O Morto Fumante
O Morto Fumante
-Rafael Macário
Era uma gélida noite de inverno, o céu estava cinza, carregado de nuvens que sopravam uma torrente de calafrios que tocavam sua pele e subiam pela espinha pelo sistema nervoso. Nesta noite havia um grupo de jovens bebendo em uma casa abandonada, John, Katy e Tony, três adolescentes rebeldes e com uma leve curiosidade com o místico. A casa abandonada se encontrava cheirando a mofo, havia um gato preto e o lugar estava aceso por velas (algumas colocadas na boca de garrafas de vodka), haviam algumas latas furadas no chão, de algum nóia que passou ali antes; mas pelo menos ainda havia sobrado um sofá na casa.
-Já ouviram falar sobre o Morto Fumante? - Perguntou John que tinha longos cabelos castanhos quase loiros, usava um óculos quadrado, tinha nariz pontiagudo, usava um brinco de dente de tubarão e uma simples calça jeans com uma camisa do Joy Division.
-Me disseram que quem passa lá nunca volta - respondeu Katy que tinha pele clara, cabelo rosa moicano, gostava de usar preto e tinha uma tatuagem do Motörhead no pescoço.
-Eu passei lá de carro com meu pai - disse Tony, de olhos castanhos claros, um black power com bandana estilo Hendrix e algumas roupas de brechó que poderiam ter sido usadas por algum maluco de BR que estava precisando de dinheiro rápido - mas não vi nada.
-Dizem que de carro ele não aparece. - Disse John.
-Vamos lá ver se ele existe, ou não, tenho minhas dúvidas (muitas). - Disse Katy com ênfase no “muitas”.
-Eu levo a vodka - disse John que logo então bebeu um gole da vodka pelo gargalo e ofereceu para Katy.
-Let’s bora! - Disse Katy após beber também um gole da vodka.
Não era muito longe, apenas precisavam pegar a estrada de terra três quarteirões de onde estavam e andar vinte minutos até a Encruzilhada do Morto. O caminho na estrada dessa vez pareceu mais tenso que nunca, logo ao entrar todos se assustaram, um som normal poderia parecer estrondosamente alto, havia tanto silêncio que podiam se ouvir apenas os passos e a respiração dos jovens. Todos pularam de susto, Katy gritou e pulou se agarrando em Tony - que sentiu um leve instinto masculino que disse “beije-a!”, o que tentaria fazer se John não estivesse logo ao lado dos dois, você poderia estar alguns metros à frente, excomungado!
Mais alguns metros adiante encontraram uma oferenda, John a estranhou, pois as conhecia, sua mãe frequenta terreiros de umbanda (mas John não), havia sete maços de cigarros, três de paieros Cascavel (o melhor paiero do mundo), dois Hollywood’s vermelhos e dois Lucky Strikes de menta; no lugar de velas haviam apenas isqueiros e fósforos, no lugar de alguma bebida ou sacrifício animal (que no caso seria candomblé), havia apenas um cinzeiro. Ninguém disse nada, mas não era voluntário, algo os sufocava, algo maior que eles, e isso estava apertando suas gargantas.
-Chegamos - finalmente eu consigo dizer algo! Pensou Katy - e eu não estou vendo nada - mas ainda sinto um pouco de medo - John, você tá me devendo 10 conto.
-Eu nem apostei com você, Katy!
-Cigarro - uma voz rouca dizia - cigarro - parecia que cordas vocais mortas e semi-decompostas voltaram a funcionar - cigarro - não apenas isso - cigarro - a voz decomposta de um morto fumante - você tem cigarro? - Era ele mesmo, um cadáver estava perguntando, essa visão os paralisou, fez seus sangues se esfriarem a ponto de sentirem como se corresse gelo em suas veias - vocês tem cigarro? - O cavalheiro que perguntava continha uma camisa social toda rasgada que mostrava a maior parte de seus corpo que era composto por carne decomposta e cheia de vermes que comiam sem comer, como se usa carne houvesse parado no tempo, se sua podridão houvesse chegado em um limite mórbido que profanava a ordem natural da vida. Não havia verme que pudesse comer esse corpo, tampouco fundo ou bactéria, era uma carne imortal. Podre, mas ainda assim, imortal.
-Eu tenho! - Gritou Tony em um tom de voz que misturava pânico, adrenalina e choro.
-Cigarro?
-Sim - sua voz dizia: um passo de chorar.
-Me dê um cigarro, por favor, meu jovem senhor.
-Toma! - Tony com medo e desesperado jogou o maço no chão sem pensar no que estava fazendo.
-Que coisa feia, jovem! Apanhe esse cigarro e me entregue como se deve, se houver um pingo de cavalheirismo em si - ele tentou respirar fundo, mas seu sistema respiratório parou de funcionar à mais de um século - fazendo o favor, meu caro; e desculpe-me por meu torpe ataque de raiva.
