A REVOLUÇÃO DOS TOMATES - CLTS 17

No início dos tempos, a besta humana se esgueirou da lama em busca de abrigo nas frias cavernas, desde então se multiplicou desordenadamente infectando o planeta, colocando em risco qualquer outra forma de vida.

Ao subverter a natureza com seus polegares opositores, os seres bípedes modificavam o ecossistema enquanto caminhavam rumo ao desenvolvimento. Florestas foram transformadas em desertos, vales e rios foram soterrados criando espaço à magnificas cidades que depois de expandirem-se rumo ao horizonte tocaram as nuvens.

O frio e fogo os moldavam, muito cedo eram a únicas criaturas a estar presente em toda parte do planeta. Nenhuma força da natureza parecia impedir tal avanço, acreditava-se que para derrotar o homem somente outro seu igual seria capaz. A humanidade causaria a próxima grande extinção.

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No quadro branco do refeitório estava escrito:

“Acompanhamento – Salada de tomates”.

A muito aquelas palavras não faziam mais sentido, porém como um fantasma assombravam os residentes da estação.

Elenice segurava a colher entre os dedos. Os movimentos rítmicos acelerados deformavam o talher que sem esforço tornava-se maleável vergando segundo sua vontade. Ela não possuía poderes mágicos, apenas brincava com efeitos visuais.

Gustaff sentou-se a seu lado. O clima tenso possuía uma aurea maligna.

- Não gostou do peixe grelhado? Experimente a vitela ao molho. Hoje o chef caprichou.

Ele tentava provocar um sorriso na menina. Era o mais velho da equipe, com sua experiência conhecia o peso do fardo não merecido sobre seus ombros.

Mesmo a piada sendo antiga, por simpatia ou necessidade ela sorriu. Seu almoço daquele dia, como de tantos outros que já nem se recordava, consistia numa pasta de raízes desidratadas enriquecida com proteínas e sais minerais. Pior que a aparência, era o sabor.

- Amanhã teremos frango a passarinho, já estou cansado de caviar.

Há vários anos o mundo havia mudado, enclausurados na remota estação Frankenstein os últimos espécimes humanos teimavam em sobreviver.

- Estou com medo Guss. Não sei se sou capaz.

- Você é a melhor, aquele fanfarão australiano apostava em você. Ele te preparou muito bem. Quantas vezes você já fez isto?

- Ele estava sempre comigo, nunca me deixou sozinha.

Elenice completou dezesseis anos a bem pouco tempo, não que alguém se importasse. Ela sabia que não era a melhor, apenas era a única.

Pilotar um helicóptero em condições adversas demandava muita habilidade. Isto, de cara o instrutor enxergou nela, mas tudo conspirava contra. Seu corpo em formação ainda não tinha força, seus reflexos rápidos não tinham experiência. Agora só restava ela, só a menina conseguia tirar aquela pilha de aço do chão, mais dois anos e estariam em boas mãos. O destino se cansou de beneficiar a humanidade, seu mentor foi contaminado. Ao morrer, o fardo foi passado à sua melhor aluna, e ela estava prestes a sucumbir ante tão dura provação.

Do outro lado do salão, mergulhado em seu ressentimento, Manoel olhava entristecido sem saber o que falar. Desejava se aproximar, mas tinha medo.

O sorriso melancólico da menina tocava seu coração. Aquele velho fracassado sonhava em ter uma única oportunidade de expor seus sentimentos, bastava poucos minutos a sós com a garota que seu mundo voltaria a ter sentido.

Ele sentiu-se desconfortável ao ver que Guss percebeu sua intenção. Baixou os olhos retornando a sua insignificância.

Na Frankenstein cada um tinha uma função, todos contribuíam para a sobrevivência do grupo. Lá fora, antes do mundo ruir, ele foi um importante empresário com mestrado em engenharia civil, por anos esteve à frente de grandes projetos governamentais. Ali não passava de um catador desprezado até mesmo entre seus parias.

