Na sombra de Clarisse - CLTS 17

— Conte-me o que aconteceu:

— Aqueles olhos vermelhos nunca me assustaram, sempre a segui em todos os lugares. Eu a amo do fundo do meu coração. Suponho que sou a única. As crianças tinham medo do que ela parecia, grande, na verdade, muito grande. Viviam debochando da Clarisse. Eu nunca fiz isso, somos e seremos amigas para sempre. Faço tudo por ela, bem, quase tudo.

O reflexo nos vidros, demonstravam os olhos chorosos, face triste, fúnebre e internamente melancólico. Nunca fomos populares em nenhum sentido. Alguns excluídos usam essa situação para tornarem-se melhores nos estudos. Eu me esforçava, Clarisse não. Inclusive tentava fazer-me abandonar tudo. Os professores não a notavam, nunca a questionavam, parecia ser uma sombra que apenas participava das aulas.

Nunca descobri onde ela mora, sempre tão perto de mim, porém, nosso contato diário é no caminho da escola, ali começa nossa união. Ela sempre conta seus planos macabros e eu apenas rio, nunca pensei que teria coragem para tal ato. Até acontecer.

Nossos dias são comuns, ficamos juntas o tempo todo, conversamos muito principalmente quando estamos isoladas do resto. Quando há mais pessoas, preferimos ficar apenas nos gestos.

Nosso ponto de encontro é na bifurcação a menos de um quilometro da escola, nos cumprimentamos com aceno simples de cabeça, sem muitas firulas e abraços. Por mais assustadores que sejam, seus olhos me encantam, me convencem, talvez eu esteja apaixonada. Combinamos em muitas coisas, mesma idade, roupas pretas, isolamento do mundo... Se não fosse a escola, penso que não falaria com mais ninguém além dela.

De tudo que falamos, ela nunca revelou como faria, por esse motivo eu apenas silencio. Ela chora copiosamente, fico triste por ela. Eu sou a metade forte da relação. Nunca vi felicidade em seu semblante, nunca esboça um sorriso se quer e, a tristeza paira tão forte ao nosso redor que meus poucos pelos ouriçam a cada palavra diabólica dita por ela. São ditas apenas para mim, e são muitas.

Clarisse dizia que mataria todos e eu sempre pedia calma, mesmo sem saber quem eram esses “todos”. Isso era o que eu mais escutava e o que eu mais respondia. Como eu disse, é minha grande amiga. Ela não gosta quando a chamo de grande.

Hoje o dia começou estranho, levantei da cama um pouco zonza e triste, vesti o uniforme ridículo da escola e saí sem tomar café. Minha mãe parecia mais velha que o normal, tentou falar algo, mas pensei que seria algum tipo de bronca e dei de ombros. Como sempre, encontrei Clarisse no mesmo lugar, cumprimento a distância e caminhamos até a escola. Clarisse, o silêncio e eu, três amigos inseparáveis. Na chegada, percebi que todos olhavam apenas para mim. Eu que fui sempre a sombra de Clarisse, estava sendo protagonista. Não entendia a razão, talvez fosse porque eu era única a andar com ela. Apenas mirei cada um que desferia alguma palavra contra nós. Muitos eram de nossa classe, no entanto, não sabíamos nem o nome deles.

Percebi que Clarisse arregalava aqueles lindos olhos vermelhos, dava para ver a raiva sair por seus poros, e o mais impressionante é o poder que ela tem de não se abalar com essas situações, parece ser outra pessoa ou entrar em transe profundo enquanto escuta os xingamentos e zombarias direcionadas a ela. Por fora parecia não sentir nada, mas seus olhos denunciavam que a qualquer momento iria explodir.

No meio da aula, víamos imagens de animais em um projetor. Estava aparentemente calmo e quieto, até uma girafa aparecer na tela. Alguém a olhou e apontou para o animal. Clarisse bateu as duas mãos na mesa e levantou-se, saindo da sala quase que correndo. Eu levantei para acompanhá-la, mas preferi ficar sentada. Por mais nervosa que ela estivesse, naquele momento eu não poderia fazer nada. Clarisse saiu sem dizer uma palavra se quer.

Seu caderno ficou em minha frente, abri a capa, nunca havia feito isso, respeitava a privacidade da minha amiga, às vezes até por um pouco de medo. Em todas as linhas da primeira folha estava escrito: “vou matá-los”. Folheei mais algumas páginas e a frase se repetia em todas as folhas. Clarisse voltou mais calma, fechei o caderno rapidamente. Os olhos estavam mais vermelhos, no entanto, no reflexo do vidro, percebia-se um atípico sorriso de canto de boca. Gesto estranho.

