O ESCRITOR FANTASMA.

Ernest subiu na cadeira e soltou um grito. Ele fechou o notebook e deu um soco no ar, como um jogador de futebol ao fazer um gol. No caso dele, um golaço. A empregada venezuelana veio da cozinha. -"Tudo bem senhor Ernest?" Ele a abraçou. Um beijo na face da senhora com avental. -"Consuelo. Terminei minha obra prima. O último capítulo de Piratas do Apocalipse acabou. Será um livro primoroso." A mulher colocou a cadeira no lugar. -"Será sim, se Deus quiser. Que bom que terminou pois o senhor só fala desse livro que escreve há treze longos anos." De fato, Ernest se dedicou muito ao projeto. Após alguns fracassados livretos de poesia, ele decidiu enveredar pelo mundo da ficção e realismo fantástico. Passava horas na biblioteca da pequena Greenville devorando livros de escritores famosos, especialmente russos. -"Quero escrever algo grande, uma mistura de O Senhor dos Anéis, Os Miseráveis e Piratas do Caribe com uma pitada de terror." Dizia aos amigos. A antiga máquina de escrever foi substituída pelo notebook. Ernest escreveu os primeiros capítulos a mão. O quarto cheio de folhas amassadas. Uma caixa de canetas esferográficas. Muitos títulos descartados. A história mudava a todo momento. -"Não está bom. Muito parecido com O Conde de Monte Cristo, vai soar como plágio. Lorde Morfeu fica rico e foge para o Brasil, onde vive uma vida nababesca num hotel de luxo em Copacabana, ninguém suspeita que ele é um vampiro. Puxa, esse final vai chocar." O seu primo Steve o convenceu a mudar o estilo da obra. -"Cara, inventa um mundo paralelo, com elfos e gnomos. Escreve pra juventude pois é o que vende." Ernest mudou o roteiro. Passou a assinar E.J. Smith. -"Quem é esse E.J. Smith?" O escritor se explicou. -"Sou eu, Lincoln. Agora a moda é abreviação dos primeiros nomes dos escritores, dá um charme, entendeu?" Lincoln, seu professor de piano, o repreendeu. -"Não sei. Li seus primeiros capítulos e achei confuso. Tenta direcionar, mantenha uma linha racional, Ernest. Olha, não está ruim mas também não é um estouro." Ernest foi pra casa desolado. Consuelo percebeu sua tristeza. O escritor se abriu. -"Senhor, seu amigo disse a verdade. Seu livro é bom. Certa vez, um avião caiu na selva, na Venezuela. Os quatro jovens sobreviventes lutaram pela vida durante três semanas até que alguém os encontrasse. Eles relataram o inferno e perigos que passaram. Um deles surtou e quis matar os outros. Eles brigavam entre si." Ernest prestou atenção na história. -"Eles foram encontrados, feridos mas vivos. Ficaram famosos e, anos depois, viraram empresários de sucesso." Ernest ergueu os braços. -"O que tem a ver comigo, Consuelo?" A mulher pegou os originais do livro nas mãos. -"Tudo tem um norte, uma solução. Após as dificuldades vêm a bonança, a glória. Às vezes a solução está mais perto que imagina. Esse livro será um sucesso." Ernest se ajeitou na poltrona. -"Verdade. Me conte mais histórias de seu país, minha cara." Consuelo passou horas contando fatos de sua família e de seu país. Era incrível como pouco sabia daquela mulher que há décadas trabalhava pra ele. A mulher de quarenta janeiros tinha uma vida humilde e difícil, com quatro filhos pra cuidar. Ernest dormiu e sonhou com aquelas histórias de Consuelo. A manhã chuvosa e o cheiro de café indicavam que o dia seria especial. Consuelo deixara o café pronto e tinha ido a feira. Ernest abriu o notebook e começou a escrever. Consuelo não o interrompeu. Era meio dia quando ela bateu na porta, chamando o patrão para o almoço. -"Vou indo, tenho que levar o Dylan ao médico." Ernest se despediu. -"Grato por tudo, minha cara. Estou quase no final. Amanhã eu lhe mostrarei o livro." Consuelo pousou a mão no ombro de Ernest. -"Fico feliz, senhor Ernest. Será um sucesso o nosso livro." No dia seguinte, após vibrar com a última frase de seu livro e impressionar Consuelo, Ernest ligou para alguns amigos. -"Terminei o livro. Final mirabolante e surpreendente. Será um sucesso." Repetia aos amigos. O amigo Bernard o indicou a alguns redatores. Ernest se vestiu para se encontrar com Bernard. -"Tenho que comprar leite e frutas, senhor Ernest. Depois vou ver meu marido na penitenciária." Consuelo acenou para o patrão que entrava no velho Cadillac azul. Ernest ligou para Bernard. -"Estou a caminho. Já estou com o livro salvo no note. Chego logo." A estrada cercada pela floresta. As curvas. O carro em