I've seen that life

Eu vejo que a vida
Touches us with pain

Tocou-nos com dor
And we change

E mudamos
Becoming strangers to our friends

Tornamo-nos estranhos para nossos amigos
Tell me what happens along the way

Diga-me o que aconteceu ao longo do caminho?

 

Wall Of Silence

- October Project


 

 

 

 

 

 

 

 

Era manhã de verão e muitas crianças brincavam despreocupadas na rua de terra batida. Ao longe uma grande figura despontava pouco a pouco no horizonte. Era uma forma magra e suja, andava curvada e carregava um grande saco de pano sujo nas costas. Era um velho, tão velho que a pele de seu corpo lembrava algo como papelão escuro castigado pelo tempo. Sobre a cabeça, um grande chapéu de palha desfiado. Os olhos eram de um verde claro invejável.

 

O homem chegou mais perto e uma das crianças pareceu perceber. Era uma menina. Ela olhou com mais atenção e seu rosto mudou de feição ao perceber quem era aquele. O medo lhe mordeu como um bicho e ela alertou a todos com seus gritos de terror.

 

- O velho do saco! O velho do saco!

 

Em instantes o pânico se espalhou, infectando todos os pequenos, que numa desmantelada carreira procuraram a segurança mais do que absoluta do interior de suas casas. Quando menos se percebeu a velha rua estava vazia, sobrando apenas nuvens de poeira pardacenta no ar.

 

O velho homem pareceu não se importar, talvez já estivesse acostumado com aquilo. Ele avançou vagarosamente, baixando a aba de seu chapéu para cobrir os olhos da poeira de piçarra do caminho, mas antes que pudesse seguir seu rumo uma voz chamou sua atenção. O velho olhou na direção do som e viu uma mulher esboçando um pequeno sorriso. 

 

- Senhor..

 

Era a mãe de um dos meninos que jogava bola com os amigos ali. Estava junto da porta de um dos pobres casebres da vila. Atrás dela um meninote tremia com lágrimas e suor fresco no rosto, agarrando firme em sua saia com a uma pilastra de um porto seguro.

 

- Vá desculpando eles.. São só mininos.

 

O homem chegou um pouco mais perto. Ela continuou.

 

- A gente devia parar de contar essas histórias que ovia quando era pequeno. Ainda mais depois do sumiço de uma menina da vila vizinha.

 

- Tudo bem moça, tudo bem. Isso sempre acontece.

 

Disse o velho de aparência cansada.

 

- O senhor tá cum fome?

 

- Um pouco.

 

A mulher entrou na casa à procura de algum alimento, enquanto a criança ficou paralisada, observando apreensiva aquele homem estranho em sua porta. Os cabelos eram brancos e os dentes eram amarelados e cariados. Os membros pareciam ser mais longos do que deveriam. A postura era um pouco tosca e desengonçada, torta graças ao peso do grande saco sobre seu corpo esguio.

 

- Tome.

 

Disse ela, voltando do interior da casa com um embrulho nas mãos. Eram alguns pães amanhecidos enrolados num pano de prato feito à mão.

 

- É pouco, mais é de coração. Que Deus ti abençoe.

 

- Brigado dona.

 

Falou, levantando o alimento em sinal de gratidão.

 

- Que ele lhe pague.

 

O homem já ia retomar seu caminho, mas antes que o fizesse se voltou mais uma vez para a mãe e seu filho. A criança apertou com mais força a barra da saia da mãe, enquanto via o velho colocar o saco no chão. O homem desamarrou as grossas cordas do saco e de lá tirou algo que cabia na palma da mão. Era um par de bolinhas de gude brilhantes. Sorridente, ele estendeu seu braço longo em direção da criança, que correu como uma bala para dentro de casa. A mãe um tanto sem graça recebeu o presente e agradeceu com uma reverência improvisada.

 

- Olhos de gato.

 

Dizendo isso, o homem acenou com a cabeça, colocou o saco nas costas e partiu. Da janela da sala o menino o observava desaparecer lentamente em meio à poeira suja no horizonte do fim da rua.

 

No fim daquele dia a mãe teve uma conversa franca com seu filho. Com calma explicou que a história do homem do saco era apenas uma desculpa para crianças arteiras se comportarem, também falou que existiam pessoas ruins, mas que não poderiam confundi-las com pessoas humildes e necessitadas como aquele pobre homem. O garoto por sua vez tentou argumentar, usando sua frágil e amedrontada lógica infantil, mas foi derrotado com folga pela réplica embasada de sua genitora.

 

 

 

...

