O AMARGO DO SANGUE

O AMARGO DO SANGUE

Tudo aconteceu muito rápido. Estava sozinha, à tarde, num barzinho, tomando um trago para relaxar, quando de repente a avistou em uma mesa, num canto do recinto. Tinha uns olhos negros selvagens, uma pele extraordinariamente branca, da cor de porcelana, os cabelos pretos derramavam-se sobre seus ombros em ondas suaves, e emolduravam um rosto jovem e de uma beleza singular. Depois de algumas trocas de olhares e comunicações por gestos, convidou-a a ir para sua mesa, no que ela aceitou prontamente, para frustração dos homens desacompanhados presentes no local, já que alguns deles até tentaram uma aproximação, mas foram rechaçados. No final das contas perderam para uma mulher.

O bate papo foi agradável, porém envolto em mistérios, uma vez que ela se negou a dar detalhes de sua vida. Parecia mesmo que estava escondendo alguma coisa. Levou-a para sua casa. Seu cachorro, que geralmente é muito agressivo com desconhecidos, comportou-se de forma estranha diante dela. Com o rabo entre as pernas encolheu-se num canto, chorando baixinho, como se estivesse muito amedrontado com alguma coisa.

Foi uma tarde inesquecível. Em seu quarto, sobre sua cama, se entregou àquela estranha como jamais fizera com nenhum homem. Com ela conseguiu atingir um nível de prazer que nunca imaginou ser possível, nível esse jamais alcançado com os poucos exemplares masculinos com os quais transara. Era sua primeira experiência sexual com uma mulher, mas ela, ao contrário, e apesar de aparentar ser bastante jovem, parecia ter uma prática de séculos com o corpo feminino. Todo ele tornava-se uma zona erógena em suas mãos. Depois de horas de prazer intenso e ininterrupto, adormeceu abraçada a ela. O suor umedecia e ajudava a refrescar os corpos ainda quentes.

Ao acordar, horas mais tarde, com o quarto às escuras, porque já era noite alta, percebeu que a jovem não estava mais ao seu lado. Procurou-a pela casa inteira sem encontra-la. Foi então que entendeu, com profunda tristeza, que ela havia partido sem se despedir. Ficou ainda mais triste ao lembrar que não sabia nada a respeito dela, nem nome, nem telefone ou endereço.

À medida que os dias iam passando, mais a esperança, de vê-la aparecer na sua porta, ia morrendo. Foi a muito custo que conseguiu admitir que estava completamente apaixonada por outra mulher.

___ Delegada, acharam outro corpo. É outra criança.

A delegada emergiu dolorosamente de seus pensamentos. Abriu os olhos e encarou o agente postado na entrada da sala e segurando a porta aberta pela maçaneta. Definitivamente não era com surpresa que recebia aquela notícia. No fundo, já sabia que ela iria chegar a qualquer momento. Meu Deus, pensou, o que estava havendo naquela porra daquela cidade? Um lugar em que nada acontecia, de repente aquela onda de assassinatos. Quatro adultos e três crianças, em pouco mais de um mês. Até aquele momento as investigações não tinham ainda saído do zero. Não havia nada. Nem pistas para seguir, nem suspeitos e testemunhas para interrogar. Quem sabe dessa vez o assassino não tivesse dado um deslize.

___ Vamos lá. ___ Disse a delegada, após alguns instantes sem esboçar reação.

Em 20 minutos chegou, numa viatura, acompanhado de dois agentes, ao local em que a criança foi desovada. Como das outras vezes, era um lugar de mata fechada, de difícil acesso. A única diferença é que ficava atrás de um condomínio de luxo. As informações preliminares, fornecidas pelo pessoal da perícia, já presente no local, não eram nada animadoras. O cadáver, um menino com idade estimada em 12 anos, estava, como os dois garotos antes dele, decapitado e sem ambas as mãos, um método cujo único objetivo não era outro senão o de dificultar a identificação da vítima. Naquele momento a delegada teve a certeza de que aquele corpo, assim como os dois anteriores, não iria fornecer nenhuma pista que pudesse ajudar na elucidação do caso. Isso se confirmou com o passar dos dias, após os laudos pericial e necrópsico não revelarem nada além do que já se supunha, ou seja, que o menino, assim como os outros dois, havia sido torturado e estuprado, antes de ser morto por esganadura. Quem quer que estivesse cometendo aquelas atrocidades, tomou o máximo de cuidado para não deixar nenhum vestígio que pudesse vir a incriminá-lo. O delegado, por conta disso, estava com o caso parado. Não havia nenhum caminho a seguir. Não havia sequer uma testemunha. Só uma hipótese: a de que as vítimas eram menores abandonados, moradores de rua, uma vez que a delegacia não recebeu nenhuma denúncia de desaparecimento. Como se já não bastasse, ainda havia o estranho caso dos quatro homens encontrados com as gargantas dilaceradas e sem uma gota de sangue em seus corpos. Nesse também não foi encontrado absolutamente nada que pudesse ajudar na identificação do assassino. A delegada cogitava que se tratava, muito provavelmente, de alguém obcecado por vampiros, a ponto de ter surtado e começado a comportar-se como um, ou seja, matando pessoas e bebendo o sangue delas. Mas não era isso o que as pessoas de Água Verde pensavam. Elas estavam convictas de que um vampiro de verdade tinha cometido aqueles crimes. A mídia sensacionalista estava contribuindo efetivamente para que essa crença absurda se arraigasse fortemente no imaginário do povo simplório e ignorante daquela cidade. Era preciso encontrar o responsável pelas mortes o quanto antes e desmascará-lo perante a população, convencendo-a assim de que não se tratava de nenhum vampiro, mas tão somente de alguém mentalmente perturbado.

O monstro sugador de sangue, que estava assombrando as mentes fantasiosas da cidade de Água Verde, ganhou contornos ainda mais concretos quando o corpo de um quinto homem, com a garganta estraçalhada e desprovido de sangue, apareceu nas proximidades de uma igreja evangélica. Mas dessa vez houve uma testemunha: o pastor da dita igreja havia presenciado o bárbaro crime. A delegada, entusiasmada com a oportunidade de ter finalmente uma descrição do assassino, foi, sem perda de tempo, acompanhado de um investigador, conversar com o religioso, que os recebeu em seu templo, logo após encerrar um culto. No entanto, para surpresa e decepção dos dois policiais, o pastor afirmou não ter presenciado o crime. Havia encontrado o corpo do rapaz, mas do assassino não tinha visto nem sombra. Quando chegou ao local deparou-se apenas com o cadáver ensanguentado.

___ Mas o senhor foi visto indo com a vítima, que era membro desta igreja, em direção ao local do crime. __ Replicou a delegada.

O pastor pareceu surpreso com a assertiva, mas respondeu com voz firme:

___ Claro, de fato, mas eu não acompanhei ele até o local onde ocorreu o crime. Eu fiquei com ele até certo trecho. Retornei pra cá e quando já estava perto daqui ouvi os gritos dele. Voltei correndo na direção de onde estavam vindo os gritos. Quando cheguei lá o encontrei morto. O assassino já não estava mais no local. Sinto muito não poder ajuda-los. Mas tenham a certeza de que Deus vai entrar em providência e logo vocês vão conseguir prender esse homicida. Eu creio.

___ Vocês se conheciam há muito tempo? ___ Perguntou o agente.

___ Não, ele começou a frequentar minha igreja há pouco mais de dois meses. Na verdade essa foi a primeira vez que conversamos. Ele veio para o culto das 19h e quando eu encerrei, ele se aproximou e me disse que tinha perdido o emprego. Queria que eu pedisse a Deus que o ajudasse a se recolocar no mercado de trabalho. Eu falei que ele mesmo poderia fazer isso, mas que de qualquer forma eu iria orar pra que o Senhor todo poderoso entrasse em providência. Notei que ele estava bastante aflito, foi por isso que o acompanhei quando ele saiu. Fui citando passagens da bíblia pra ele, pra confortá-lo e fortalecer a sua fé, e não deixar espaço pra o diabo agir.

A delegada deixou o templo evangélico calada e pensativa. Sentia o desalento esmagando-a como um rolo compressor. Ao entrar no carro e arriar-se no banco do carona sentiu-se imensamente cansada. Um assassino e estuprador de crianças e um pseudo vampiro estavam agindo na cidade quase que simultaneamente há mais de quatro meses e nenhum progresso nas investigações tinha sido feito. As acusações de incompetência por parte da imprensa e da opinião pública estavam se tornando cada vez mais agressivas; até mesmo o prefeito já havia ligado três vezes para a delegacia cobrando mais empenho da equipe.

