Conto: Os espíritos enganadores
 
* Adriana Ribeiro
 
     Conheço a Dona Mary desde que me casei com meu esposo e fui morar com ele na casa dos meus sogros no Povoado Olhos D’água. Faz 10 anos. Em todo esse tempo eu desenvolvi uma verdadeira paixão pela pessoa dela.      É uma senhorinha pequena, sempre muito bondosa e paciente. Não liga muito para as roupas que veste, mas é muito trabalhadeira. Está sempre na roça, seja com uma enxadinha, um facão ou um saco de náilon na mão colhendo alguma coisa.
   
     Sempre muito solitária, mas nunca sozinha, pois seus gatos e cachorros estão sempre a acompanhá-la. Confesso que algumas vezes eu ouvi alguém falar de umas coisas estranhas que acontecem com ela e algumas dessas pessoas, as mais maldosas, dizem que ela tem “resguardo quebrado”, uns chamam de depressão e outros de esquizofrenia. Enfim, loucura.
Mas o fato é que eu nunca tinha parado para procurar saber o que aconteceu realmente com ela.
   
     Com o problema da pandemia e o distanciamento social, a gente ficou cada dia mais próximas. Em parte porque moramos perto e por ela morar sozinha (apesar de já ter mais de 65 anos), acabei me aproximando dela e passando a visitá-la quase diariamente para saber como ela está e se precisa de algum favor, como comprar alguma coisa ou pagar algo na cidade. Coisas assim...
     
     Desde então comecei a reparar que sempre que eu chegava à sua casa, ela estava conversando sozinha. Mas não era uma conversa comum, como se fosse um monólogo. Em que uma pessoa conversa consigo mesma. Era uma conversa direta como se fosse um diálogo. No qual ela falava, dava espaços para ouvir e só então respondia ao seu interlocutor. E isso acontecia, na medida em que o interlocutor, que aparentemente estava ali com ela, falava ou fazia perguntas e ela ia respondendo e gesticulando.

     Sempre que isso acontecia eu a observava sem falar nada. Mas um dia a curiosidade me fez fazer uma pergunta. E então eu disse:
_ Dona Mary a Senhora está conversando com quem? _ Quem está aí?_ É um dos seus filhos? (de onde eu estava na sala da frente não dava para ver a cozinha onde ela estava. Só dava pra vê-la de perfil)
     E ela, simplesmente olhou para mim ainda de lado, deu um meio sorriso e disse:
_ São eles!

     Essa resposta era aparentemente normal. Mas na mesma hora eu me arrepiei toda. Senti um frio na nuca e os pelos dos meus braços ficaram eriçados. Dava pra vê-los em pé. Como se eu tivesse sofrido um choque eletrostático. Eu olhei para ela fixamente e seu rosto estava diferente. Fiquei sem palavras. Não sei quanto tempo demorei assim. Mas então ela veio até onde eu estava, como se nada tivesse acontecido e sua fisionomia era novamente a da doce Dona Mary que eu conhecia.
     
     Eu custei a voltar ao normal e lembrar o havia ido lá perguntar. Mas como sua face estava serena eu me aclamei e então lembrei que fora lá pra saber se ela queria pão no outro dia de manhã, pois o rapaz que vendia pão parava a moto todos os dias lá em casa cedinho. Mas como a porta da frente da casa dela estava sempre fechada ele nunca chamava lá.
     Combinamos a compra dos pães e eu me despedi. Saí de dentro da casa, mas fiquei um tempinho do lado de fora tentando ouvir a voz de alguém lá dentro com ela só pra desfazer a má impressão que ficara. Mas ouvi apenas o barulho dela mexendo nas coisas da cozinha, porém ela continuou calada.
     Então fui embora.
     Ao chegar na casa de meus sogros não pude disfarçar o meu estado de palidez excessiva. E acho até que meus cabelos denunciaram o susto que levei, pois minha sogra olhou direto para minha cabeça e só depois para o meu rosto. E como a pressentir algo estranho comigo perguntou-me:
_ O que foi? Viu fantasma?
E eu, ainda meio engasgada de susto, falei: _ Quase! E relatei o ocorrido.