alta velocidade. Ernest pisou no freio ao ver um caminhão a sua frente. Os freios não obedeceram. Ernest se apavorou. Ele suava frio. Olhos arregalados. -"Meu Deus, o que está acontecendo?" Ele desviou do caminhão, indo pra pista contrária. Um carro na sua direção. Ernest buzinou e entrou no acostamento. Um alívio momentâneo. O carro não parava e ele tentou voltar a estrada mas seu veículo sofreu um impacto traseiro. Ernest sentiu e olhou o retrovisor. Alguém queria tirar seu carro da estrada. Várias batidas depois, seu carro desceu o penhasco, capotando várias vezes e só parando numa árvore. Ernest estava morto, de cabeça pra baixo e preso ao cinto. A tarde caiu. Um vulto se aproximou do carro. As mãos com luvas pretas pegaram o notebook. -"Obrigado, meu amigo. " Ernest, sem noção de tempo, chegou em casa. -"Consuelo. Levei o livro ao Bernard. Nossa amiga Katya fará a correção." Ele foi a cozinha. Uma moça estranha temperava uma salada de brócolis. -"Consuelo. Odeio brócolis." Um homem entrou e beijou a mulher. Duas crianças com uniformes escolares. -"Consuelo. O que essa gente faz na minha casa? Gatos? Sou alérgico." Eram outros móveis. O mesmo endereço mas a casa era muito diferente. Ernest decidiu andar pela vizinhança. A banca de jornais, a lanchonete que frequentava. A livraria do amigo Stuart. Ernest sentiu a cabeça girar. Ele caiu. Um banner enorme na porta da livraria. -"O que é isso? Guerreiros do Apocalipse?!?! Uma obra fantástica de C.B. Gonzalez?" Ernest estava irado. Ele entrou e viu a fila de pessoas para comprar o livro. -"Foi aclamação de crítica, elogiado pelo The New York Times e vendeu quinze milhões de cópias só no Brasil." Disse um rapaz a uma moça. Ernest folheou o livro. -"Nora Roberts disse que gostaria de ter escrito esse livro, o que é um elogio e tanto." Comentou uma mulher. Ernest sentiu raiva. -"É o meu livro. Gente, esse livro é meu." Ele era ignorado pois ninguém o via nem o escutava. -"C.B.Gonzalez? Consuelo tem o sobrenome Gonzalez, foi ela. Me matou e publicou o livro. Que filha da puta. Ainda deixei a casa pra ela no testamento. Idiota." Ernest foi até a periferia. Consuelo e a família tinham se mudado. -"Lógico. Está milionária com as vendas do meu best seller. Ela disse, nosso livro. Disso me lembro bem. Nosso o escambau." Ernest sentiu raiva e fechou os olhos. Se viu na Venezuela, numa casa humilde. -"Consuelo?" A mulher se arrepiou. -"Senhor Ernest? Onde estiver, fique em paz. Vou sempre lembrar com carinho de você. Alguém mexeu no seu carro e seu computador desapareceu. Essa série da Netflix é muito parecida com seu livro. Seu sobrinho, Timoty, conseguiu mudar o testamento e tirou a casa de mim. Não guardo mágoas. Aqui sou feliz." Ernest ficou triste. -"Se não foi ela, quem foi que me matou?" Ernest foi até a casa de Timoty. O sobrinho estava na mesma casa, no mesmo emprego humilde. Ernest, frustrado e ansioso por vingança, procurou Bernard. Descobriu que o amigo tinha deixado uma carta de despedida e se jogado de uma ponte. Ernest procurou por todos os amigos. -"Lincoln, foi ele. Ambicioso e invejoso, me matou e roubou minha obra." Ernest pensou no amigo e logo estava na Europa, na Costa Malfitana. Um resort luxuoso. Lincoln e a esposa saíram de um iate e entraram num Porsche. A mulher com jóias caras e vestido de grife. Lincoln sorria e trazia um livro na mão. -"Pobre Ernest. Morreu e não soube que lançaram seu livro com outro título." O fantasma de Ernest avançou sobre Lincoln. As mãos de Ernest tentavam enforcar o outro. Lincoln sentiu tontura e falta de ar. -"Morra, maldito. Você me matou." Ernest parou ao ouvir a esposa do amigo. -"Não morra, querido. Ganhamos na loteria e temos que curtir a vida." Um médico passava por ali e socorreu Lincoln. Ernest ficou aliviado. -"Se não foi Lincoln, quem foi?" Ernest sentiu uma mão em seu ombro. Era o espírito de Bernard. -"Olá, Ernest. Enfim o encontrei." Ernest ficou horrorizado com o estado do amigo. -"Bernard. Me mataram e me roubaram. Publicaram o livro com outro título." Bernard se virou. O fantasma andou por uma estrada de terra. Ernest o seguiu. Uma mansão abandonada no alto de um morro. Bernard fez sinal para Ernest. -"C.B. Gonzalez está alí." Ernest estava curioso. -"Carl Barrington Gonzalez, um escritor medíocre, nascido em 1733. Insatisfeito com sua condição financeira, passou a roubar e plagiar obras de outros autores. Ele foi