___ Se não avançarmos, pelo menos em um dos casos, a coisa vai ficar feia pro nosso lado. ___ Disse a delegada ao agente que acabava de sentar ao volante. ___ Vão acabar transferindo os casos pra algum delegado lá da capital. Se isso acontecer a nossa equipe vai ficar desmoralizada.

___ Vamos rezar pra perícia dar alguma coisa pra gente dessa vez. ___ Disse o agente.

___ Quero que você cole nesse pastor.

___ Tá suspeitando dele, delegada?

___ Não exatamente, mas é que eu tive a impressão de que ele está escondendo alguma coisa. Estou achando que ele viu mais do que disse ter visto. Pode chamar de intuição feminina.

___ E por que ele faria isso?

___ Não sei. Talvez pra proteger o assassino, quem sabe? Amanhã vou chamar ele pra depor na delegacia. Vamos ver se a gente pega ele em alguma contradição.

A delegada não fazia a mínima ideia do quão acertada tinha sido a sua impressão, porque naquela mesma noite, logo após sua saída do templo, o pastor recolheu-se para seus aposentos, um pequeno cômodo nos fundos da igreja, e ficou a pensar, fascinado, naquela estranha criatura em forma de mulher que, bem diante de seus olhos, dilacerara, com seus caninos enormes, a garganta do rapaz que frequentava seus cultos, sugando-lhe, com extrema voracidade, todo o sangue do corpo. A mulher, depois de saciar-se com seu hediondo banquete e lamber o sangue em seus dedos terminados em grandes unhas que mais pareciam garras, Encarou-o como se só naquele momento tivesse percebido a sua presença. O olhar da criatura era algo tão terrivelmente penetrante que ele sentiu como se sua alma estivesse sendo devassada. O medo o paralisara por completo. Queria fugir, mas as pernas não estavam mais lhe obedecendo. Um suor gelado escorria por todo o seu corpo, umedecendo a pele e a roupa que a cobria. A mulher aproximou-se lentamente e postou-se tão perto que ele pôde sentir sua respiração, que não era quente, mas tão repugnantemente fria quanto o ar de uma geladeira. No entanto seu rosto, não obstante estivesse todo sujo de sangue, era simplesmente lindo. Tinha olhos grandes e expressivos, de uma cor negra faiscante que amedrontava e embevecia a um só tempo; seus cabelos revoltos, caídos sobre os ombros, conferiam-lhe um aspecto selvagem e sua tonalidade escura formava um contraste agradável com uma pele extraordinariamente branca. Mas não queria encarar aquela beleza diabólica. Fechou os olhos e ordenou desesperadamente:

___ Eu te repreendo em nome de Jesus, demônio. Vá embora, criatura das trevas, em nome de Jesus, eu te ordeno.

___ Eu não sou um demônio.

A voz quase infantil, macia, mais angelical que demoníaca, o fez reabrir os olhos.

___ Eu não sou um demônio. ___ repetiu a mulher, olhando-o fixamente nos olhos. ___ Eu sou tão humana quanto você, ou pelo menos costumava ser, mas posso lhe garantir que não sou o que você acha que sou.

___ E o que devo achar depois de ver o que você fez?

___ O que faço é pra sobreviver. Preciso de sangue pra continuar viva. Por cinco séculos tenho sido obrigada a isso. Não é por mal. Me tornei uma vampira, mas não por escolha própria. Fui condenada a viver eternamente com essa maldição.

___ Por favor, eu te imploro, não me mate. Eu sou um ungido de Deus. Meu sangue não vai te fazer bem.

O belo rosto da mulher transformou-se, de repente, em uma máscara monstruosa, com terríveis olhos amarelados, incrustados numa face de aspecto putrefato cuja boca, rasgada de orelha a orelha, exibia uma fileira de dentes manchados e pontiagudos, dentre os quais se sobressaiam quatro longos e ameaçadores caninos. Ele soltou um grito de pavor, caindo de joelhos diante da criatura. Com as mãos juntas e os olhos fechados, porque não queria encarar aquela visão medonha, implorou, dominado por um tremor quase convulsivo:

___ Por favor, eu faço o que você quiser, eu serei seu escravo, eu posso conseguir vítimas pra você na hora que você quiser, sangue fresco quando você precisar, mas por favor, poupe minha vida.

Houve um silêncio torturante por alguns segundos.

___ Levante-se. ___ Ordenou a voz angelical da mulher.

Ele obedeceu mantendo os olhos fechados. Abriu-os lentamente e enxergou o belo rosto da jovem.

___ Você é um teórico da bíblia, não é? ___

___ Sou pastor evangélico. ___ Respondeu ele. ___ Minha igreja é aquela da esquina.

___ Um servo de Deus. Pois, agora você vai servir a mim. __ A mulher girou nos calcanhares e andou em direção a um muro alto de alvenaria, atrás do qual havia um barranco que descia até um local de denso e inexplorado matagal. Ela parou diante da construção, inclinou-se, flexionando os joelhos, e deu um salto espetacular, indo parar em cima do muro, equilibrando-se, numa posição felina, sobre os braços e as pernas. Ficou de pé e virou-se para seu interlocutor que, embasbacado com o que acabara de ver, fitava-a com os olhos arregalados.

___ Eu aceito sua proposta. ___ Disse a criatura. ___ Eu deixo você viver e em troca você providencia o suprimento de sangue de que preciso. A cada dois dias vou cobrar isso de você. É escusado dizer o que vai lhe acontecer se você não cumprir a sua parte do trato.

A mulher virou-se e pulou para o outro lado do muro, desaparecendo no mesmo lugar de onde, momentos antes, surgira repentinamente para atacar sua vítima. Ele ainda permaneceu ali, extático, completamente assombrado com o que acabara de presenciar. Uma vampira de verdade. Seria mesmo possível? De uma coisa tinha plena certeza: uma pessoa que sobe em um muro, que devia ter uns cinco metros de altura, com um pulo é tudo menos um ser humano. Voltou para a igreja e trancou-se em seus aposentos. Foi quando se lembrou de que algumas pessoas na rua o viram na companhia do homem morto pela vampira. Certamente esse detalhe ia chegar aos ouvidos da polícia e as suspeitas iriam cair inevitavelmente sobre ele. Para evitar ser acusado de um crime que não cometera, teve que inventar uma história falsa, porque na verdadeira, com certeza, os agentes da lei não iriam acreditar.

Haviam se passado quase dois dias desde o acontecido. Estendido sobre sua cama, o pastor lidava com o iminente retorno da vampira, marcado para o dia seguinte. Mas não era com medo ou desespero que fazia isso. O único sentimento que o dominava naquele momento chamava-se ansiedade. Isso mesmo, estava ansioso para reencontrar a criatura. Durante aquele curto espaço de tempo uma ideia brotou em sua mente e foi crescendo, tomando forma, até que se tornou um plano obcessivamente arquitetado nos mínimos detalhes. Esse processo o levou a pesquisar sobre os vampiros numa biblioteca, onde encontrou vasta literatura dedicada ao tema. Todos os textos apontavam esses seres como meramente lendários ou frutos da imaginação humana, mas ele agora sabia que isso não era verdade. Estivera cara a cara com um exemplar feminino desses demônios e por pouco não se tornara mais uma de suas vítimas. A criatura o incumbira de abastecê-la de sangue, porém o que ele tinha em mente era fazer muito mais do que isso.

No dia seguinte, ao receber a intimação da delegada para comparecer à delegacia a fim de prestar novo depoimento, o pastor não ficou surpreso, mas sentiu certa apreensão. Afinal, não já tinha dito tudo que tinha para dizer? O que aquela delegada queria ouvir mais dele? Horas depois, nas dependências do distrito policial, foi obrigado a responder, mais de uma vez, às mesmas perguntas formuladas na véspera, acrescidas de outras novas. Embora a delegada e o investigador parecessem querer dar um tom de mera formalidade ao interrogatório, a impressão de que o tinham como suspeito foi o que prevaleceu. O que considerou como um jogo de gato e rato perdurou por mais de uma hora sem que ambos os lados assumissem claramente os papéis que estavam desempenhando ali.

