O Bicho

Uma releitura do poema de Manuel Bandeira

 


 

Eu estava caminhando calmamente pelas ruas de minha cidade após fazer as compras, ou tão calmamente quanto o caos ao redor permitia. A ficção sempre trouxe as mais assombrosas invenções na tentativa de causar-nos medo, porém não houve nenhum filme capaz de despertar tanto horror em minha pessoa quanto os eventos desses últimos dias.

 

Minha cidade foi tomada por bichos insanos e amedrontadores. Diferentemente dos zumbis, que lhe transformam em um deles pela mordida, esses selvagens nem precisam de contato físico para você estar ameaçado de ser como eles. Sua situação era muito mais contagiosa e aterrorizante para qualquer um com o mínimo de empatia.

 

Como que para confirmar meus medos e suspeitas, cruzei meu caminho com o monstro mais aterrorizante já visto. Ele tinha pouco mais de um metro e meio de comprimento, era pequeno, é verdade. Seu olhar, contudo, era capaz de compensar a falta de imponência de seu corpo visivelmente frágil.

 

Sua expressão era selvagem, insana, os olhos pulando da cara, a feição deformada, a boca fazendo uma careta e tudo isso junto de um rosnado muito esquisito, agoniado, fraco, raivoso, desolado? Um rosnado que não deveria sair desse tipo de bicho.

 

Toda sua força vinha da angústia. Ao longe, observei-o revirando o lixo, desesperado por alimento. Pegava a comida com a boca, sem nem cheirar, olhar ou hesitar. A fome tomava conta do animal, e a fome tira a razão. Quando encontrava restos de vegetais podres, carne cheia de insetos, ou até mesmo apenas ossos, sua feição esboçava um sorriso e ele devorava tudo com prazer.

 

O sofrimento daquela criatura era sem tamanho. Seus braços finos e seus ossos à mostra confundiram-me quanto a causa de meu horror: era de compaixão ou medo de acabar que nem ele? Verdade seja dita, eu não estava longe. Ninguém estava. Logo, todos da cidade seríamos atingidos por essa praga e viveríamos como aquele selvagem louco por comida.

 

Enfim fui avistado, olhei para a sacola de carnes que havia acabado de comprar com certo receio. Eu seria atacado? Voltaria para casa de mãos vazias? Deixaria de atender as necessidades alimentares de minha família? Amanhã seria eu no lugar daquele animal? Porém, em um primeiro momento, ele passou reto por mim e foi ao açougue do qual eu tinha saído há pouco.

 

Obviamente, um bicho daqueles não faria um pedido com palavras. Um grunhido incompreensível, mas digno de dó, saiu da boca do ser. O açougueiro, porém, não pareceu tão comovido quanto eu e simplesmente negou seja lá o que a fera tinha pedido enquanto apontava para uma placa:

 

“Osso é vendido, e não dado.”

 

Durante os segundos em que estava pasmo encarando aquela crueldade, o bicho finalmente enxergou os alimentos comprados por mim e partiu para o ataque. Ou seria defesa? Defesa da sua existência nessa cidade infeliz.

 

Eu não tive a menor chance de escapar, a fome possuiu aquele ser lhe dando uma força descomunal. Ver alimentos frescos, sem vermes, ativou o instinto mais primitivo de todos nós. O animal pulou em cima de meu corpo e começou a rasgar minhas roupas, me estapear, além de me morder. Nada daquilo era fatal, mas eu não poderia chamar de confortável tampouco.

 

Com vontade de ajudar, dei a sacola para ele. Graças a Deus, eu ainda tinha dinheiro para comprar mais coisa do dia seguinte, mesmo que fossem os ossos, já que entraram agora no cardápio. Não havia motivo para ser contra aquele bicho, afinal, ele não me faria nenhum mal. Não era vampiro, não era zumbi, não era fantasma, não era lobisomem, nem nada de fantasioso.

 

O bicho, meu Deus, era uma pessoa. Meu igual.

 


 

O bicho estava com fome!

E bicho com fome

Come até o osso do próprio homem!

 

(interação da poetisa Vera Mascarenhas)