Após participar de várias incursões com o australiano, quando soube que Elenice seria sua aprendiz teve um lapso de esperança. Por alguns dias deixou sua apatia costumeira empenhando-se na coleta dos restos da antiga civilização.

Terminado o almoço, Guss se despediu tendo um mau pressentimento ao deixar o refeitório. A garota saiu logo depois.

Os corredores de metal cinza, imersos na penumbra, ameaçavam revelar o perigo a todo instante. As inofensivas sombras se tornavam ameaçadoras, o silêncio quebrado pelo som do ferro cedendo ás investidas dos ventos gelados trazia a tona a fragilidade dos miseráveis ali refugiados.

Como o monstro criado para glorificar a divindade humana, a Frankenstein também foi feita de pedaços que mal se encaixavam, partes de uma ferida sem chances de cicatrizar. No começo, as estações polares eram independentes, com o tempo foram se juntando à medida que as bordas do continente antártico se tornava inseguro. Agora, resquícios de uma civilização se aglutinavam no interior, somente o frio os mantinham vivos.

O eco de passos tirou Elenice de suas divagações. Uma sombra projetou-se sobre seus ombros, o corpo estremeceu. Mesmo estando entre amigos, temia encarar quem a perseguia. Acelerou o caminhar.

Dois tripulantes apareceram bem a sua frente. Sentindo-se segura, virou-se a tempo de ver o vulto desaparecer por uma de tantas passagens atrás de si.

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Uma revolução não começa de um dia para outro. Ela avisa, mostra que algo esta errado. Só tem início quando os fracos se unem, tornam-se fortes erguendo-se em protesto.

Não se sabe ao certo quando aquilo começou, ela veio suave, foi chegando até se instalar. Pesquisadores acreditavam que a origem se deu com a extinção dos polinizadores. O extermínio das abelhas teria sido o estopim para a maldita evolução/revolução.

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Ao fugir do Rio de Janeiro em seu barco, o pai de Elenice dizia que aquela era a revolução dos tomates, as plantas devorariam as pessoas. Suas palavras na época pareciam engraçadas, mas agora para os sobreviventes, o quadro no refeitório tornou-se a lembrança de tempos onde o homem era a criatura superior.

Restava aos habitantes da última fortaleza humana na Terra, a esperança de desvendar o mistério, para isto faziam incursões cada vez mais para dentro do território contaminado em busca de informações. O destemido Chinook recebeu modificações e tanques extras melhorando sua autonomia de voo. Pontos de possíveis reabastecimentos foram localizados em antigas bases militares e aeroportos por todo o sul do continente americano. Se o combustível estivesse contaminado, o precavido australiano havia dado um jeito improvisando um decantador, quase sempre esteve um passo adiante dos imprevistos.

Além da jovem Elenice, a aeronave ainda contava com outros dois tripulantes: um navegador e um segundo piloto, este bem mais velho, porém faltava-lhe a habilidade nata encontrada na garota. Completando a equipe iriam três catadores e seis queimadores como segurança.

Enquanto caminhava acelerado pelos corredores após aquela sensação terrível de ser observada, voltou a pensar na fuga com a família, até o momento aquelas recordações estavam trancadas em seu subconsciente, ela não se permitia sofrer além do necessário, mas agora, agora a memoria fluía, no começo como gotas de chuva pingando no telhado, depois como a tempestade trazida pelos ventos revoltos.

Seu pai tinha razão, a cidade deixou de ser segura, fontes diziam que no sul as pessoas estavam livres da contaminação, quanto mais frio parecia haver menos riscos. O barco foi equipado, estocaram comida e água potável, num compartimento secreto, uma pequena fortuna em moeda americana. Sua mãe estava sempre agarrada a seu irmão mais novo, ficavam a maior parte do tempo na cabine, o pai a proibiu de procura-los.

Com efeito o ar frio da Patagônia lhes trouxe um pouco de esperanças. Um breve alento naquela sucessão de desventuras.