O pastor saiu da delegacia com uma nuvem de preocupação pairando sobre sua cabeça. Estava na cara que o delegado suspeitava dele. As perguntas repetidas não tinham outro objetivo senão o de pegá-lo em alguma contradição, só que isso não aconteceu. Durante todo o interrogatório conseguiu manter a coerência em relação ao que tinha declarado na noite anterior. Só restava saber agora se isso seria o suficiente para livra-lo do status de suspeito. Resolveu colocar aquele assunto de lado temporariamente. Tinha algo mais importante em que pensar. Um certo plano que havia elaborado e que precisava ser colocado em prática. Seria um dia cheio. Havia muito que fazer. Entrou no carro e conduziu-o para a região ruralizada e mais pobre de Água Verde.

O dia transcorreu normalmente, porém não sem uma certa tensão presente em todos os ambientes, onde a onda de assassinatos em série de crianças e adultos do sexo masculino era o assunto preponderante das conversas. Nunca antes algo sequer parecido havia ocorrido naquela cidade. As mortes sangrentas que estavam assombrando a população tinham se tornado um divisor de águas, separando a Água Verde de antes, pacata e onde nada acontecia; e a Água verde de depois, aterrorizada por misteriosos e brutais homicídios. Muitos acreditavam piamente que tanto as mortes das crianças quanto as dos adultos eram obras da mesma pessoa; já a maioria pensava igual à polícia, ou seja, que se tratava de dois homicidas, até porque o modus operandis não era o mesmo nos dois casos. Entre esses (excluindo-se a delegada e seus ajudantes) era unânime a crença de que os cinco homens tinham sido vitimados por um ser fantástico, mais precisamente um vampiro, ou um lobisomem como afirmavam alguns. O que ninguém sequer imaginava é que um certo pastor evangélico estava muito além da mera crença, ele sabia que o ser fantástico era real, pois tinha estado cara a cara com o próprio, ou melhor, com a própria. A noite havia chegado e o religioso esperava ansioso pela vinda da vampira em seus aposentos, nos fundos de sua igreja. Coincidentemente aquele era o único dia da semana em que não realizava culto. Não havia outro mais propício, portanto, para o reencontro com o súcubo. O universo parecia estar conspirando a favor desse acontecimento. Já estava com tudo preparado. A vítima que iria alimentar a criatura com sangue estava num cômodo, no quintal da casa, pronta para ser abatida. Sentiu com as mãos o volume formado pelo sal que preenchia os bolsos de sua calça. Poderia ter colocado apenas em um, mas sentiu-se mais seguro enchendo os dois, afinal quanto mais tivesse, mais protegida estaria a sua vida, se é que iria mesmo funcionar. O sucesso ou o fracasso de seu plano dependia, sobretudo, da veracidade das informações que colhera nos livros sobre vampiros na biblioteca. Se tudo não passasse de invencionices produzidas por mentes obcecadas e fantasiosas, estaria perdido. Mas, o que o pastor ignorava era que em frente à sua igreja, do outro lado da rua, um carro estava parado já há algum tempo e seu ocupante encontrava-se bastante intrigado. Era o agente de polícia que tinha ido ao templo, com o delegado, na noite anterior e agora, a mando deste, estava de volta para monitorar os passos do líder religioso. Por quase uma hora ignorou que ele não estava em casa. Só tomou ciência disso quando o viu aproximar-se, de carro, pela estrada e tomar a direção da garagem que ficava ao lado da igreja. Pelo visto não tinha voltado para sua residência depois que saiu da delegacia pela manhã. O agente lamentou o fato de não tê-lo seguido, muito embora considerasse aquela vigilância uma completa perda de tempo. Não achava que o pastor estivesse escondendo algo a respeito do último crime, como pretendia a delegada. Não via fundamento para tal desconfiança por parte de seu chefe. Mas, como era apenas um agente, ali estava, cumprindo ordens. No entanto seus olhos captaram algo que o deixou com uma pulga atrás da orelha. Havia outra pessoa no carro com o líder religioso. Parecia ser de baixa estatura, já que apenas o topo da cabeça era visível. Pensou imediatamente em uma criança. O veículo penetrou na garagem cuja porta, acionada por controle remoto, tinha se abrido segundos antes, voltando a fechar-se e ocultando o automóvel ao olhar atento do policial. Por que um pastor levaria uma criança para dentro de uma igreja fechada foi a pergunta que o agente fez a si mesmo, se é que era uma criança. Poderia ser um filho seu, ou um aluno a quem estivesse ministrando aulas sobre a bíblia. Apesar dessas tentativas de dar uma explicação razoável ao ocorrido, não pôde evitar que seu senso de policial captasse certa estranheza no fato. Era algo bem sutil, mas estava lá. Depois de algum tempo resolveu que iria fazer o que qualquer policial competente e comprometido com seu trabalho faria: averiguar.

Saiu do carro e atravessou a rua. Parou diante da parte frontal do templo, golpeando fortemente a pesada porta, em duas bandas, com a palma da mão. Aguardou por alguns instantes, mas não houve resposta. Depois de mais duas tentativas infrutíferas, dirigiu-se à entrada da garagem, de onde chamou o pastor por três vezes, porém em todas elas sua voz se perdeu, sem efeito, em meio à quietude que dominava a construção. Deduziu que o religioso devia estar, naquele momento, nos fundos da igreja, em seus aposentos, e que por isso não estava escutando o seu chamado. No entanto havia uma voz em seu íntimo lhe dizendo que alguma coisa ali estava errada. Vez ou outra lhe ocorria esses ataques de intuição, e não se lembrava de ter errado em nenhuma dessas ocasiões. Era uma espécie de sexto sentido, no qual depositava absoluta confiança.

Foi para a outra lateral do templo. Lá havia um muro alto que parecia dar para o quintal da residência do pastor. Julgou que dali era bem possível que conseguisse ser ouvido. Já ia abrindo a boca para chamar o líder religioso quando escutou um ruído às suas costas. Instintivamente sua mão segurou a PT que levava na cintura enquanto girava o corpo num movimento rápido. Deparou-se com uma mulher muito bonita, parada, olhando fixamente para ele. O policial encarou-a de volta, sentindo, de repente, uma atração irresistível por aquele belo rosto de olhar penetrante. Como a jovem se limitasse somente a fita-lo, sem dizer nada, o agente achou por bem tomar a iniciativa.

___ Posso ajudar em alguma coisa? ___ Perguntou ele.

___ Sim, pode. ___ Respondeu a mulher, saltando em seguida, como um animal selvagem, sobre o policial, e com tamanha rapidez que este não teve tempo sequer de esboçar a menor reação. A vampira cravou seus enormes caninos na garganta de sua vítima, agitando ferozmente a cabeça cujos movimentos promoviam a laceração de cartilagens, veias e artérias. O sangue brotou em grande quantidade da região destroçada para o regalo da criatura que, depois de cuspir um pedaço do pescoço para longe, deleitou-se vorazmente com o precioso e macabro repasto.

O pastor andava de um lado para o outro dentro do pequeno cômodo, que era ao mesmo tempo quarto, sala e cozinha. O peso do sal em seus bolsos causava-lhe certo desconforto quando caminhava. Mas havia também o peso da ansiedade, do medo de que o que havia planejado desse errado. Pensando bem era uma loucura. Talvez fosse melhor... Não, iria seguir adiante. Acontecesse o que acontecesse. De repente ocorreu-lhe que a vampira talvez pudesse ler pensamentos. Não viu isso em nenhum dos livros que pesquisou, mas também não viu nada que afirmasse o contrário. Se assim fosse, ela iria saber de tudo a partir do momento em que pusesse os olhos nele. Com aquele olhar penetrante dela, que parecia vasculhar os recantos mais profundos da mente de uma pessoa, era bem capaz mesmo que possuísse essa habilidade. Esse pensamento o encheu de pavor, ao ponto de fazê-lo considerar, com mais convicção, a possibilidade de desistir do que estava planejando. Um baque seco, vindo do quintal da casa, chegou aos seus ouvidos. Era ela. Só podia ser. Provavelmente tinha pulado o muro, que era alto o suficiente para ser considerado intransponível, mas não para uma vampira. A porta que dava para os fundos estava escancarada. Tinha se esquecido de ligar a luz da área e uma escuridão, mais ou menos densa, se apresentava logo após a soleira. O pastor ficou paralisado, com o olhar vidrado na direção da entrada. A iminência de ver surgir das trevas a figura pálida e fantasmagórica da vampira provocou-lhe um calafrio que o fez estremecer. Alguns segundos se passaram até que finalmente a bela mulher assomou diante do limiar da casa. Estava usando um vestido vermelho simples que, naquele momento, combinava medonhamente com os vestígios de sangue tingindo o seu rosto extraordinariamente branco. Era evidente que já tinha feito uma vítima antes de chegar ali. Sua imagem, contrastando com o negro da escuridão que a circundava, era absolutamente assustadora. Ela ficou parada na porta, sem dar nem mais um passo. Foi então que o pastor lembrou que os vampiros jamais adentravam uma casa sem serem convidados. Ele aproximou-se e a encarou com ar confiante. Aquilo era a confirmação de que a criatura possuía pontos fracos.