morto por outro escritor, nessa mansão que era a sede da liga dos escritores. Ele entrou na minha mente e me fez roubar sua obra. Eu a publiquei com o nome dele. C.B.Gonzalez agora é famoso, ainda que postumamente. " Ernest e Bernard entraram na mansão. Uma escada de madeira levava ao segundo andar. O vento soprava forte. De repente, a casa mudou de ruínas para um lugar luxuoso e elegante. Os móveis apareceram como há séculos, impecáveis. Pessoas se materializaram e dançavam ao som de um piano. Os escritores reunidos, comentando sobre suas obras. Um mordomo elegante veio até Ernest e Bernard. -"Sejam bem vindos a academia, senhores. O senhor C.B. Gonzalez os espera no mezanino." Um homem de fraque os esperava. -"Senhores. Faço desse instante um tempo propício de prazer e bonança pois prezo em conhecer figuras tão distintas. Prazer, sou Carl. " Ernest não o cumprimentou. -"Ladrão descarado. Devolva minha obra." Carl deu uma gargalhada sinistra. -"Sua obra? Ladrão, eu?! Tu fizeste um balaio de gatos, misturando várias obras e trechos de outros autores, plagiando personagem aqui e alí. Vem na minha academia e me chama de canalha?" Bernard tentou acalmar os ânimos. -"Eu o inspirei, senhor Ernest. Entrei no seu sonho e o inspirei a escrever. Sua obra não seria nada sem minha ajuda." Ernest recordou que, antes de sua morte, acordara com inspiração nunca antes vista. Na manhã seguinte, escreveu muito, como nunca tinha escrito antes. Ernest gritou. Consuelo bateu na porta, assustada. O rapaz estava pálido. Olhar perdido no horizonte. A mulher abriu a janela e encheu um copo com água. -"Seu remédio das nove horas, senhor Ernest. Está um lindo dia lá fora. Hoje teremos frango e polenta no almoço." Ernest olhou sério pra mulher. -"Consuelo. Meu livro. Tenho que escrever." A mulher sorriu. -"Não é permitido aos internos uso de lápis ou canetas, sabe disso. " Dois enfermeiros entraram e colocaram a camisa de força no rapaz. -"Sempre me chama de Consuelo, tadinho. Pensa que sou a empregada dele." Ernest entrou na fila de pacientes do hospital psiquiátrico e caminhou até o pátio. Ficava horas sentado no banco do jardim, apreciando as borboletas nas flores. Um homem elegante se aproximou. O homem sentou-se ao lado de Ernest. -"Olá, meu bom amigo. Trouxe marshmallow escondido pra você." Ernest sorriu. O homem colocou as guloseimas no bolso da calça de Ernest. -"Não sou louco. Não sou." O homem tirou um lenço e limpou a boca de Ernest. -"Logicamente que não. Longe disso, meu caro colega escritor. A academia está estudando o seu nome para uma das cadeiras de imortais. É pouco tempo e terá o merecimento que lhe cabe. Suas obras são estupendas, Ernest. Mais um capítulo de Piratas do Apocalipse?" Ernest contou ao homem sobre o capítulo que tinha em mente. Duas horas depois, o homem se despediu. -"Tenho que ir. Que bom escutar um gênio da literatura. Obrigado por essas horas incríveis, meu amigo. Pedirei a direção que o coloque numa cela melhor, com frigobar talvez." O homem cumprimentou Ernest. -"Tem um pijama novo e chinelos na recepção. Presente pra você, meu amigo. Até mais." Ernest sorriu. O homem enveredou pelos corredores do hospital até a saída. Uma mulher o esperava. -"Pegou tudo, Gilbert? Usou o gravador? Conseguiu o último capítulo do livro do louco?" Bernard fez uma careta. -"Não o chame assim, Consuelo. Nossa mina de ouro merece respeito pois é o quarto livro de sucesso que nos dá, de mão beijada. Estamos ricos graças a ele. Tadinho, insiste em me chamar de Bernard." O casal entrou na limusine e se foi. Ernest se mexeu quando o guarda apagou as luzes do hospital. O sono não vinha. O remédio da injeção começou a fazer efeito. Ernest adormeceu. -"Acorda, imbecil. Aquele cara te enganou de novo. Está publicando seu livro. Ele saiu da prisão. Consuelo, sua antiga empregada foi quem o colocou aqui no manicômio. Ela tem seus originais, seus poemas e textos antigos que você nunca publicou." Ernest se virou na cama. -"Não acredito em você, Carl. Você sempre foi um escritor medíocre e incapaz. Desconhecido do mundo." Carl deu uma gargalhada. -"Engano seu. Eles usaram minhas iniciais, C.B. Gonzalez, sabia? Sou famoso agora." Ernest encarou o fantasma. -"Me deixa dormir, Carl." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 04/12/2021
Reeditado em 05/12/2021
Código do texto: T7399924
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