EFEITO PLACEBO - CLTS17

Dói-me tanto quando meu bebê se vai. Esta foi só mais uma, e tenho a infeliz certeza de que não será última. Os bracinhos finos vivem roxos de tantas agulhadas, o aspecto doente e suas olheiras fundas de tantas lágrimas e noites mal dormidas longe de casa, entristecem minha vida.

Depois daquele triste dia, nunca mais as coisas foram como antes. Lembro como se fosse hoje, na realidade poderia reproduzir em detalhes tudo o que aconteceu. O cheiro da morte habitava minha casa e minha família precisou aprender a conviver com isso. Quando vi minha pequena Anne com os olhos vendados e seu corpo desfalecido no chão ao lado de sua pequena cama, sabia que as coisas mudariam e elas mudaram. Passaram cinco anos dessa tragédia que todos tentam esquecer, no entanto, revivo essa cena a todo momento. Ainda guardo o lençol de Patrick que estava enrolado no pescoço da minha linda bebê. Eu sei que parece mórbido, mas o que não é, nessa minha história? Patrick hoje com nove anos, vive cinco deles tendo que lidar com coisas que não tem consciência. Meus amorosos gêmeos separados de uma forma tão violenta e sem explicação.

Não me importo com o que o resto da família pensa, ele é apenas uma criança e eu vou protegê-lo para que ele sempre retorne para casa. Desde aquela tarde de um outono cinza, Patrick foi internado dezenas de vezes, os médicos dizem que essa categoria de anomalia não possui cura, visto que as síndromes são desenvolvidas com o portador e podem ter causas relacionadas a alteração cromossômica ou mutação genética. Na minha cabeça não existe nada disso, ele é meu filho e sempre voltará. Quero e preciso dele aqui.

Segundo os especialistas, é um quadro de psicopatia. Chegaram a essa conclusão, devido aos inúmeros acontecimentos em suas voltas para casa.

Antes da partida de Anne, eles eram vistos como normais, exceto pelo fato de Anne ser uma metralhadora de palavras e Patrick em completa mudez. Notamos sua condição, com menos de um ano. Anne respondia com balbucias e olhares quando chamada, Patrick era alheio aos sons externos, absolutamente surdo. Suprimindo este detalhe, nunca foi observado nada de diferente em Anne e nem em Patrick. Os gêmeos tinham apenas quatro aninhos de idade, eram saudáveis, brincalhões, espertos e aprontavam bastante como qualquer criança dessa idade. Ainda posso ver o rostinho de Anne com aqueles olhinhos apertados contra o Sol, cabelos castanhos escorridos pelos ombros, sentada na escada da varanda da frente jogando migalhas aos pássaros, enquanto Patrick corria pátio afora com um galho empunhado em sua mão como se fosse uma grande espada, dizendo ser um guerreiro e afugentando assim os pássaros de Anne. Às vezes os dois se desentendiam, Patrick por ser menino, maior e mais forte derrubou Anne algumas vezes com suas brincadeiras de empurrões e lutas, em uma delas ela até se feriu na cabeça.

Alguns parentes que frequentam a nossa casa, naquela época falavam que eu devia controlá-los e educá-los, já que meu marido trabalhava muito e passava grande parte do tempo fora. Falavam que Patrick não deveria bater na irmã por ser menina e por ser mais frágil. Quem lhes disse que as mulheres são mais frágeis? O que Anne não tinha de força compensava em esperteza e inteligência, volta e meia pregava peças no irmão, sendo até um pouco maldosa às vezes. Uma vez aparentemente por vingança por uma de suas sapequices de menino, Anne aprendeu onde eu guardava as pimentas que usava como tempero e as colocou no copo de suco do Patrick. Ele passou mal.

Como seria ter Anne crescendo aqui em casa? Dizem que as meninas são mais difíceis que os meninos, geniosas e manipuladoras. Nunca saberei.

