se conta de não ter condições de vencer o seu adversário em igualdade de condições. Por isso, num ato instintivo, correu em direção à casa.
   Era uma tentativa desesperada de arrombar a porta e chegar até ela!
   Klara se afastou da janela para o centro da pequena sala. Pensou em fugir, mas as crianças sob a sua tutela impediram-lhe o ímpeto da fuga. Começou a torcer novamente as mãos, nervosa. Tinha esperança de que toda a pirotecnia ruidosa do armamento de Raduk, mais o retinir dos entrechoques das espadas, pudessem atrair a curiosidade dos habitantes da vila, porém o troar encorpado da tempestade em formação arrefeceu sua confiança na intervenção dos vizinhos. Começou a rezar o Pai Nosso outra vez enquanto tentava ignorar os guerreiros se digladiando a friccionar seus corpos na parede frontal da casa em luta acirrada. Finalmente, depois de pouco mais de um minuto de luta intensa, ouviu-se o barulho de um deles desabar nas tábuas do alpendre, seguido de um silêncio incômodo.
  A batalha terminara! Sustentou o olhar fixo no hall de entrada, quase numa espécie de transe, porque sabia que dependendo de quem por ali entrasse, ela viveria ou morreria.
   A maçaneta interna girou impaciente para os dois lados, as trancas metálicas saltaram dos caixilhos e a porta escancarou-se para dentro. O coração dela logo se acalmou quando viu o Sobretudo Negro em pé com um corte feio no rosto. O sangue lhe brotava abundante dos ferimentos nos braços e pernas, mas se ele sentia dor, fez questão de não o demonstrar. Não lhe passou despercebido o fato do seu Anjo Protetor possuir olhos esbranquiçados também! Procurou não se ater muito na questão. Quem quer que fosse o homem que se avultava à entrada da porta, assim como os outros estranhos mortos, igualmente estava possuído por uma entidade que não pertencia a este mundo.
   O poderoso ser entrou na sala sem pedir licença. Entrou decidido, confiante. Olhou atentamente à sua volumosa barriga. Sentiu que sob o ponto de vista dele, ela não passava de um simples recipiente que sucedia casualmente possuir algo de valor inestimável. Ele continuou a observar com interesse à sua barriga enquanto se aproximava, sem pressa, porque não queria assustá-la. Como por milagre as dores no baixo ventre se amenizaram dentro do suportável.
  — Posso? - Ele pediu num tom de voz firme, incomum, acostumado a ser obedecido.
   Ela não disse nada, mas fez sinal de aquiescência.
   Ele tocou a sua barriga. Deslizou a mão suavemente para os lados.
   — É um menino. Eu sinto que é um menino. – Klara informou com a voz embargada pela emoção entre lágrimas.
   — Sim. De fato é. Ele está bem. E virá à luz esta noite.
   — Por que você arriscou a sua vida por nós?
   — Precisava fazê-lo.
   — Você é um anjo, não é?
   — Sim – ele sorriu – de certa forma, sou sim... um anjo! Mulher, tu deves prestar muita atenção no que tenho a te dizer. Tu jamais tocarás neste assunto com ninguém. É para a própria segurança dele, entendes? Não me perguntes como, mas sei que tu já perdestes 3 filhos. Sei que não queres passar por tudo isso de novo!
   — Claro que não!
   — Muito bem! Faças o que te digo! Este bebê no teu ventre é uma criatura afortunada. Ele será um grande líder. No decurso das gerações futuras, através do comando sobre homens corajosos e robôs autômatos, esta criança conquistará todos os continentes e realizará proezas que serão lembradas por séculos após a sua morte!
   — Como você pode saber de tantas coisas?
   — Ele me enviou para protegê-lo.
   Ela não disse nada. Apenas assentiu novamente com a cabeça.
   — Preciso ir agora, pois logo os moradores da vila estarão aqui. Eles irão te ajudar no parto. Vou limpar a sujeira aí fora. Esqueças o que presenciastes esta noite.
   O poderoso estranho deu as costas a ela e se afastou decidido a ir-se embora, no entanto, parou no hall de entrada, sem voltar-se. As órbitas esbranquiçadas da criatura brilharam por um instante! Ele precisava lhe fazer uma única pergunta, como se tal questionamento pudesse oferecer-lhe à confirmação da importância do seu trabalho.
   — Mulher, tu já pensastes no nome que irás dar a esta criança?
   — Sim! Claro que sim! Sempre soube que seria um menino e ...
   — Que nome?
   Klara Pölzl, prima em segundo grau e a terceira esposa de Alois Schicklgruber, filha de Johann Pölzl, predestinada a morrer em decorrência de cancro mamário aos 47 anos, não titubeou ao responder:
    — Ele se chamará Adolf Hitler!
    Adramalech, o estranho de sobretudo preto, o demônio sumeriano mais antigo das legiões de seu Senhor, sorriu satisfeito diante da visão de milhares de homens e máquinas humanoides em febril união erguerem orgulhosamente as mãos para saudarem aquele que viria, em futuro breve, trazer o caos à ordem estabelecida. Em seguida, ele pegou os corpos desencarnados de seus inimigos, arrastando-os pelas roupas, e sumiu na escuridão da noite!

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Nota do autor: Steampunk é um gênero dentro da Ficção Científica, que combina a estética do século 19 com avanços incríveis das tecnologias baseada na produção a vapor para a realidade da época como, por exemplo, robôs, navios e máquinas voadoras.  Como este avanço, de fato, não existiu, a maioria das histórias ambientadas neste gênero correm por uma realidade alternativa, muitas vezes flertando com acontecimentos históricos em uma perspectiva diferente da que vivemos.
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 06/01/2021
Reeditado em 07/01/2021
Código do texto: T7153636
Classificação de conteúdo: seguro
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