-Tudo bem, eu acho - Tony disse confuso, com o medo um pouco menor, e então pegou o maço, tirou um cigarro e entregou ao morto. Tony percebeu que haviam cinco cigarros de palha em uma de suas mãos, um fumado pela metade. Na outra mão havia um isqueiro de prata vintage brilhante com o desenho de uma caveira e ossos cruzados.
-Muito obrigado, meu caro rapaz. - ele acendeu o cigarro - querem se juntar a mim se não for incômodo?
Todos acenderam um cigarro e olharam fixamente para o morto. Katy olhando fixamente para seus olhos. Um era branco, se prestasse bem atenção, dava para ver o olho-de-peixe-morto por detrás de sua córnea semi-decomposta onde também se podia ver alguns vermes se rastejando. O outro era apenas um buraco negro, um buraco escuro e profundo dentro da cabeça do pobre defunto, um buraco mórbido que refletia o vazio da alma, que fazia-a questionar qual a razão do existir. Katy estava chorando, John tremia de medo, e Tony respirava fundo (o que era difícil fumando).
-Por que tanto pavor, jovens? Nunca viram uma alma atormentada que se prendeu na terra pelo amor ao vício antes?
-Não, senhor. - Disse Tony, agora, um pouco mais calmo.
-Pode me chamar apenas de “Morto”.
-Ok, Morto - imagina que estranho se algum dia uma sogra chamasse o genro assim, pensou Tony - por que você está aqui?
-Eu estava apenas de passagem quando comecei a tossir sangue e sentir o corpo fraquejar, eu vou fumar para o resto da eternidade! Jurei enquanto segurava meus cigarros com força e acendia outro que se sujou de sangue ao encostar na minha boca, eu o acendi e tudo ficou escuro. Eu caí e acordei aqui, morto. Sem pulso, sem respiração e com o sangue frio e parado, tão parado que juntaria dengue se não estivesse preso dentro de meu corpo. Ia dizer que acho que ele já secou, mas se houvesse, eu não estaria me movendo hoje.
-Então sua missão na Terra é fumar eternamente? - John havia se acalmado bastante quando perguntou.
-Exatamente, meu caro!
-Que você era quando estava vivo?
-É uma ótima pergunta! Mas eu também não sei, apenas me lembro dos meus últimos minutos.
-Qual é a sensação de morrer? - Katy perguntou, parecia ter parado de chorar, mas seus olhos ainda estavam demasiadamente molhados.
-Você sente seu corpo ficando mais fraco, como se a alma estivesse desprendendo de tal aos poucos, a audição fica bem mais aguçada, no início é desesperador, mas ao acostumar fica bom, relaxante, você fica bobo, seu cérebro vai perdendo o oxigênio e você se sente em paz aceitando que sua missão na Terra foi cumprida (o que não foi o meu caso), a realidade vai se desfocando, se perdendo, novamente você está voltando para dentro do útero da sua mãe,
tum, tum,
você ouve e sente apenas o coração bater,
tum, tum,
adeus amigo, você que me manteve em pé por tanto tempo,
tum, tum,
você está muito fraco.
tum…
muito…
tum…
fraco…
ele para de bater e sua alma é puxada para longe e de repente você acorda fumando para sempre em uma encruzilhada.
-Dói? - Perguntou Katy que nessa altura do campeonato já estava acostumada com a tão mortuária situação.
-Só no começo, minha cara.
-Como você sabe como é uma criança de três anos se não se lembra de nada? - Perguntou tony que agora já até agia naturalmente.
-Cala a boca, Tony! - Xingou John.
-Não precisa dessa falta de respeito, jovens! Eu me lembro… não sei dizer, eu apenas “me lembro das coisas”, sabe? É como memória muscular, um instinto, algo que esse pobre cadáver fumante não consegue explicar. Não me lembro nem de quem era minha própria mãe.
-Qual seu nome? - Continuou a perguntar, Tony.
-Dizem ser Morto Fumante.
-À quanto tempo você está aqui?
-Estou aqui há tanto tempo que já até perdi a noção do tempo, meu caro irmão.
-Esses cigarros nunca acabam? - Tony perguntou olhando sua mão.
-Quando um acaba é só eu olhar para o lado, quando olho na mão, lá está outro novo. Já até tentei fumar todos ao mesmo tempo, mas para minha sorte, todos eles voltaram. Imagine só que tristeza: um morto fumante sem fumar.
-Por que você nos pediu um cigarro? - Katy perguntou de maneira curiosa e inocente.
-Katy! - Xingaram os dois rapazes juntos.
-Acalmem-se, jovens, é simples: o sabor de cigarros diferentes apenas. E a propósito, o meu apagou, você poderia me dar outro?
-Claro - dessa vez foi Katy quem ofereceu.