Cheguei a repreendê-los algumas vezes quando meus parentes estavam em casa, mas quando iam embora, até que eu me divertia os assistindo.

Dizem os Psiquiatras, que todas as coisas podem ser indícios, detalhes como comportamentos e olhares. Dizem ainda, que os psicopatas têm essa condição genética e que são capazes de conviver em sociedade durante toda a vida e usar de seu calculismo e frieza para manipular, ganhar vantagens, serem violentos ou até coisas piores e, que talvez isso nunca aconteça, também é uma possibilidade. Mas como eles poderiam descobrir algo desse tipo em crianças tão pequenas? A medicina não soube dizer. Apesar de tantos anos terem se passado, diversos procedimentos, várias tentativas de explicação, tantos exames, os médicos ainda não conseguem explicar nada com certeza. Apenas dizem que tudo é imprevisão e nada é certo. A mente humana é um mistério. Os sintomas e comportamentos podem ser absolutamente diferentes de pessoa para pessoa. Ninguém sabe o que esperar de alguém assim e nem em que idade poderá se manifestar a psicopatia ou não, ou sequer identifica-la ao longo da vida.

Eu continuo afirmando que não acredito em nada disso, Patrick é totalmente normal.

Quando meu marido e eu soubemos estarmos esperando os gêmeos resolvemos mudar nossa vida agitada da cidade grande, por uma vida mais tranquila, mais retirada da zona central. Uma casa branca e espaçosa, com imenso pátio rodeado por muitas árvores, vizinhança tranquila e segurança, afinal não sabemos quem são as pessoas que podem nos ferir ou fazer mal.

Enfim, todo o suporte que crianças precisam para se desenvolver bem. Nossa família adorou a ideia de nos mudarmos para próximo deles, e nossa casa sempre contou e conta com suas presenças. Percebo por diversas vezes os olhares de pena que eles nos lançam, principalmente para mim, “pobre mãe, perdeu uma filha e o outro filho desse jeito, de hospital em hospital e por tanto tempo longe’. E em outros, vejo os olhares de julgamento como se dissessem: "Como ela pode querer Patrick em nossa convivência? ”. A resposta é muito simples preciso do Patrick aqui comigo, ele é tudo que eu tenho e não devo culpá-lo pelo que aconteceu, nunca o fiz.

Logo após a tragédia familiar, Patrick ficou abalado, chorava muito, e a cada questionamento dos médicos, mesmo sem entender o que lhe era dito, ele apenas balançava a cabeça negativamente. Sim, foi exatamente isso que eu disse, Patrick com nove anos não nos entende direito. Ele não foi para a escola regular, a morte da irmã aconteceu justamente no momento em que ambos iriam ingressar e após, o diagnóstico de Patrick tornou isso impossível, ninguém o queria por perto.

Como era eu quem ficava com eles em casa mesmo antes da idade escolar, fui encarregada de ensinar a linguagem de sinais para ambos. Não deu certo, não sou boa com isso.

As tantas idas e vindas, dificultaram seu aprendizado. Ele basicamente apontava para as coisas, nos mostrava o que queria e gesticulava para nos esclarecer. Emburrava-se ao não ser entendido e muitas vezes desistia. É muito confuso até hoje.

Eu tentei acalmá-lo, mas sua agitação quanto à movimentação daquele dia o transtornava. Eu fiz muita força para Patrick ficar, mas meu marido e minha família insistiram que ele deveria se tratar. Era evidente o receio quanto a integridade do resto de nós, apenas adultos nos visitavam. Ai então começaram os exames e perduram até hoje. Não foi imediata a primeira ida, consegui que o deixassem comigo até que se acostumasse com a ausência da irmã, no entanto, quando Patrick está em casa, coisas estranhas voltam a acontecer, como na época já aconteciam. No início, algumas de nossas roupas apareciam destruídas pela casa, sapatos sumiam e nunca mais voltavam, louças quebradas e com cacos de vidros espalhados por todos os cantos. Depois os brinquedos pareciam ser colocados estrategicamente nas escadas para alguém cair.