Uma vez ela ouviu as explicações, mas seu cérebro juvenil teimava em não processar. Primeiro foi o menino, seus pulmões fracos foram tomados pela praga. A mãe se recusou a abandona-lo, permaneceu a seu lado até o fim. O confinamento na cabine foi a única opção naqueles dias.

Justificativas, explicações, lógica, nada que foi dito convenceu a menina. Eram uma família. Sua mãe, O amor é sempre mais importante.

Tão jovem, não sabia que o amor também é sacrifício.

As vezes encostava-se à porta, tentava falar com a mãe, ouvia somente a mesma tosse rouca. O pai preocupado na condução do barco já não lhe dirigia a palavra, seus olhos fugiam sempre ao se aproximar da filha.

A lembrança se tornava clara em sua mente. A dor lhe queimava o peito como um sinal de alerta.

No convés inferior, a mãe com o filho nos braços olhava o horizonte, o pai um pouco afastado enxugava uma lágrima que insistiu em rolar.

Seus gritos não impediram aquele gesto abominável.

Debruçada sobre a mureta teve ainda tempo de ver o sorriso triste da mãe ao submergir. De seus lábios, como se quisesse lhe dizer adeus, um hálito esverdeado se desfez na água gelada.

Seu mundo tornou-se mais triste, perdeu assim as únicas pessoas que amava. Três dias depois foram resgatados juntando-se a tripulação da Frankenstein.

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Aquela missão de coleta seria a mais importante, não por ser a primeira sem seu mentor, mas por ir tão profundo no coração do território contaminado, jamais imaginava estar nesta situação.

As informações reunidas no período antes da pandemia e também oriundas de outras incursões davam como epicentro a cidade de Londrina no Paraná. Um moderno laboratório foi criado para pesquisar e desenvolver cultivos resistentes e rentáveis. Em pouco tempo os pesquisadores foram agraciados com alguns dos maiores prêmios da comunidade cientifica.

As primeiras plantas auto reprodutivas geravam até quatro safras por ano, sem insetos e resistentes a pragas não necessitavam pesticidas, a escassez de alimentos aos poucos foi superada.

Numa pequena cidade chilena, encontraram aquilo que deu fundamentos à necessidade da viagem. Um computador com tela quebrada guardava em sua memoria mais de duas horas de matéria sobre o milagre da multiplicação dos alimentos. Os cientistas do laboratório posavam como divindades encanadas na Terra.

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Cobrando alguns favores, Manoel com seu jeito ladino conseguiu um lugar no helicóptero, também, quando desejava, era um excelente catador.

Sendo o líder da estação, Guss mesmo apreensível cedeu a seus pedidos, afinal ali todos deveriam ter uma nova chance. Elenice não o reconheceu no traje a prova de contaminação, deveria permanecer assim, pois até o fim da viagem não iria retira-lo, como astronautas se alimentavam e faziam suas necessidades sem a exposição. Seu navegador tinha ordens para ficar de olho em suas ações.

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Tirando o deserto abaixo de zero, a preciosa esfera azul agora era verde oliva.

Por longos anos a fome açoitou principalmente a população pobre das áreas subtropicais. Sem polinização, espécies inteiras de vegetais rumaram à extinção, depois foram pequenos herbívoros até que por fim o flagelo se alastrou devastando a pecuária. O estoque de alimentos tornou-se escasso.

Como salvadores benevolentes, os geneticistas apresentaram a solução:

Manipulando o genoma, fundindo DNA, cruzando limites entre reinos, novas espécies foram criadas, a planta perfeita surgiu.

Um hibrido de vegetal e fungo capaz de fecundar a si mesmo, possuindo flores e bulbos de esporos que com o menor estimulo, ou mesmo pela ação do vento poderia encher o ar a sua volta com pequenas partículas que dariam início à reprodução.

Tiveram uma época de abundancia, o solo fértil provia o sustento das massas. Como no Egito, todos aproveitaram o tempo das vacas gordas. Só havia prosperidade.