___ Não vai me convidar pra entrar? ___ Perguntou, calmamente, a mulher.

___ Não, não vai ser preciso. O que você quer está ali.

O pastor apontou para o outro lado do pátio, mais exatamente para uma porta, visível na penumbra formada pela claridade que saía da casa.

___ Me mostre. ___ Ordenou a mulher.

___ Espere, eu tenho um pedido a fazer. ___ Disse o líder religioso.

___ Pedido.

___ Sim, um pedido. Acho que mereço uma compensação por ter cumprido a minha parte do trato. Por ter... bem, por ter demonstrado a minha lealdade.

___ E o que seria essa compensação? ___ Indagou a mulher, com uma voz que soava, na noite, tão maviosa quanto sinistra.

___ A imortalidade. Me morda e me infecte com a vida eterna. Eu quero viver pra sempre, assim como você.

A vampira ficou em silêncio. Seu olhar e seu rosto tornaram-se tão inexpressivos que o pastor não conseguiu vislumbrar nenhum sinal de aceitação ou de recusa.

___ Me dê o que vim buscar. ___ Disse ela após alguns instantes, ignorando completamente o desejo de seu interlocutor.

O pastor ia insistir, chegou até a abrir a boca, mas mudou de ideia ao perceber algo de ameaçador na forma como a criatura o encarava. Teve medo de que ela estivesse devassando a sua mente. Baixou o olhar e cruzou o limiar da saída, passando para o quintal. Com a mulher às suas costas, caminhou pelo pequeno espaço até a porta que indicara, no outro lado do pátio. Estava trancada com uma grossa corrente que passava por uma abertura circular na folha de madeira e por outra na parede ao lado, tendo suas duas extremidades unidas por um grande cadeado. O líder religioso abriu-o, retirou a corrente e empurrou a porta, pressionando, em seguida, o interruptor de luz.

___ Pode entrar. ___ Disse, dando passagem à mulher.

A vampira adentrou o cômodo, já se sentindo atiçada por um delicioso cheiro de sangue. Parou e fixou o olhar num menino maltrapilho, deitado sobre uma maca de metal. Devia ter uns dez ou onze anos de idade. Parecia mergulhado num sono profundo.

___ Pode se servir. Ele é todo seu. ___ Disse o pastor, entrando também no recinto. ___ Eu resolvi dopá-lo pra sua melhor comodidade.

A mulher examinou, em silêncio, o local em que se encontrava. Havia torsos, cabeças e membros de crianças pendurados em ganchos; potes de vidro, contendo órgãos humanos mergulhados num líquido transparente, estavam dispostos sobre uma mesa em um canto; Um facão, um serrote e um pequeno machado, tingidos de vermelho, pendiam terrivelmente de pregos fincados na parede. O cheiro de sangue impregnava o ambiente, muito embora o lugar estivesse visivelmente limpo. Um refrigerador horizontal, instalado ali, começou a trabalhar depois da pausa regular, quebrando o silêncio que caía pesadamente sobre o cômodo. A Vampira pousou de novo o olhar sobre o menino deitado na maca. Essa visão lhe trazia lembranças há muito adormecidas nos recônditos mais profundos de sua memória. Nelas havia uma outra criança, uma menina, saída de seu ventre e com a qual conviveu por pouco tempo, quando ainda era humana. Uma menina que teve de ser abandonada pela própria mãe após esta sobreviver, muito ferida, a um ataque de uma das criaturas que vagavam na noite, e descobrir que havia se tornado uma delas. Essa mãe foi obrigada a largar tudo, marido; filha; propriedade; para fugir da sanha dos moradores do vilarejo em que vivia. Eles acusavam-na, não sem razão, de não ser mais humana, de ter se tornado um monstro, um demônio, uma criatura da noite.

___ Quem é o monstro aqui? ___ Murmurou a mulher, contemplando o cenário macabro que se descortinara diante dela.

___ Está vendo? ___ Disse o pastor. ___ Nós somos iguais. Eu e você. Somos da mesma espécie. Predadores. Você em busca de sangue e eu de... prazer, realização. Mas aposto que você também sente o prazer e a realização que eu sinto. Quando você mata e sacia sua fome de sangue se sente poderosa, superior, acima do bem e do mal. Exatamente como eu me sinto. Vamos, pode dizer.

A mulher virou-se para ele com um brilho tão estranho no olhar que o fez recuar um passo.

___ Não ouse querer se igualar a mim. Eu não sou como você. Você é um maldito hipócrita, que prega em nome de Deus enquanto mata e esquarteja crianças.

___ Ora, vejam só. ___ Disse o pastor, tomado de surpresa. __ Uma vampira com ataque de moralismo. Era só o que me faltava. Por um acaso você esqueceu do que você é? Da carnificina que está realizando nessa cidade? Somos da mesma espécie, quer você aceite ou não. A única coisa que nos diferencia é que você é imortal.

___ Não, não é só isso que nos diferencia. Eu mato pra sobreviver enquanto você mata por prazer. Eu dou às minhas vítimas uma morte rápida e indolor, mas eu duvido muito que você dê o mesmo tratamento às suas. Tenho certeza que você não mata e esquarteja sem antes torturar por horas ou até por dias as suas vítimas que, no caso, são crianças inocentes, o que torna tudo ainda mais abominável. É também em nome de Deus que você comete essas atrocidades?

___ Há muito tempo que não faço mais nada em nome dele.__ Declarou o pastor. Havia algo parecido com uma mistura de ressentimento e decepção em seu rosto. ___ Nem mesmo os cultos que realizo em minha igreja. O que sai de mim são só palavras vazias que alimentam a ilusão das pessoas que vêm até mim, em busca de algo maior que dê algum sentido às suas vidas miseráveis. Eu lutei contra isso, acredite. Tentei reprimir os meus impulsos de todas as formas. Por fim, busquei a religião porque acreditava que Deus era o único que poderia me curar desse desejo mórbido e irresistível por meninos. Depois de algum tempo me tornei pastor e vim pra essa cidade, e aqui fundei a minha própria denominação evangélica. Você não faz ideia do quanto orei e jejuei pra que Deus tirasse de mim a sanha infanticida que me dominava. Mas não foi isso o que aconteceu, muito pelo contrário, a sanha não só continuou como aumentou cada vez mais, a ponto de se tornar insuportável. Foi aí que descobri que Deus não existe. Se ele existisse teria me curado com certeza. Um Deus jamais iria permitir que um filho seu fizesse mal aos seus irmãos, ainda mais se tratando de crianças inocentes. Ao chegar a essa conclusão, saí de um jejum de mais de um ano e voltei a estuprar e matar crianças, mas continuei na minha vida mentirosa de evangélico, que deixou de ser um refúgio e se tornou uma capa para ocultar o meu verdadeiro eu. Sabe que às vezes eu fico me perguntando o que me levou a ser assim? A origem poderia estar em algum trauma de infância, mas não no meu caso. Pode-se dizer que eu fui uma criança feliz. Nunca sofri nenhum tipo de abuso sexual, nunca sofri maus tratos, nunca fui torturado física ou psicologicamente. Vivi num lar sadio e feliz. Meus pais me criaram com todo amor e carinho. Acho que talvez isso tenha nascido e crescido comigo, e em determinado momento tornou-se mais forte do que eu. E parece que está evoluindo, porque descobri, alguns dias atrás, que posso obter prazer sexual não só estuprando, mas também esquartejando.

A mulher o encarava como se quisesse fulmina-lo com os olhos.

___ Você é um maldito desgraçado.

___ E quem de nós dois não é?

___ Eu mato, não porque sinto alguma espécie de prazer nisso, mas porque o sangue humano é o único que pode me manter viva. Eu não tenho opção. Mas você, Você é o mal absoluto.