Perguntei se estava bem, ela apenas meneou a cabeça dizendo sim. A pergunta foi sem sentido, Clarisse sempre estava bem, às vezes esquecia quem de nós precisava de ajuda, era uma roda gigante de emoções, mas os olhos vermelhos eram dela. Criei coragem e perguntei baixinho se realmente ela queria matá-los. Respondeu que sim e seria hoje mesmo e completou dizendo que eles eram os culpados por ela ser assim, não aguentava mais os gritos e perguntas sem sentido.

Clarisse abriu a mochila e me mostrou o punhal que dizia ter sido herança do seu avô. Era lindo, com pedras vermelhas no cabo prateado. Eu jurei que já havia visto aquela coisa, mas com certeza, não. Nunca mexi com nenhum tipo de arma. Meu corpo paralisou e eu gelei, aquela sensação de que algo ruim realmente iria acontecer invadiu meu interior.

Imaginei naquele momento, Clarisse levantando e esfaqueando todos que estavam na sala sem ressentimento algum. Alguns já estavam deitados, pareciam descansar, outros comiam fazendo barulho, algo que a deixava desnorteada e aumentava o ritmo e o brolho do cabo prateado sendo erguido a abaixado a cada golpe. Depois de poucos minutos, os corpos estavam ensanguentados, um sobre o outro, alguém gritava do outro lado da porta que Clarisse teria trancado por dentro. Eram muitos, porém a força absurda que vinha da minha amiga era muito maior. Minha grande amiga.

As mesas rolavam, uma sobre a outra, o projetor caído no chão e as patas das cadeiras enfiadas nos corpos. Muito sangue mesmo, parecia um tapete vermelho indicando o palco para Clarisse. Era seu show.

Aquilo foi atordoante, corri até a porta que estava trancada, mas inacreditavelmente a chave estava em minha mão esquerda, a abri e corri o mais rápido que consegui. Outras professoras tentaram me segurar, talvez para me acalmar, mas fui mais rápida. Senti uns arranhões nos braços, ninguém conseguiu me impedir. Corri mais ainda quando percebi que Clarisse me perseguia, talvez querendo se justificar ou me matar também.

Quando me alcançou, apenas pedia para me acalmar. Eu falei a ela que não conseguia ficar calma após ter imaginado tudo que ela faria, e que também não gostaria de estar presente. Pedi por favor, que ela não o fizesse.

Ela respondeu que não havia feito nada e que também não faria. Mentiu. Eu perguntei se era o que ela queria fazer. Ela respondeu “Talvez”. Achei estranho aquele sorriso e o tom irônico que ela usou e disse que voltaria para casa.

Meus pais não haviam chegado, fiquei sozinha em meu quarto analisando as palavras de Clarisse.

Acredito que acabei dormindo. Fui acordada por minha mãe que entrou bruscamente em meu quarto. Assim que fixei meus olhos nos dela, mamãe começou a chorar copiosamente. Tive certeza de que Clarisse executara o seu plano e eu não fiz nada para impedir. Tentei confirmar com minha mãe, mas ela virou as costas e saiu. Em seguida, entraram os dois policiais. O primeiro parecia chocado com o que via, o outro pedia calma e pegava minha mochila. Um terceiro entrou com uma arma apontando direto para meu rosto. Um absurdo. Percebi que a mochila não era a minha, talvez troquei com ela quando saí apressadamente da escola. O policial retirou a faca de dentro e comentou com o outro que era a arma do crime. Eu tentei manter a calma e disse ser da Clarisse.

Perguntei se já haviam a encontrado e queria saber como ela estava.

Ele perguntou como era meu nome, mas estranhamente não consegui responder.

Olhei para o espelho, meu rosto estava completamente ensanguentado, não entendi o porquê, mas pensei que talvez não tenha imaginado tudo aquilo e Clarisse tenha feito tudo comigo na sala me deixando em algum tipo de transe. Colocaram essas algemas em meus pulsos e me trouxeram para essa sala. A senhora tem que acreditar, foi tudo arquitetado e executado pela Clarisse. Ela planejava isso há muito tempo, iria se vingar de tudo que faziam com ela. Sei que o que fez foi errado e não concordo com o que ela fez, mas é a mais pura verdade.

— Como é seu nome?

— Por que essa pergunta agora? Vocês me arrastaram para esse lugar.

— Olhe esse espelho e me diga o que vê.

— Vejo a Clarisse com os olhos vermelhos e com a cara triste de sempre.

— Quem é você?

— Sou professora.

— Para quem você leciona?

— Minhas crianças lindas, é claro.

— Qual a média de idade?

— De três a cinco anos.

— De quem é o caderno com as frases?

— Da Clarisse, eu já disse!

— De quem é o punhal?

— Do avô de Clarisse. Por que tantas perguntas?

— Quem matou todas aquelas crianças?

— Com certeza... Clarisse.

— Como é seu nome, professora?

— Clarisse

Tema - Veneração

Lucas Baltra
Enviado por Lucas Baltra em 03/12/2021
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