Vidente

Vidente (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)

O coveiro João estava bastante preocupado. Pegou o telefone celular e ligou para o secretário de obras da prefeitura, assim dizendo:

- Juca, tá ocorrendo o maior fuzuê aqui no cemitério. Se puder, venha rápido...

Do outro lado da linha, uma voz meio trêmula responde:

- O que está acontecendo aí, João? Está havendo briga, alguém matou herdeiro dentro do cemitério?

- Não, patrão! Não é briga, nem nada. Vou explicar:

- Por volta das dez horas da manhã, eu fiz o sepultamento do falecido Antônio do Mercado. Ele não era bem quisto na cidade, sabe?

- No velório dele tinha apenas umas quinze pessoas. Era viúvo e não tinha muitos amigos. Nem o filho dele veio. Disseram que ele mora nos Estados Unidos e não dava tempo de pegar o avião...

- Olhei no relógio e já passam das cinco horas da tarde. O Senhor ia me dá folga para ir pescar, após o sepultamento, mas ninguém, ainda, quis sair do cemitério.

- Ué, João. Pensei que estivesse no rio das Mortes pescando. Você me disse que traria um peixe para mim em troca da folga?

- Sim, patrão. Hoje o peixe não virá, porque eu não fui pescar.

- Estou mandando uma fotografia no seu whatsapp para sua confirmação. Está bem?

Rapidamente, João virou o telefone para um túmulo, próximo a uma árvore. Ali, sentados, estavam cerca de quinze pessoas que conversavam entre si. Ao centro, estava a Dona Maria, uma senhora de idade avançada. Ela era muito respeitada na cidade. Já previu muitos acontecimentos na região. Previu que um juiz de direito seria assassinado, que um jogador de futebol sofreria um acidente gravíssimo e não mais retornaria às atividades, o sequestro e morte de um padre, uma briga de grupos rivais que terminaria com várias mortes, enfim, uma série de previsões.

Coçando a cabeça com a mão e rapidamente colocando o boné, João novamente liga para o superior e assim diz:

- Patrão! Olha aí. Desde às dez horas e meia, estas pessoas estão ali. Não fui almoçar; perdi a minha pescaria; estou com fome; aquela gente não sai dali. O que o Senhor pode fazer?

- João, aquela que está no centro é a Maria?

- Sim, patrão! Ela está passando cartas para todos. Estão desde o final do enterro do homem...

- João, eu não vou aí não. Esta Maria me falou há um mês que eu sofreria um acidente de carro antes do término do mandato da prefeita. Eu não quero nem ver esta mulher. Tente ir lá e converse para eles irem embora. Certo?

O coveiro João ficou meio preocupado. Para ele, Dona Maria era uma pessoa muito especial. Quando jovem, ainda, tinha o dom de prever tudo e muitas pessoas iam até à residência dela para pedir conselhos, passarem cartas, tentarem prever o futuro. Até mesmo João foi diversas vezes à casa dela. Ela previu que ele iria casar com a Martinha, uma funcionária dos correios, previu que passaria no concurso para coveiro, previu que o filho fosse dentista e este já estudava na faculdade, enfim, muitas coisas ela tinha o dom. Conta-se que vários candidatos a cargos públicos iam até lá para ouvirem suas palavras de sabedoria, de paz, de esperança, de amor...

Com o estômago roncando de fome, João, meio desconfiado e temendo pelo pior, inicia-se e querendo criar coragem para chegar perto deles e pedir para que eles saíssem. Ameaçou ir por umas três a quatro vezes. Perdia a coragem ao tentar iniciar o primeiro passo. Não se sabe como, ele deu o primeiro, o segundo e o terceiro passo. A coragem foi tanta que correndo chegou ao encontro das pessoas e foi logo dizendo:

- Gente! O enterro do Antônio já acabou. Já está na hora de irem embora.

- Hoje seria a minha folga e tinha marcado uma pescaria no rio das Mortes. Foi em vão, pois vocês não saíram daqui. O tempo passou. Estou com fome e vai chover. Olhem para o lado esquerdo de vocês. Existem várias nuvens de chuva e a qualquer momento São Pedro vai jogar água.

A fala de João foi em vão. Ninguém o escutou. Todos estavam concentrados nas cartas que Dona Maria passava. Eram os ases, as damas, os dez, os oito, enfim, cada carta, cada jogada representava um símbolo, ou seja, uma explicação por parte da vidente.

João falou mais uma vez. Falou pela terceira vez, mas quando já ia alterar com as pessoas, uma voz muito mansa, muito calma, muito meiga, assim lhe disse:

- Meu estimado coveiro João. Vi você nascer, crescer, namorar e casar. Previ que casaria bem e teria um lindo filho e este será um dos melhores dentistas da cidade.

- Nós ainda não saímos, porque as cartas dizem que no enterro do Antônio do Mercado, algo diferente ia acontecer. Você chegou a conhecê-lo. Ele era um homem muito ruim. Não gostava nem mesmo do próprio filho e este o abandonou. Antônio enriqueceu de forma ilícita. Cobrou mais contas aos que deviam menos, errou nas dívidas, passou muita gente para trás.