___ Ora, vamos. ___ fez o pastor. ___ Vamos deixar essa baboseira moralista de lado. Isso não combina com a gente. Nós fizemos um pacto. Eu estou apenas cumprindo a minha parte. Você me exigiu uma vítima e eu estou lhe entregando. Vá em frente. Sacie a sua sede de sangue. eu sei que você está faminta. Barreiras morais não vão matar a sua fome, mas o sangue dessa criança vai.

A vampira olhou para o garoto dopado sobre a maca. O maldito tinha razão. Ela estava realmente faminta. Já havia se alimentado, mas necessitava de mais sangue. Podia sentir a aorta pulsando no pescoço do menino; o fluxo de sangue quente, doce, deslizando, ao ritmo cardíaco, no diminuto espaço arterial. Avançou para o garoto, atraída como por um imã, sedenta do fluido escarlate circulando no pequeno corpo.

___ Isso, garota. ___ Incentivou o pastor, com prazer sádico.__ eu sabia que você não ia resistir. No final das contas acho que vamos nos dar muito bem.

A mulher estacou de repente. A expressão de prazer no rosto do pastor apagou-se quase no mesmo instante. A criatura cerrou as pálpebras e sacudiu a cabeça negativamente como se estivesse dizendo não para si mesma. Parecia haver duas forças contrárias digladiando-se violentamente nas profundezas de seu ser. Subitamente a vampira virou-se para o líder religioso, a face transformada em uma máscara horrenda, uma bocarra escancarada exibindo quatro caninos monstruosos.

___ O único sangue que vou beber aqui é o seu. ___ Disse ela, com uma voz aterradora e dando um salto na direção de seu atônito interlocutor. O pastor, porém, e apesar de surpreendido, conseguiu ser mais rápido. Na verdade, já tendo em conta a possibilidade de ser atacado pela criatura, tinha estado todo o tempo com uma mão enfiada no bolso, portanto só teve o trabalho de retirá-la com uma quantidade de sal e lança-lo sobre sua aterrorizante oponente. A vampira desabou no chão, contorcendo-se e urrando como um animal ferido. O cloreto de sódio, jogado em seu corpo, queimava como ácido e rasgava sua pele alva, penetrando e destruindo dolorosamente suas carnes. O religioso assistia com alivio e satisfação ao sofrimento da criatura. Tivera medo que o sal não funcionasse, porém agora constatava que ele era absolutamente eficaz contra aquele súcubo, e graças a isso o controle, dali em diante, seria seu; era o dono da situação agora. Aproximou-se do corpo caído da mulher cujo rosto assumira outra vez a aparência humana.

___ Olhando agora você não parece tão assustadora. ___ Disse o pastor, retirando outro punhado de sal do bolso.

___ O que você fez comigo? O que é isso que você jogou em mim? ___ Perguntou a mulher, sentindo-se exaurida de repente.

___ Ah, isso? ___ o pastor mostrou-lhe o punhado de cloreto de sódio que segurava. ___ É sal. Dá pra acreditar? Um condimento tão ordinário e barato é capaz de destruir uma criatura forte e poderosa como você. Não é irônico? E não é só isso. Ele também drena as suas forças. Resumindo: você está em minhas mãos.

___ Como soube disso?

___ O que um bom trabalho de pesquisa não faz? Eu li tudo sobre vocês vampiros. Agora eu sei o que você é capaz ou não de fazer, sei de todos os seus pontos fracos. Talvez, agora, eu conheça mais sobre você do que você mesma.

___ E o que está esperando? Acabe logo comigo de uma vez.

O pastor chegou mais perto e agachou-se.

___ Eu não vou acabar com você. ___ replicou. ___ Você poupou a minha vida, lembra? Eu também vou poupar a sua. Mas, assim como você me deu uma condição, eu também vou te dar uma. ___ Ele estendeu a mão vazia, quase encostando-a nos lábios da vampira. ___ Me morda e me infecte com a eternidade. Faça isso e eu te deixo viver.

A mulher balançou a cabeça.

___ A única mordida que vou te dar será para beber o seu sangue até a última gota. Portanto, nem perca o seu tempo.

O religioso recolheu a mão, mas a expressão no seu rosto não se alterou.

___ Ora, vamos. ___ Disse. ___ Não torne as coisas difíceis pra você. Não vê que eu posso te causar muita dor? Em algum momento você não vai aguentar mais, e vai acabar fazendo o que eu quero. É inevitável. Com ou sem sofrimento. A escolha é sua.

___ Vá em frente. ___ Replicou a vampira, contraindo os músculos faciais em resposta às dores que lhe causavam os ferimentos. ___ Mas eu lhe garanto que você não vai conseguir nada de mim. Um estrume como você não deveria nem ter nascido, que dirá viver eternamente.

___ Pois bem. ___ Disse o pastor, Erguendo-se. ____ Você fez a sua escolha.

Levantou a mão cheia de sal para joga-lo sobre a vampira. Parou o movimento, porém, ao perceber que algo estranho estava acontecendo com ela. Seus olhos estavam completamente brancos, sem nenhum vestígio de pupila ou íris; Seu corpo encontrava-se inerte no chão, o que fez o religioso pensar em um desmaio ou morte. Voltou a agachar-se próximo à criatura para observa-la melhor.

___ Vamos, acorde, sua vadia do inferno. ___ Gritou, segurando no ombro da mulher e sacudindo-a. __ Se isso for algum truque vou acabar com sua raça.

Mas a vampira não reagiu. O pastor sentiu o corpo dela rijo como uma tábua, Seus olhos brancos passavam uma impressão perturbadora de um vazio inefável, jamais experimentado por nenhuma mente humana. Ergueu-se e deixou cair um pouco de sal sobre o rosto da mulher na esperança de que ela reagisse à dor. O cloreto de sódio derreteu a pele, abrindo caminho através da carne e formando uma chaga de cujo interior saía uma espuma amarelo-esverdeada, juntamente com um som que lembrava o de um efervescente num copo com água. Ainda assim a criatura continuou tão imóvel e dura como um cadáver. O religioso sentiu-se invadido por um forte sentimento de frustação que manifestou com um chute nas costelas da vampira. “Merda, acho que essa desgraçada bateu as botas”. Pensou. “E agora? Depois de todo trabalho que tive”.

Não muito longe dali a delegada, deitada na cama, em sua residência, tentava relaxar e se desvencilhar um pouco da tensão provocada pelas pressões que vinha sofrendo em seu trabalho. Ao lado, no chão, seu pastor alemão, enroscado sobre si mesmo, dormitava tranquilo, mas com a audição em alerta para captar qualquer ruído ou barulho que significaria a presença de um invasor em seu território. Sua dona ergueu-se abruptamente e sentou-se na beirada do colchão. O cão, percebendo o movimento, levantou a cabeça e encarou a delegada. Mas havia alguma coisa errada. Não a estava reconhecendo. Era ela, mas ao mesmo tempo parecia não ser. Alguma coisa a tornara tão diferente a ponto de não ser possível identifica-la. Até o seu cheiro havia mudado. O cão entendeu que estava diante de uma estranha. Uma estranha que tinha invadido o seu território. Mostrando ameaçadoramente os dentes, começou a rosnar para a intrusa. A delegada sentia-se como que dominada por uma força estranha. Um impulso repentino e inexplicável de ir à igreja do pastor, que fora depor na delegacia pela manhã, apoderou-se dela. Não sabia o que estava acontecendo nem o que significava aquilo. Só sabia que precisava ir, e o mais rápido possível. O pastor alemão agora latia para ela, mas não ousava ataca-la. Na verdade o animal estava amedrontado pela força sobrenatural que sentia em sua dona. A delegada vestiu maquinalmente a calça e a blusa que deixara no cabideiro. Calçou os tênis e virou-se para o seu cão, que imediatamente parou de latir e, chorando, encolheu-se contra a parede.

___ Até mais, garoto. Mamãe volta logo. ___ Disse ela, com uma voz inexpressiva. Pegou a pistola na gaveta do criado-mudo, Passou para a sala, apanhou as chaves do carro, em cima da mesa, e saiu.

Levou vinte minutos para chegar ao local onde ficava a igreja. Durante o trajeto sentiu como se não fosse realmente ela que estivesse dirigindo. Alguma coisa parecia estar controlando o volante através de sua mente. Estacionou atrás de outro veículo, que logo percebeu ser do policial incumbido de ficar de olho no pastor. Mas, naquele momento, não conseguiu dar atenção a isso. Uma força poderosa a impelia para o interior do templo. Entrar na igreja era tudo o que importava. Havia algo em sua mente forçando-a a acreditar que seria até capaz de dar a vida por isso.