 

 

 

Depois da janta simples ela lhe deu as bolinhas e o mandou pra cama. Em pouco tempo ele pegou no sono e dormiu protegido e seguro por sua impenetrável coberta remendada. Na manhã seguinte sua mãe lhe chamou para o café, mas não teve resposta. Talvez tivesse saído para brincar antes de comer, coisa que ela sempre lhe pedia para não fazer. Mas crianças são crianças.

 

Longe dali, o menino andava despreocupado com as bolinhas que tinha ganhado. O par tinha uma cor linda e fazia um som gostoso a cada acerto. Decidiu então brincar sozinho fora dos limites da vila, bem próximo do leito seco do rio que passava atrás das primeiras moradias. Mesmo a terra seca do riacho era ótima para a brincadeira, permitindo as bolinhas correrem sem muitos obstáculos. Cada tentativa era um acerto preciso acompanhado com um sorriso no rosto. Aos poucos o som do atrito pareceu o colocar numa espécie de transe, lhe convidado para mais um movimento, mais uma jogada. O menino então continuou brincando, enquanto se afastava mais e mais de sua vila.  

 

Já era alta tarde quando a criança voltou a si. Estava agora num lugar desconhecido, numa trilha de areia branca cercada por uma floresta densa de árvores secas e tortas. Um pouco mais a frente havia uma espécie de cabana de madeira bem velha no que parecia uma pequena clareira. Ao fundo, entre os galhos das árvores, ele pode ver que o sol já começava a se pôr, olhou então para trás e viu um caminho tortuoso de mata densa que começava a escurecer rapidamente. As bolinhas de gude por sua vez ainda estavam em sua mão direita.

 

Sem ter opção, o menino guardou seu brinquedo e andou até a cabana. Ao chegar de frente ao casebre percebeu que a porta estava entreaberta. Por instinto bateu palmas para chamar o possível dono. Depois de algumas tentativas sem resposta decidiu entrar para ter certeza que não havia ninguém que pudesse lhe ajudar a chegar em casa. O garoto então abriu um pouco mais a porta de madeira, que pareceu ranger em uníssono com a velha estrutura da cabana. Logo ao entrar sentiu um cheiro forte de mofo e descuido, como se o lugar fosse abandonado. Não havia muitos móveis na sala, exceto uma cadeira de balanço caindo aos pedaços e uma pequena mesinha ao lado dela. Fora a sala, só tinha mais um cômodo na cabana, era uma cozinha com um grande forno à lenha, um armário com muitas panelas amassadas, uma pia com alguns pratos escuros e uma grande mesa de madeira pintada de vermelho. 

 

Por toda a cozinha havia algumas dezenas de potes de vidro de vários tamanhos com algum tipo de conserva flutuando. Graças à sujeira densa que cobria os vidros era quase impossível ver o conteúdo. O menino então resolveu olhar mais de perto, limpando com as mãos um dos potes. Mesmo com sua insistência teimosa a grossa camada de sujeira não cedeu. Tentou outro recipiente, esse maior e de aparência mais nova. Depois de alguns esfregões na lateral foi possível finalmente ver o que tinha lá dentro. A imagem o estremeceu na hora ao ver dezenas de olhos humanos flutuando numa mistura leitosa.

 

O susto foi tão grande que ele derrubou o pote e todo seu conteúdo sobre o chão da cozinha. Mesmo aterrorizado olhou melhor o conteúdo fora do líquido gosmento e percebeu que não eram olhos, e sim bolinhas de gude espalhadas pelo piso de madeira da cabana. Tirou as bolinhas do bolso do calção e comparou com as do chão.  Ao colocá-las lado a lado percebeu que eram muito parecidas em cor e tamanho. Foi então que percebeu que o líquido estava escorrendo entre o espaço das tábuas do chão para algum lugar oco embaixo da casa. Ao se abaixar e ver mais de perto notou que havia alguém ali, e para seu espanto era a menina da vila vizinha que tinha desaparecido.

 

- Atrás.. de ti. - disse ela tremendo, apontando quase sem forças.

 

O garoto virou e viu uma grande figura magra e de olhos verdes sorrindo um sorriso podre. Atrás do velho o imenso saco se revirava numa agonia de gritos infantis abafados.  

 

 



 

Nenhuma daquelas crianças jamais foi encontrada. No entanto, mais e mais bolinhas de gude teimavam em aparecer em outras vilas.    

 

 

 

 

 

Jeff Silva
Enviado por Jeff Silva em 05/12/2021
Reeditado em 15/02/2024
Código do texto: T7400585
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