Porém, meio irritado, João assim fala:

- O que eu tenho a ver com isso? Ele é que vai acertar as contas lá em cima ou lá em baixo...

- Cuidado, João!

Dona Maria assim dizia com uma voz muito calma, muito meiga que dava uma enorme paz para quem a ouvisse.

- João, ele ainda está aqui rondando todo o cemitério. As cartas estão dizendo que para cumprir o perdão das coisas erradas que ele fez, o primeiro que sair do velório dele sofrerá um acidente. Poderá morrer ou poderá ter a cabeça quebrada. Um galho de árvore ou um bloco de tijolo irá cair sobre a cabeça de quem for o primeiro a sair daqui.

- Não queremos descumprir o que diz a profecia. Muito menos, não queremos tomar uma tijolada na cabeça ou um galho de árvore cair na cabeça. Assim, estamos aqui até decidir quem será o primeiro a sair.

Afastando rapidamente e vendo Dona Maria com as cartas na mão e sempre mostrando para os que estavam ao redor dela, João, novamente pega o telefone e liga imediatamente para o patrão e diz:

- Só o senhor vindo aqui.

- A Dona Maria disse e previu que o defunto do Antônio está aqui dentro do cemitério. Ele vai vingar dos que não pagaram a conta do mercado. Inclusive disse que o senhor ficou o devendo dois engradados de cervejas, da festa de aniversário da Dona Luíza. O senhor terá que vir aqui. Agora eu não posso sair, pois o primeiro a sair tomará um tijolada na cabeça ou uma galhada da árvore de pinheiro, lá de fora.

Ouvindo o que João disse, ele, imediatamente retruca:

- Pelo amor de Deus, João. Eu não vou aí não. Hoje eu tenho reunião na Câmara Municipal. Terei que ler meu relatório e imagina se serei eu a tomar a tijolada? Vai doer muito...

- O que eu faço?

- Espere que eles decidam quem tomará a tijolada primeiro. Eu não vou aí nem pela ordem da senhora prefeita.

Desligando o telefone imediatamente. João, sem sucesso, tentava ligar novamente para ele, mas a ligação somente dava caixa postal.

Desesperado e a noite se aproximando, João olhava para todos os lados do cemitério. Estava tudo quieto. Olhou por diversas vezes para o túmulo do finado Antônio. Tudo quieto. Rajadas de ventos sopravam e vinham da direção do túmulo, fazendo com que João saísse dali e se misturando ao grupo, liderado por Dona Maria.

Jorge era amigo pessoal de Antônio, sendo seu advogado em todos os momentos. Ansioso estava, porque perdeu um processo e o finado teria que pagar uma grande dívida tributária. Olhava para todos os lados. Os olhos não saiam do túmulo e também do relógio. Seu celular estava desligado, pois havia perdido a carga. Não podia ligar para ninguém.

Minutos foram passando. O vento soprava mais forte. Alguns relampados eram vistos e sentidos no horizonte, próximo ao cemitério. Alguns pingos de chuva eram sentidos nas cabeças das pessoas. Dona Maria pediu para que a ajudasse a levantar, pois apesar da idade, as pernas doíam e mal podia ficar de pé. Foi ajudada por João. O pânico tomava conta de todos. As árvores começavam a balançar com a força dos ventos. O uivo do vento nas árvores de pinheiro mais parecia os sons de um longo e interminável filme de terror. O tempo não passava e todos queriam ir embora, mas a previsão de Dona Maria era que o primeiro a sair tomasse uma tijolada ou uma galhada na cabeça.

Não deu outra. Um forte estrondo foi sentido no túmulo de Antônio. Um grande clarão iluminou tudo ao redor e em voz forte, Dona Maria assim diz:

- É ele, o Antônio está saindo do túmulo e vindo ao nosso encontro. Disse que pegará o Jorge primeiro, a Márcia a segunda, o Pedro o terceiro e assim por adiante. O último será você, João, que o enterrou. Ele vai levar todos para o buraco do inferno. Ele já foi julgado e pediu para levar todos consigo.

Ouvindo as palavras da vidente, sentido o clarão e o estouro, saíram todos correndo.

Por falta de sorte, o advogado Jorge foi o primeiro a sair. Correndo feito um louco, pois era também atleta e corredor de maratona, foi o primeiro a sair. Com o forte relâmpago que caiu no túmulo de Antônio, ocorrendo o estouro, as luzes da cidade de apagaram. Jorge foi mais rápido e foi o primeiro a sair. Não vendo que o portão do cemitério estava em reforma, atropelou o andaime e lá, acima, estavam alguns tijolos. Um deles o acertou, sendo na própria cabeça. Com o estouro foi forte e o vento mais forte ainda, um galho da árvore caiu sobre Jorge, que ficou estendido no chão. Os outros saíram todos correndo e rapidamente chegaram em suas casas.

Dona Maria, após rezar, foi a última a sair e prestou socorro ao advogado, que foi rapidamente internado no hospital.

Mais uma vez, Dona Maria ficou mais famosa em suas previsões. João, no dia seguinte, pediu para mudar de função e nunca mais voltou ao cemitério.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 21/02/2021
Código do texto: T7189802
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