Atravessou a estrada, pouco movimentada naquele horário. O fluxo de transeuntes, no local, também diminuía consideravelmente ao cair da noite. Tirou a pistola da cintura assim que se viu diante da porta de entrada da construção evangélica. Podia sentir uma vibração ameaçadora emanando lá de dentro. Encostou o cano da arma na fechadura e disparou, esfacelando-a juntamente com a tranca que a compunha. Tinha plena consciência de que estava cometendo um crime. Sem um mandado aquilo se caracterizava como invasão de propriedade, no entanto não conseguia evitar. A força que a impulsionava era muito mais forte que o seu senso de moralidade e respeito pelas leis. Deu um passo para trás a fim de tomar impulso. Ergueu a perna e, concentrando todo o peso de seu corpo nela, lançou o pé contra a porta, que se abriu ruidosamente abalando, por instantes, a quietude reinante no interior do templo.

Nos fundos da construção, alheio à invasão que acontecia na parte da frente, já que não ouvira os sons do tiro e do arrombamento, abafados pelas paredes da igreja, o pastor continuava às voltas com o súbito estado cataléptico ou a morte, ou fosse lá o que fosse da vampira. Estava encostado à parede do pequeno Cômodo, olhando fixamente para o corpo da criatura estendido no chão. A imortalidade, sempre tão desejada e perseguida pela raça humana, estava ali, bem na sua frente, mas tão intocável e inatingível quanto um reflexo no espelho. Precisava, a qualquer custo, toma-la para si, mas para isso precisava ser mordido, o que não ia ser possível com aquela maldita vampira morta, se é que estava morta. Talvez tivesse exagerado no sal. O grau de sensibilidade dos vampiros ao cloreto de sódio era algo que as fontes consultadas não informavam. Arregalou os olhos e empertigou-se. Uma ideia havia acabado de surgir em sua cabeça. Era claro. Sangue. A única coisa que poderia revivê-la. Seu olhar pousou no garoto estendido sobre a maca. Foi até um balcão encimado por uma placa de metal, sobre a qual estendia suas pequenas vítimas para, em seguida, esquarteja-las. Puxou uma das gavetas que ali havia, retirando de seu interior uma faca de cabo branco, comumente usada por açougueiros. Aproximou-se da maca, pegou o menino nos braços e o colocou no chão com a parte superior do corpo sobre a vampira, a garganta alinhada com a boca desta. Com uma mão, suspendeu a cabeça da criança pelos cabelos, com a outra, a que segurava a faca, cortou-lhe a garganta. A lâmina, extremamente afiada, produziu um talho profundo, com uma sensação de maciez que fez o pastor ter uma ereção. Um sangue vermelho vivo esguichou, abundante, não só sobre a boca como em todo o rosto da criatura. O líder religioso, após alguns segundos, atirou para o lado o corpo do garoto que, a despeito de estar desacordado, arquejava violentamente com os últimos resquícios de vida esvaindo-se de seu pequeno corpo. A vampira não demonstrou a menor reação ao contato com o fluido escarlate que jorrou em sua face. Seu estado de inércia permaneceu inalterável, diferente de seu aspecto, que se tornou ainda mais terrível com o sangue sobre o seu rosto e tingindo de vermelho o branco de seus olhos abertos.

Percebendo que sua tentativa havia fracassado, o pastor se deu por derrotado. Recuou lentamente, tomado pelo desânimo, até dar com as costas na parede. A vampira estava mesmo morta, e se o sangue não foi capaz de revivê-la, nada mais seria. Não podia acreditar que havia perdido uma oportunidade como aquela. Era nada mais nada menos que a eternidade; a chance de viver para sempre. Baixou a cabeça, completamente desolado. Seus olhos enxergaram a faca ensanguentada que ainda segurava, e essa visão lhe trouxe uma outra ideia que poderia muito bem ser a solução do problema. Beber o sangue da vampira. Era isso. O sangue dela iria infectá-lo com vida. Vida inesgotável. Como não havia pensado nisso antes? Colocou-se de joelhos ao lado do corpo feminino estendido no chão. Antes de prosseguir, entretanto, lembrou-se de esvaziar os bolsos da calça retirando todo o sal contido neles. Era uma precaução. Caso se tornasse mesmo um vampiro, o cloreto de sódio iria passar a ser tão mortal para ele quanto o foi para a criatura que ali jazia. Pegou o braço da mulher e, com um movimento rápido, passou a lâmina afiada em seu pulso. No mesmo instante um líquido escuro e viscoso, que não parecia em nada com sangue, transbordou do corte feito. Sem nenhuma hesitação o pastor levou o braço da jovem à boca e sorveu, com desesperada sofreguidão, a estranha sangria. Depois de alguns segundos engolindo aquilo que acreditava ser o elixir da vida eterna, começou a sentir uma dor violenta no estômago, acompanhada de uma forte ânsia de vômito. Largou imediatamente o braço da mulher e jogou-se no chão, contorcendo-se com as mãos na barriga. A dor foi aumentando até atingir um nível quase insuportável. Sentia como se o sangue da vampira estivesse derretendo suas entranhas. Não devia tê-lo bebido. Foi uma asneira sem tamanho. O que pensou ser a chave da imortalidade o estava matando agora. Talvez tivesse uma chance se conseguisse botar para fora. Enfiou o dedo na garganta para fazer-se vomitar, mas não conseguiu, a despeito das fortes náuseas que sentia. O veneno se recusava a sair de seu organismo. Sentiu a dor aumentar ainda mais, passando dos limites do que um ser humano podia suportar. Um grito escapou-lhe da garganta e sua visão começou a ficar turva. Seria a morte se aproximando? Em meio ao colapso viu, ainda que com as vistas embaçadas pelo sofrimento atroz, uma figura de mulher parada na soleira da porta. Parecia uma imagem onírica. Era ela, com certeza. A morte havia finalmente chegado para leva-lo, para acabar com aquela tortura. Mas não queria ir. Não podia acabar daquele jeito. Não era justo.

No entanto a dor cessou tão repentinamente como surgiu. O pastor mal pôde acreditar. Soltou um suspiro de alívio, relaxando o corpo sobre o chão. Um cheiro deliciosamente envolvente invadiu as suas narinas, despertando-lhe uma ânsia, uma fome como nunca tinha sentido antes. Levantou o tronco, apoiando-se nas mãos, e pôs-se a olhar em volta, à procura da origem daquele aroma enlouquecedor. Logo percebeu que o odor que sentia vinha da poça de sangue que se formara sob o corpo da criança que ele degolara. Rapidamente engatinhou, com uma voracidade descomunal, em direção ao líquido estagnado. Afastou o pequeno cadáver e, em seguida, lançou-se avidamente sobre a poça escarlate, consumindo-a totalmente até convertê-la em uma simples mancha no chão. Sentindo-se ainda dominado pela fome, que parecia implacável, atirou-se sobre a garganta do menino e sugou-lhe o que ainda restava de seu sangue. Quando terminou continuou sedento, mas havia também uma sensação de plenitude que nunca experimentara antes. Podia sentir uma força vibrante dentro de si e que parecia emanar por todos os seus poros. Sim, não havia a menor dúvida de que havia conseguido. O sangue da vampira o tornara igual a ela. Seus dias de ser humano limitado e finito haviam acabado. Seus ouvidos captaram o som de uma respiração irregular, que revelava perturbação. Virou-se na direção de sua origem e viu a mesma mulher que lhe aparecera momentos antes, e que identificara como sendo a morte. Dessa vez, porém, o pastor reconheceu a delegada. Esta tinha a estupefação estampada no rosto. Naquele momento ela experimentava a sensação de que tinha despertado de um sonho ruim para uma realidade repleta de horrores insanos. A cena que se desenrolava diante dela era algo tão medonho e infernal como nunca vira nem em seus piores pesadelos. O que estava acontecendo ali não fazia o menor sentido. Partes de corpos infantis pendurados em ganchos, como num açougue macabro, e o pastor bebendo uma poça de sangue do chão e depois da garganta de um menino, tendo ao lado um corpo de uma mulher com o rosto tão ensanguentado que era impossível distinguir-lhe as feições. O que significava todo aquele show de horrores? Não estava conseguindo pensar direito. Havia como que uma névoa cobrindo a sua mente. Na verdade nem mesmo lembrava o motivo de estar ali e nem como havia chegado.

