Aquela era a cena que eu precisava, pra sentir que meu período escolar tinha – definitivamente – acabado. Eram 4 meninos, sendo deles, 2 atletas. Todos surravam o Rafael. No início as pancadas eram fracas. Os gritos do Rafa eram gritos de humilhação, lamúrias e choro. A escola inteira assistia o massacre. Ninguém fazia nada, ninguém se metia…muitas vezes achávamos SIM; errado, bizarro, absurdo. Mas éramos uma enorme turma de covardes…“O futuro da nação”. Vi quando Rafael levou o primeiro (com força) – pontapé no rosto. Todos viram… Aquilo. Daquele jeito… com aquela força… Poderia matá-lo. Ele se desorientou…Parecia anestesiado e em outro planeta…Os gritos da torcida eram constantes e exigentes. Queríamos outros chutes naquele rosto de menino afeminado. O problema TODO nele era isso; Era ele ser – ou aparentar que um dia seria… - um homem gay. Menino sorridente, um dançarino nato… um artista… Aos poucos foi se fechando. Andando sempre perto dos seguranças, de um monitor de corredor. Comia seu lanche calado, torcendo para não ser encontrado por nós. No dia do espancamento… Rodrigo – que sempre parecia estar pronto para surrar alguém – infelizmente topou com ele. Rafael era muito magro e além de tudo, extremamente sensível. Ele mal podia se defender sem chorar rios de lágrimas. A força dos murros e tapas me parecia diferente. Pareceram…Desesperados. Rafa não nos pertenceria mais. Ia pros EUA se ver livre de nossa ignorância. E todos sabíamos disso. Rodrigo o queria naquele avião… Mas o queria provavelmente deitado numa maca por alguns meses antes desse avião decolar. Depois do primeiro chute na cara, Rafael parou de chorar, de gritar, de prestar atenção… e eu também. Nunca mais o vi até a – débil e inútil – Festa de Reencontro das Turmas do ginásio dos anos de 97 e 98. Uma mega festa com ex-alunos das turmas de A à F. A atividade toda consistia em sentar-se numa mesa com os amigos “mais íntimos” (não haviam) e ficar lá, bebericando uísque como bons adultos que tínhamos nos tornado. Obviamente todo mundo dava um jeito de falar de sua profissão – caso fosse boa – e se não fosse, apelavam para as vidas conjugais, onde os “melhores esposos” e “melhores esposas” do mundo, aparentemente, TODOS ELES estavam naquela festa. Lá pras 3h da manhã, uma sirene tocou. E o palco se acendeu. Em cima do palco havia xícara gigante. Esperávamos que saísse alguma mulher de lá, no estilo Pin-up. Todos já estavam pra lá de bêbados e batendo palmas, mesmo com o palco ainda vazio. Foi então que o tal do Rafael apareceu outra vez. Quando o vi, pensei o quanto ele era “esquecível” pra nós. Mas não por muito tempo. Ele tinha o rosto pintado de palhaço, nariz vermelho, olhos pintados com lágrimas no estilo “Sad Clown”. Alguns murmúrios acontecendo…as pessoas demoraram um tempo pra notar que se tratava DAQUELE Rafael que teve a face chutada diversas vezes no último dia de aula… Dizem que precisou fazer cirurgia. Não confirmávamos as historias, não tivemos a menor vontade de corroborar sobre ela. Se tivesse morrido, aí sim… Os diretamente envolvidos teriam de pagar. Mas o que chegou ate nós é que ele tinha se machucado no rosto e todo nós, tentamos não pensar no assunto. Lá estava ele. Uma enorme cicatriz que ia do queijo até a passar um pouco do nariz. Aquilo foi o Rodrigo… Melhor dizendo… aquilo fomos nós. A escola. A escola, fez isso com ele, nós... fizemos isso e agora o Palhaço estava ali. Parado, nos olhando. Nos julgando… e sorrindo: “vocês gostariam de socar o meu rosto OUTRA VEZ?” - Perguntou o palhaço. Silêncio absoluto. Muitos encararam o Rodrigo – agora um famoso anestesista, rodeado por sua esposa e dois filhos, um menino e uma menina. Rodrigo abaixou a cabeça. “vocês gostariam de me chutar no outro lado do rosto, e me fazer uma cicatriz… aquiii… IGUALZINHA a essa?” - Perguntou. Eu olhei em volta procurando por alguém que tivesse se levantando e indo embora, eu não queria ser o primeiro. Ninguém queria. Ele… agora com quarenta anos, talvez um pouco mais… Raquítico, cabelos longos e grisalhos, uma barba mal feita, suado como se tivesse acordado e corrido até a nossa festa com a primeira roupa que encontrou. Rafael sorria. Conseguiu o que nenhum professor jamais conseguira… Todas as turmas juntas, e todos fazendo silêncio. Entrou naquela xícara. Pensei que fosse fazer algum tipo de dança. Havia um líquido… Um tipo de sabão escuro que fazia enormes bolhas. Rafa se deitou ali com os pés pra cima e algo foi visto em sua mão… “Aquilo… Aquilo… é uma…?” … antes que pudéssemos confirmar… e gritar… e correr… Rafael enfiou o cano da pistola na boca e apertou o gatilho. Então o agito voltou, de uma vez. Pais, mães, organizadores da festa, ex-professores, ex-diretores, todo mundo… Todos correndo como formiguinhas desorientadas com os braços pra cima ou tentando conter o pânico dos seus filhos. Eu fiquei pasmo, ali, sozinho, sentado e olhando a cena. A escola também não tinha sido lá, graaande coisa pra mim sabe… Eu estava odiando aquele evento desde muitos dias antes de estar lá. E agora eu via “O Palhaço” Rafael… caído numa xícara gigante. Num poço de sabão com sangue e pedaços de miolos. Seu rosto estourado transformou-se em algo impossível de decifrar. Senti uma dor fina na testa. E logo depois… olhei novamente as pessoas correndo. Tive uma crise de riso… Em seu 1o e ÚLTIMO número! O Palhaço Rafael; cuja infância tinha sido DESTRUÍDA por muitos de nós presentes na festa; ELE! Em seu 1o número, conseguiu traumatizar TODOS os filhos de todos os casais de ex-alunos de quase todas as turmas de nossa época. Com um único movimento. Nós, incompetentes… Precisamos de muiiitos movimentos para destruir a vida de Rafa. E ainda assim…Acho que não conseguimos. Não exatamente…

 

“Dizer que me abandonaste seria injusto,

mas dizer que estava abandonado e, no

momento, terrivelmente abandonado, isso é

verdade.” (Franz Kafka)

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 02/12/2021
Código do texto: T7398552
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