     Depois perguntei a ela se sabia alguma coisa sobre a Dona Mary. E contei o que venho presenciado, ou acho que venho presenciado.
Foi aí que a minha sogra começou a contar umas histórias que me deixaram penalizada e amedrontada ao mesmo tempo.
     Por meio dela fiquei sabendo que quando era jovem, a Dona Mary se casou com um homem muito “raparigueiro”. O marido a fez sofrer tanto com outras mulheres que ela adoeceu dos nervos e precisou passar uns dias na casa da avó materna, pois sua mãe, após separar-se do pai dela, foi embora para a Capital pra trabalhar em casa de família. Deixando a Dona Mary e mais 10 irmãos com a mãe pra poder ficar morando no emprego.
    Assim, sendo a avó quem a criou, era como se estivesse na casa da mãe pra se tratar da “depressão” que desenvolvera por conta dos problemas no casamento.
     
  Nesse tempo Dona Mary já tinha os três filhos. A mais velha tinha cinco anos, a do meio 3 anos e o mais novo estava com poucos meses de nascido. Por isso muita gente dizia que ela estava com o “resguardo quebrado”.
    
    Quando ela já estava se sentindo um pouco melhor, a avó começou a lhes dar conselhos para a mesma voltasse pra casa para não perder o marido de vez com três filhos pra criar. Posto que ela já estava com a casa cheia de netos e não tinha como criar mais três bisnetos tendo pai.
   
  E aí Dona Mary, então com 25 anos, voltou para casa e para a companhia do marido. Ela ainda não sabia, mas já era tarde pra salvar seu casamento.
    
    Quando ela chegou na casa da fazenda onde eles moravam desde que se casaram, o marido já estava com outra mulher dentro de casa. Mas como a fazenda era longe e ela estava com os três filhos pequenos e a pé, teve que entrar na moradia assim mesmo.        Corajosa, foi direto para o quarto que era dela, o quarto do casal. Tirou as coisas da outra mulher que estava lá e botou na sala e ficou no quarto com os filhos.
     
     Quando o marido chegou do serviço, pegou as coisas da outra mulher, que já estava grávida, e botou no segundo quarto. Daquele dia em diante ele passou a dormir com a outra mulher no segundo quarto e as três crianças passaram a dormir com a Dona Mary no quarto que era do casal.
     
     Esse sofrimento durou alguns meses, mas aí Dona Mary não aguentou e ingeriu veneno. Mais precisamente um medicamento de uso veterinário para animais de grande porte. E quando começou a passar mal, levaram-na para o hospital. Lá os médicos fizeram de tudo para salvá-la.
     
     Dentre os procedimentos adotados, eles fizeram uma traqueotomia para retirar o veneno que ela tinha ingerido e introduzir sondas de alimentação e medicações entre outros procedimentos necessários pelo pescoço. Fato que fez com que ela quase perdesse a voz por completo e hoje fale quase sussurrando.
     Depois de todos os cuidados realizados, felizmente a Dona Mary escapou da morte, mas como já estava bastante debilitada quando foi socorrida, ela foi direto para a UTI onde permaneceu por 17 dias em coma profundo.
     Já faz quase 40 anos da época que esses fatos aconteceram. Naquele tempo não haviam ambulâncias e até os automóveis eram escassos. Então para chegar ao hospital na Capital demorava muitas horas de viagem.     
     
  Lá no hospital,  Dona Mary não demorou a ser atendida, mas como chegou já quase em óbito, seu tratamento foi difícil e demorado.
     Ao sair do coma ela não reconhecia ninguém. Nem a própria mãe que, por morar na capital, passava no hospital nos horário de visita para saber da filha. E durante os mais de trinta dias ainda internada para reabilitação, ela foi a única pessoa que Dona Mary recebeu.
     Quando teve alta, a mãe a levou para ficar com ela num quarto de vila que havia alugado. Era um espaço de um quarto e banheiro. Mal dava para uma pessoa só ficar. Mas como a Dona Mary precisava continuar o tratamento na capital, não podia voltar para o interior. 
     E foi li nesse espaço reduzido que ela começou a recuperar a memória aos poucos e quando o marido levou os filhos para vê-la, ela já estava um pouco melhor. E Quando este foi embora, de volta para a fazenda onde trabalhava, deixou as crianças com ela com a promessa de vir buscá-los todos quando estivesse recuperada.
    