O pastor ergueu-se, encarando-a enquanto lambia um filete de sangue que lhe escapava pelo canto da boca.

___ Você chegou em boa hora, delegada. ___ Declarou. __ Seja muito bem vinda.

___ Que merda é essa? ___ Perguntou a delegada, levantando a arma que, até aquele momento, mantinha apontada para o chão.

___ Não repare na bagunça. ___ Disse o pastor calmamente. __ É que eu tive alguns problemas, mas agora já está tudo bem. Eu vou te contar como tudo aconteceu.

O pastor caminhou na direção da delegada.

___ Fique onde está, pastor. Não se aproxime. ___ A delegada esforçava-se para firmar a mira da pistola entre suas mãos inexplicavelmente trêmulas.

___ Baixe essa arma. ___ Replicou o pastor, sem interromper os passos. ___ Eu só quero relatar o que aconteceu aqui.

___ Não se aproxime mais. Eu não vou avisar de novo.

Mas o pastor continuou avançando, sem dar ouvidos às advertências da delegada que, encarando-o, percebeu em seus olhos um brilho assustador e estranhamente familiar. Era algo que não estava lá quando conversou com ele dois dias atrás.

___ Será que você ainda não entendeu? ___ Disse o pastor, suavemente. ___ Eu agora sou muito mais do que você pensa que eu sou.

Uma metamorfose hedionda começou a se processar em seu rosto. Em poucos segundos suas feições perderam a aparência humana, dando lugar a uma face monstruosa e de aspecto apodrecido, com uma fileira de terríveis dentes pontiagudos. O que o pastor havia se tornado atirou-se sobre a garganta da delegada que, no entanto, apertou o gatilho antes que a besta a alcançasse. Três disparos atingiram o corpo do monstro, impulsionando-o para trás e derrubando-o de costas sobre o assoalho. A policial aproximou-se, cautelosa, do pastor agora imóvel, prostrado no chão. Constatou que seu rosto havia voltado ao normal. Cutucou-o com o pé a fim de se certificar de que estava mesmo morto. “O que diabos estava acontecendo ali?”___ Pensou, sentindo a realidade como algo fugidio, sem consistência. Talvez estivesse ainda em sua cama, e tudo aquilo se tratasse apenas de um pesadelo. Convencida de que o líder evangélico não era mais uma ameaça, voltou sua atenção para a mulher com o rosto ensanguentado que jazia no outro lado. Aproximou-se e encarou-a. Seus olhos brancos e inundados de sangue era mais uma imagem aterradora além das que já haviam naquele cômodo. Foi tomada, de repente, por uma sensação de deja vu. Conhecia aquela jovem caída aos seus pés. Mas, de onde? A lembrança se avivou em sua memória, e fez seu coração bater mais rápido. Era ela. Mas, por que...

Percebeu um movimento atrás de si. Virou-se rapidamente, mas não houve mais tempo. Um soco, movido por uma força descomunal, atingiu o seu rosto, fazendo-a voar e bater de costas contra a parede. Pousou de bruços no chão, em estado de quase inconsciência. Instintivamente procurou segurar com firmeza a pistola para não soltá-la, porém percebeu que ela não estava mais em sua mão. Tentou desesperadamente localizá-la, mas não conseguiu. Tudo à sua volta havia desaparecido numa escuridão que a impedia de enxergar o que quer que fosse.

___ Isso foi por ter atirado em mim, sua puta. ___ Disse o pastor, que estava de pé e examinava, com certa surpresa, os buracos de bala em seu corpo. Caminhou em direção à delegada, que naquele momento lutava para conseguir se levantar. Pegou-a pelo pescoço e colou-a de costas na parede. Com um só braço suspendeu-a, quase sem nenhum esforço, alguns centímetros acima do chão. As vistas da delegada clarearam, e então ela pôde ver o rosto de seu algoz, que tinha se transformado outra vez numa máscara monstruosa, encarando-a. Os dedos dele eram como cinco hastes de aço esmagando sua garganta.

___ Você acha mesmo que pode me matar? ___ Disse o pastor.___ Nem você e nem ninguém mais pode. Eu agora sou tão imortal quanto um deus. E sabe do que mais? Eu ainda estou faminto, e é você quem vai matar a minha fome.

Ele recolocou-a no chão enquanto seus dentes pontiagudos saltavam para fora. Inclinou a cabeça e levou a boca na direção da garganta da delegada que, ainda atordoada, reagia de forma débil. A policial sentiu, impotente, quatro presas enterrando-se em seu pescoço e o seu sangue sendo sugado. Tentou lutar para impedir, porém não conseguiu mais se mexer. Alguma coisa estava agindo em seus músculos, paralisando-os. Subitamente seu algoz foi puxado violentamente para trás e arremessado para o outro lado do cômodo, onde se chocou estrondosamente com a mesa onde estavam os potes contendo os órgãos infantis. Alguns caíram e se espatifaram no chão, espalhando o seu conteúdo. O pastor, que também caiu depois de colidir com a mesa, levantou-se rapidamente, tomado pela surpresa. Foi com espanto que deu com a vampira, em pé, olhando para ele. Achava que a havia destruído, mas pelo visto estava enganado. A força com que o atacou era a prova cabal de que estava completamente recuperada. O rosto jovem e angelical havia dado lugar uma face horrenda, realçada ainda mais pelo sangue que a cobria.

___ Formaríamos um belo casal, sabia? ___ Sugeriu o pastor.__ Seríamos imbatíveis. O mundo cairia aos nossos pés. Mas presumo que você não está interessada, não é mesmo?

A vampira nada respondeu, e nem precisava. O ódio em seus olhos já dizia tudo.

___ Que pena. ___ Disse o pastor, e avançou com um salto espetacular na direção de sua oponente.

A vampira o imitou e ambos se engalfinharam em pleno ar, penetrando-se e rasgando-se mutuamente com lâminas super afiadas em forma de garras. Quando desceram ao chão a vampira desequilibrou-se um pouco, ficando vulnerável por alguns segundos. Foi o tempo suficiente para o pastor, com o punho fechado, atingi-la no queixo, de baixo para cima, com as costas da mão. A força sobre humana do golpe a fez atravessar o umbral do cômodo e ir se chocar com a parede da residência do líder religioso, na área do quintal. A delegada assistia, espantada, àquele combate titânico. Estava sentada no chão, com as costas na parede. Com a mão tentava estancar o sangramento que brotava dos buracos de caninos em seu pescoço. Avistou sua pistola caída a alguns centímetros de distância.

Enquanto isso a vampira procurava se recuperar da pancada violenta que levara. Havia caído e estava tentando se erguer, mas o pastor não lhe deu tempo. Avançou sobre ela com uma velocidade extraordinária e a levantou, segurando-a pela garganta. Antes que a jovem pudesse reagir, Cravou as garras em seu peito, o que a fez urrar e mostrar os dentes pontiagudos, tal qual um animal ferido.

___ Vou Arrancar seu coração. ___ Disse o pastor. ___ Vamos ver até aonde vai a sua imortalidade.

Ele empurrou a mão para dentro do corpo de sua adversária, tentando alcançar o órgão pulsante dentro dela. Ouviu uns estampidos atrás de si e quase ao mesmo tempo sentiu algo perfurando as suas costas. Virou-se e viu a delegada com a pistola apontada em sua direção.

___ Larga ela, seu filho da puta. ___ Gritou ela.

___ Você atirou em mim de novo? Será que você não entendeu ainda que não pode me matar? A única coisa que conseguiu foi me deixar mais irritado.

O pastor largou a vampira, que desabou no chão, e caminhou na direção da delegada. Esta o mirou na cabeça e disparou as duas balas restantes, atingindo-o no rosto. O monstro recuou dois passos com o impacto, mas, no mesmo instante, voltou a avançar, agora com um olho para fora da cavidade e metade da face monstruosa transformada numa massa disforme e ensanguentada. A delegada sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Atirou, movida pelo medo e desespero, a pistola vazia em seu algoz, mesmo sabendo que isso iria ser tão eficaz quanto os tiros que disparou. A arma ricocheteou inocuamente no corpo do vampiro e caiu no chão. Em pânico, a policial entrou outra vez no cômodo, olhando em volta como se procurasse algum meio de escapar daquele pesadelo. O corpo sem vida do garoto estendido no assoalho e a fileira de cabeças infantis espetadas nos ganchos anunciavam que não havia outra saída senão a morte. Estava encurralada. Uma besta sanguinária avançava em sua direção e não havia nada que pudesse fazer para se salvar. Seu olhar parou no facão pendente na parede. Pegou-o no momento em que o pastor atravessava a soleira da porta. Posicionou a lâmina diante de si com as mãos crispadas sobre o cabo.