Em tempos felizes o espírito indômito se abranda. O homem existe para vencer obstáculos. Quando em meio à tempestade ele doma a ventania, com tempos suaves sua vontade esmorece.

O primeiro golpe foi na indústria de alimentos, com o Éden ao alcance as vendas despencaram. Outros setores também foram incapazes de absorve o impacto negativo do grande milagre, o caos viria a seguir.

A víbora rastejante se espalhava em silêncio, seus benefícios ocultavam o perigo. Ninguém percebeu até ser tarde demais.

A humanidade se alimentava apenas do fruto da arrogância, e este se tornou amargo, intragável.

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Exceto pela apreensão de rumar para um território desconhecido, a viagem foi tranquila. As paradas foram programadas para cada quatro horas de voo, se necessário com segurança seis. Os pilotos se revezariam no comando.

Sem referências geográficas marcantes, pois o cenário monótono coberto por vegetais fazia continente e oceano se confundirem, água e terra se tornaram de um emaranhado de cipós e raízes que sem concorrência não passavam de dois metros de altura.

Alívio vinha ao sobrevoar uma cidade antiga, certificando-se de estarem na direção correta.

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Próximo a seu destino, a brusca mudança de cenário surpreendeu a todos. Distante no horizonte, gigantescas formações arbóreas se erguiam até as nuvens. Chegaram tão longe que aquele imprevisto não os fariam retornar.

Voando entre as árvores, sentiam-se sem folego. Os troncos enormes recobertos de raízes terminavam numa abóboda quase impermeável, a pouca luz solar que vencia os obstáculos rasgavam a penumbra como uma faca afiada.

Vestígios da cidade ainda podiam ser reconhecidos apesar da destruição. O asfalto fora vencido pela persistência.

Este revés estimulou ainda mais a curiosidade de alguns. Voariam segundo a margem de segurança até o retorno ao último posto de reabastecimento.

Em meio aquele caos, um grande prédio parcialmente demolido pareceu promissor. Via-se que teve seu período de glória. Talvez ali encontrassem mais informações, qualquer coisa faria uma grande diferença.

Respeitando o protocolo, a tripulação permaneceu na aeronave. Um catador saiu com suas mochilas em busca do que fosse útil. Dois seguranças munidos com lança chamas o escoltava. Ao caminhar cinquenta metros, a outra equipe foi liberada. No fim, os três grupos desapareceram em meio ao labirinto de escombros.

O solo macio, coberto por matéria em decomposição nutria as raízes das plantas que com habilidades genéticas adquiridas após a mutação ganharam certa mobilidade, se esgueirando sorrateiras mediante qualquer estimulo. As chamas as faziam recuar.

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O helicóptero estava pronto. Elenice sentia-se responsável pela equipe em solo que já deveria ter retornado, sabia que durante a noite seria complicado reabastecer.

Quem deu o alerta foi o navegador.

Das ruinas vinham desesperados quatro sobreviventes. Os cipós do lado de fora se agitaram em frenesi, os dois mais lentos foram arrebatados gritando em agonia. Na esperança de deter o avanço das plantas, o último queimador parou. O ar tornou-se denso. Das copas das árvores uma nevoa de esporos caia. O homem se viu envolvido pela raiz homicida.

Assustada, a jovem tentou decolar. Esforço vão, pois estavam também presos.

Manoel sentiu que sobreviveu apenas para chegar a este trágico momento. Num ímpeto de heroísmo, pegou os cilindros reservas dos queimadores e como um louco pulou da aeronave.

Enquanto se manteve de pé, queimou tudo que se aproximava.

O helicóptero decolou, Elenice tinha esperanças que o catador se agarrasse na aeronave.

Era tarde. Envolto num abraço mortal, ele retirou o capacete respirando os esporos envenenados.

Com lágrimas nos olhos enquanto fugia, a menina viu seu pai sorrir.

- Eu odeio tomates. Ele gritou.

Um clarão dissipou a escuridão. Seu corpo foi consumido pela explosão.

Tema- Mutação Genética

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 04/12/2021
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