    Passaram-se alguns meses, mas ele não voltou.
    E quando finalmente recobrou a memória completamente e lembrou de que tinha uma casa e uma família para tomar conta e tudo a mais, ela quis voltar para junto do marido. E tanto fez que a mãe mandou o irmão (que também já estava morando com elas na Capital para poder fazer companhia a Dona Mary enquanto a mãe trabalhava) levá-la em casa junto com os filhos.

     Mas ao chegar na fazenda o marido da Dona Mary não gostou da situação. Reclamou e discutiu com o cunhado, pois a outra mulher estava recém-parida dentro de casa. Disse que deveria ter sido ao menos avisado para ele resolver o que fazer. Nisso os filhos já estavam grandinhos. O menino mais novo com quase dois anos.
  
     Diante da situação inusitada, ele saiu atrás de um caminhão e quando encontrou voltou para casa, pegou os poucos móveis que tinham e levou dona Mary, o irmão e os três filhos para a cidade natal dela. Onde ela reside ate hoje. Era onde eles tinham uma casa, que inclusive já estava com placa de venda para se dividirem por conta da separação.
     
     Ao deixar a mudança e a família instaladas na casa que agora era dela e dos filhos, segundo ele, se despediu de todos e saiu para entrar no caminhão e ir embora de volta pra fazenda. Mas no último instante decidiu levar o filho mais novo para criar.
     Dona Mary não podia gritar pois o processo de cicatrização da cordas vocais ainda era recente e sua voz carecia de tratamento especializado para voltar ao normal. Então foi obrigada a ver o marido levando seu bebê embora sem poder dizer ou fazer nada além de chorar e arrancar os cabelos.
     
       E foi assim que ela teve mais uma grande tristeza a lhe abater o ânimo e entrou novamente em depressão. Passou dias e dias sem comer direito e só chorava. As duas crianças tinham apenas o tio e alguns parentes e visinhos para olhá-las. As dificuldades eram muitas e de toda natureza, mas principalmente financeira. Com o tempo as filhas foram crescendo, Dona Mary foi se conformando. Mas sempre tinha crises de depressão e passava dias doente, sem querer se alimentar, conversando bobagens.
     
     Com treze anos de idade o filho veio passar uns dias com elas e  resolveu ficar para estudar na cidade e Dona Mary teve seus três filhos reunidos finalmente. Mas com muita dificuldade financeira, logo eles precisaram trabalhar fora, se casaram e ela ficou só.
         
     Então resolveu ir morar na roça. No povoado onde tem alguns parentes que a ajudaram muito nessa fase difícil da vida dela. E foi. E é onde mora atualmente. Sozinha. Os filhos a visitam quando podem. Todos têm família e trabalham. Nas cidades onde residem. E ela muito teimosa não quer viver com nenhum deles.

     Mas a história curiosa da Dona Mary não para por aí.
     Fala-se também, às bocas miúdas, que numa das suas crises de nervos ela quebrou tudo dentro de casa e saiu nua na rua, só de calcinha. Alguém foi chamar a avó e esta resolveu levá-la numa casa espiritual para fazer uma limpeza.
   
     Lá o Pai de Santo disse que Dona Mary era médium e precisava fazer um tratamento contínuo para se fortalecer senão iria tentar de novo suicídio.     
    Que ela deveria ficar freqüentando o espaço espiritual para sempre se quisesse ter um pouco de sossego. E foi assim que elas ficaram sabendo que Dona Mary é um canal de várias “entidades” que a usam. E que a vida triste que ela teve, cada episódio de depressão e ataque de nervos, abriu as portas para cada um deles e que, para sorte dela, “metade deles são de direita e a outra metade, são de esquerda”. Por isso ela ainda tinha dias de lucidez.
       
      A avó contou essa história para algumas pessoas antes de falecer. Mas a própria Dona Mary não gosta de falar sobre isso. E a maioria do povo mais velho da cidade sabe que ela é “possuída por demônios.

     Após ouvir esse relato feito por minha sogra sobre a velhinha frágil que eu conheço, quase não liguei a história à pessoa. Mas minha sogra não tem motivos para inventar essa história. Entao só pode ser verdade.
     