___ Fique longe de mim, seu desgraçado. ___ Disse ela, encarando a face horrenda de seu algoz.

___ Essa sua resistência é patética. ___ Declarou o pastor, confrontando-a. ___ Você não é nada mais do que uma presa se debatendo inutilmente entre as garras do predador.

___ Vá se foder.

A delegada ergueu o facão acima da cabeça e golpeou seu oponente com todas as suas forças, porém a mão ágil da criatura segurou os seus pulsos, interrompendo a trajetória do ataque. Com os braços imobilizados a policial começou a desferir pontapés no monstro, na tentativa desesperada de desvencilhar-se. Sem se abalar, o pastor apertou-lhe as articulações dos punhos até quase esmaga-las. Ela parou de chuta-lo e soltou um gemido de dor enquanto suas mãos se abriam involuntariamente, deixando cair o facão. E foi também involuntariamente que desabou de joelhos diante de seu algoz, depois de sentir as pernas fraquejarem. O pastor a ergueu bruscamente e puxou-a para si.

___ Onde paramos mesmo? ___ Disse, exibindo as longas presas, banhadas agora por uma mistura viscosa de saliva e sangue que escorria de sua boca. ___ Ah, sim! Eu estava bebendo o seu sangue.

Ele enterrou os caninos no pescoço da delegada exatamente no mesmo lugar que havia mordido antes. Como da vez anterior a policial sentiu seu corpo paralisado enquanto sua vida era drenada vorazmente pelo pastor. Uma sensação de frio começou a subir pelos seus pés, avançando pelas pernas até toma-la por inteira. Compreendeu que estava sendo envolvida pelo abraço gélido da morte. Fechou os olhos. Não havia mais nada que pudesse fazer. Só lhe restava agora esperar pelo momento em que atravessaria a fronteira final, aquela que estabelece os limites da existência e não existência, o limiar que a conduziria a algum lugar ou ao nada. Percebeu, de repente, um estremecimento no corpo do monstro. Inesperadamente ele afastou a boca de seu pescoço ao mesmo tempo em que a soltava. A delegada foi ao chão, exangue e imobilizada pela estranha paralisia. Viu, com os olhos arregalados de espanto, um punho feminino arrombar, de dentro para fora, o peito e a camisa do pastor. Segurava o coração deste, ensanguentado e ainda batendo. A mão retornou para dentro do corpo, levando consigo o órgão pulsante. O vampiro oscilou para frente e para trás. Em sua face monstruosa e desfigurada era possível ver uma expressão mista de indecisão e agonia. Ele pendeu para o lado e em seguida foi caindo lentamente até se chocar com a superfície dura do assoalho, de onde não mais levantou.

A policial observou a vampira, em pé diante dela, segurando, com um ar vitorioso, o coração sangrento e ainda palpitante do pastor. Fechou os olhos e virou o rosto quando a criatura começou a devorar o órgão, tão rapidamente e com tamanha ânsia, que em pouco mais de um segundo já o havia engolido completamente.

Após finalmente criar coragem a delegada voltou a olhar para a vampira, e o que viu foi um rosto jovem e extremamente bonito, a despeito do sangue coagulado grudado nele, fitando-a. A mulher estava com a mão estendida na sua direção, numa indicação clara de que queria ajuda-la a se erguer do chão. A policial hesitou. Havia medo em seu rosto.

___ Vamos, não precisa ter medo de mim. ___ Disse a vampira. ___ Eu não vou lhe fazer nenhum mal.

A voz e o olhar da mulher transmitiam confiança e até uma sensação de bem-estar, o que fez com que o receio da delegada se dissipasse. Ela segurou na mão estendida, e no instante seguinte estava de pé.

___ Será que está morto mesmo? ___ Perguntou, olhando para o corpo caído do pastor, cujo rosto voltara à sua aparência humana, apesar de desfigurado e ensanguentado.

___ Pode apostar. ___ Respondeu a vampira, e virou-se para ir embora. Cruzou rapidamente a saída, passando para a área do quintal.

A delegada apressou-se em ir atrás dela. Alcançou-a no momento em que ela se preparava para transpor o muro.

___ Espere. ___ Gritou. ___ Foi você que me fez vir até aqui, não foi? Você me fez dirigir até aqui porque estava precisando de ajuda. Não foi isso?

A mulher virou-se para encara-la.

___ Foi. Desde aquele dia criou-se um elo psíquico entre nós duas. Mas fique despreocupada, eu não vou mais utiliza-lo. ___ A vampira virou-se mais uma vez para partir.

___ Me deixe ir com você. ___ Se pegou dizendo a policial. ___ Você despertou algo em mim que não sei explicar. É como se eu tivesse passado a minha vida toda te esperando. Você me fez sentir uma plenitude que nenhum homem jamais me proporcionou. Eu quero ficar com você. E não me importa se você é um demônio, vampira ou seja lá o que for. Aliás, eu fui mordida se você não percebeu. Portanto, sou como você agora. Não é assim que funciona? Esse é mais um motivo para que fiquemos juntas.

A vampira, que se conservara de costas, girou nos calcanhares e cravou na delegada os seus olhos penetrantes.

___ Você não sabe o que está dizendo. ___ Rebateu. __ Eu não posso corresponder aos seus sentimentos. Há um vazio crônico dentro de mim, incurável. Há muito tempo não consigo ter mais nenhum tipo de sentimento. Provavelmente isso tem a ver com o que eu sou. É como se eu estivesse morta por dentro. Acho que é isso que acontece quando a gente se torna um vampiro: morre por dentro. Mas, talvez tenha me restado alguma réstia de vida. Hoje, pela primeira vez em séculos, eu senti compaixão. As crianças mortas lá dentro me trouxeram a lembrança de minha filha, e todo o amor que senti por ela muito tempo atrás aflorou com toda força dentro de mim. Mas também fez surgir o ódio do carniceiro. Esses dois sentimentos, tão antagônicos, me causaram o mesmo efeito: eu me senti viva de novo.

___ Viu? Você ainda é capaz de ter sentimentos. __ Argumentou a delegada. ___ Você ainda é capaz de amar, acredite nisso. Se você me permitir eu posso te...

___ Não. Não continue. Não há a menor possibilidade de ficarmos juntas. Naquela noite o que aconteceu foi somente uma permuta de prazeres, nada mais que isso. Sinto muito se significou algo mais pra você. Ademais uma vampira deve seguir o seu caminho sozinha. Você vai entender isso mais tarde.

___ O que eu entendi é que fui usada, manipulada como uma porra de um fantoche. ___ Replicou a delegada, com indignação.

___ Todos nós somos manipulados de alguma forma. Vou te adiantar o que vai lhe acontecer. Encare como uma compensação.

Os olhos da vampira refletiram a luz da lua como os de um animal noturno. O contraste do sangue com o brilho em seu olhar dava ao seu belo rosto um aspecto assustador.

___ A única coisa que vai saciar a sua fome quando ela vier __ continuou. ___ É sangue humano, quente e direto da fonte. É a única coisa que vai te manter viva; o sol não vai te destruir, porém vai lhe causar um grande desconforto. Você será mais forte à noite. Por isso eu lhe aconselho a só agir no período noturno; a partir de agora você só terá a companhia da solidão, dos ratos, baratas, vermes e todos os seres que vivem na escuridão e na penumbra; você será obrigada a se afastar do convívio humano, porque você não é mais humana; sua vida daqui para sempre será se esgueirar pelas trevas, a espera de uma vítima para lhe servir de alimento. Você terá a eternidade, mas ela será toda em nome de uma única coisa: sangue.

A vampira deu as costas à sua interlocutora para ir embora. Virou o rosto, no entanto, e olhou uma vez mais para a policial.

___ bem-vinda ao seu próprio inferno. ___ Sentenciou. Com uma agilidade impressionante transpôs o muro e desapareceu na noite, deixando para trás uma delegada aturdida em meio ao silêncio sepulcral que se formara.