As situações foram tomando outras proporções. Certa vez o cachorro de nossa vizinha mais próxima que costumava brincar com Patrick em nosso quintal, apareceu enforcado em nossa varanda, esse foi o primeiro. Os animais eram seus principais alvos e o método mudou, tinham suas cabeças esmagadas por pedregulhos, pássaros, cachorros, gatos e até mesmo pequenos roedores. Tudo que ele conseguisse caçar. Os cadáveres eram descobertos, quando Patrick acordava pela manhã, coberto de sangue e normalmente com os corpos espalhados pelo chão de seu quarto. Acordava assustado e chorava desesperado, corria e ainda corre até nosso quarto, como se não soubesse do que se trava. Surtos psicóticos, os doutores disseram.

Devido aos acontecidos aleguei aos médicos ter dificuldade para dormir e acabaram por me receitar alguns antidepressivos e sedativos potentes, meu marido também passou a tomar remédios para ansiedade e antidepressivos. Todos, com prescrição e muitas restrições. Por diversas vezes Patrick fez uso dessa medicação por conta própria, quando deitávamos para dormir. Por mais que meu esposo esconda, ele sempre encontra. Começamos a perceber que às vezes ele deitava para dormir e ficava dois dias dormindo, eram os remédios, e lá retornava Patrick para o Hospital.

Outras vezes além dos remédios ingeridos, percebemos cortes nos braços e pernas de Patrick, manchas roxas pelo corpo, lesões. Os psiquiatras diziam a minha família que isto podia ser uma tentativa de chamar a atenção. Eu lhe dava atenção sempre, o tempo inteiro, até mesmo enquanto dormia. Em outra ocasião meu esposo percebeu um gosto diferente na comida e por bem pouco, outra tragédia não acontece, pois, Patrick havia colocado veneno de rato que usávamos nos bueiros do pátio, em seu prato. Patrick nunca era pego.

Enquanto ele crescia, a família acreditava que se tornava cada vez mais perigoso para ele mesmo e os demais. A cada novo episódio, o pequeno é levado, primeiramente hospitalizado para realização de lavagens estomacais, desintoxicação e tratamentos. Muitas vezes após, era encaminhado a clínicas especializadas para permanecer durante algum tempo. Eu chamo de hospício. Pobre criança! Patrick aparentemente se machucava muito enquanto quebrava as coisas em casa.

Patrick fica meses fora de casa. Sei que passa muito tempo sedado, é para sua própria segurança. Mas para mim, é muito difícil sem o pequeno por aqui. Todos dizem que eu preciso entender, e eu sei, entendo, quem não entende são eles. Patrick tem que estar onde é o lugar dele e vou sempre fazer de tudo para que volte para cá.

No entanto, o pequenino está crescendo, o enfermeiro responsável por ele nos informou que ele já possui idade para frequentar uma ala especialmente adaptada para surdos, e que assim aprenderá a se comunicar com o mundo exterior. Talvez as coisas mudem novamente.

Eu fico questionando muitas coisas desde o nascimento dos gêmeos, ao longo desses anos, ao longo do tratamento e em relação aos “indícios” segundo os médicos. Pergunto-me se a medicina sabe realmente do que ela está falando, me pergunto se os psiquiatras realmente entendem aquilo que eles estão "Tratando”. Pergunto-me até onde o ser humano acredita estar certo e até aonde realmente ele está. Pergunto-me se alguém tem certeza de algo, ou se são apenas deduções. São muitos os questionamentos.

Eles sabem ou eles acreditam? Dentre tantas coisas que eu me pergunto, uma delas nunca sai da minha cabeça cada vez que olho em seus olhos, como eles nunca se questionaram de que forma uma criança de 4 anos conseguiria enforcar a irmã da mesma idade e tamanho?

Enquanto isso, eu aguardo. Pois, a única coisa verdadeira, é a que somente posso ser eu, com Patrick aqui.