     Além disso, só uma história assim poderia dar uma explicação “plausível” para o fato de eu sempre encontrá-la falando “sozinha“.
   
     Por conta dessas histórias eu fui juntando alguns episódios e trechos de comentários das pessoas da comunidade às minhas próprias situações vivenciadas em companhia da Dona Mary e entendi porquê todo mundo atribui a ela uma certa insanidade com possessões demoníacas .
     Alguns chegam a dizer que é esquizofrenia, estado de loucura. E eu tenho que reconhecer que ela meio que tem aparentemente dupla personalidade. Tem dias que as pessoas chegam à casa dela e ela está alegre, sorrindo.     
    Outros dias ela está triste, conversando sozinha, dizendo coisa com coisa...      
    Por isso as pessoas têm ressalvas com relação a ela.

     Após aquele primeiro dia que eu percebi que ela conversava sozinha, passei a ir mais na casa dela e comecei a conversar com ela sobre isso. De vez em quando eu perguntava por que ela conversava tanto dentro de casa e com quem ela fazia isso. Ela sempre dizia que eram “eles”.
   
     Devido a nossa amizade fui percebendo que esses “eles” estão na cabeça dela. Não estão ali à vista e que não são pessoas de fato que tenham passado na casa dela ou que tinham falado com ela. Tem alguma coisa com ela. Tem algumas “pessoas” que ela ouve, conversa, mas que não estão visíveis para as outras pessoas.
   
     E hoje eu posso dizer que acredito que ela ouve vozes e conversa com espíritos porque as falas, os diálogos, a forma como ela fala com eles não é de monólogo. São perguntas e respostas com um intervalo de tempo que dá a entender que ela está ouvindo a resposta ou a pergunta que lhe é dirigida.
Percebi também que alguns desses “espíritos” a maltratam. Fazem-na beber, fumar, perder as coisas dentro de casa, onde só ela está.
     
     E de acordo com as pesquisas que eu fiz ao me interessar pelo assunto, o que acontece na verdade não tem nada a ver com loucura e nem com esquizofrenia . A Doença espiritual de Dona Mary é realmente fruto de possessões demoníacas.

     Ela tem um canal espiritual aberto para qualquer um deles entrar. O tempo que ela passou em coma, as passagens de depressão que ela teve e a profunda tristeza que a acometeu por conta da traição e da crueldade do marido, fez com que ela não tivesse forças para impedir que se abrisse esse canal.
     Esses espíritos que adentram-na e/ou convivem com ela, na cabeça dela, onde ela está e interagem com ela, conversando e fazendo com que ela reaja e tenha certas emoções que normalmente uma pessoa comum não teria, são espíritos oportunistas. Invasores, enganadores e obsessores. E estes estão por toda parte. É preciso ser vigilante. Manter a áurea fechada. Coisa que a Dona Mary nunca teve condições de fazer.
    
     E hoje é obrigada a conviver com essas entidades entrando e saindo da sua cabeça como a revezarem-se. Quando ela está interagindo com um espírito mais agradável, mais simpático, que aparentemente é um espírito mais iluminado, apresenta um semblante mais alegre e conversa sorrindo. Responde de forma mais bem humorada e jovial.
   
     Mas quando o espírito que está interagindo com ela não é assim, ele estimula a sua ira. Provoca alterações de seus nervosos. Ela fica irritada, nervosa, com o semblante fechado, olheiras carregadas. Perde as coisas, esquece o que fez e até o que disse. Não se lembra das coisas, o local em que as colocou, e ela mesma as perde. Se pede uma coisa agora e a pessoa dá, quando o espírito interage ela muda de ideia e diz que não quer, que não é dela, que não pediu aquilo.
     São situações que a gente observa que não é um só espírito que interage com ela, mas vários. Uma Legião de enganadores.

     O que seria impossível de acreditar se a própria Bíblia Sagrada não apresentasse a passagem do milagre de Jesus em Cafarnaum, quando expulsou a “Legião” de demônios do corpo do rapaz e esses espíritos foram lançados numa manada de porcos os quais se precipitaram no despenhadeiro...

     Mas não eram só aqueles...
     E, além diso, quem morreram foram os porcos...
Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 11/01/2021
Reeditado em 11/01/2021
Código do texto: T7157295
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