-De menta! - Faz tanto tempo que não vejo desses! Pararam de fabricar? Apenas vejo Luckies ultimamente.
-São meus favoritos.
-Você tem bom gosto, jovem!
-Obrigada - eu fui elogiada por um defunto… um defunto fumante… que legal!
-De nada, minha cara!
-Você fuma maconha? - John e Tony a olharam repreendendo-a - o que foi? Só perguntei, poxa!
-Não, se não eu seria o Morto Maconheiro - ele deu uma estranha risada com suas cordas vocais mortas - e não o Morto Fumante.
-Faz sentido.
-Vocês poderiam me fazer um favor?
-Qual? - Katy perguntou.
-Fumem um de meus cigarros por favor, ou terei de vos levar para bem distante desse mundo.
-A gente vai morrer?! - Todos gritaram com medo, Katy voltou a chorar como um bebê, Tony perdeu o ar e John caiu de joelhos, pálido, escorrendo algumas lágrimas. Toda a calma previamente adquirida tinha ido embora, como um peixinho morto descendo pela privada.
-Não se fumarem meus cigarros. Por favor, claro, não estou obrigando ninguém… alguns preferem o suicídio, que pena, não sabem o sofrimento que é do outro lado para esses.
Todos fumaram com medo. Logo pararam enjoados, acabaram sem fôlego devido à pressão alta por conta do medo.
-Não precisam de pressa, apenas fumem até o final, saberemos que acabou quando surgirem novamente em minha mão.
-Por que? - Perguntou John, às lágrimas.
-Depois eu explico, me desculpem, não posso explicar agora.
-P-p-p-or q-q-que s-s-só depois? - Katy perguntou chorando tanto, soluçando tanto que era difícil entendê-la.
-Vocês só tem que fumar um carro meu para não irem embora, depois eu explico, juro que vocês vão ficar bem. Juro pelo meu cadáver
-Mas por que a gente vai morrer se não fumar? - Perguntou Tony que era o mais controlado entre os três, que apenas tremia seu corpo todo.
-Quanto mais rápido acabarem, mais rápido saberão. Juro que é um bom motivo.
-Poderia nos dizer de alguma maneira mais simples, pelo menos?
-Ah… paz. Isso! Paz, apenas paz e nada mais.
-Como assim?
-Já disse que depois explico.
-Devo ter medo?
-Nem um pouco
-Gente, álcool faz a gente alucinar? - John perguntou.
-Não, não, jovem, sou 100% real, pode acreditar nesse cadáver que falas agora contigo.
-Você é um espírito maligno? - Os outros dois jovens olharam para Tony com tanto pavor que parecia que seus olhos pulariam para fora de seus rostos ao mesmo tempo que iam desmaiar.
-Nem um pouco, qualquer outro poderia ter subido em cima de seus corpos para devorar todo sangue que corre em suas veias… ou algo parecido… Eu acho, nunca saí daqui para conhecer outra alma atormentada.
-Espero nunca conhecer outro. - Disse Katy.
-Isso é algo contra meu cadáver? - Era possível ver em seu semblante mórbido que havia levado para o pessoal.
-Não - ela disse em pânico - não, é que eu tenho medo dos outros me matarem - ela ficou com mais medo ao olhar um verme gordo pular do buraco onde não havia olho.
-Entendo, entendo - ele olha na mão e vê que um cigarro havia voltado - vejo que alguém já acabou.
-Fui eu. - disse Katy aliviada, ela tinha o costume de fumar quando com ansiedade, o que a ajudou a fumar rapidamente nesse momento de pânico.
-Você fuma rápido, menina, agora só faltam seus companheiros.
-Você pode me contar agora? - Ela dizia um pouco aliviada por ter acabado de fumar.
-Apenas quando todos acabarem, me desculpe, senhorita.
-Eu estou salva?
-Sim, sim, sem preocupações.
-Tem algo de diferente nesses cigarros?
-Materialmente, apenas palha e fumo.
-Que fumo?
-Tabaco, claro.
-Certeza?
-Toda.
-Acabei! - Disse John. - Agora só falta você, Tony! Vai logo!
-Sem pressa, deixe-o aproveitar o cigarro com calma.
-Como você se sente ficando aqui para sempre? - Perguntou Katy.
-Eu adoro! Os cigarros nunca acabam!
-Deve ser ótimo - Tony disse sentindo certa estranheza na ideia de não fazer nada na vida além de fumar.
-Mais que ótimo, rapaz, Perfeito! - E então adicionou - Onde estão meus modos! Só agora percebi que não perguntei o nome de vocês, mil perdões!
-Tony.
-Katy.
-John.
-Acabei - disse Tony - finalmente.
-Ótimo, ótimo! Como vocês chegaram aqui?
-Uns amigos nos falaram de você.
-Quais?
-Joseph.
-Joseph, Joseph… ah sim, amigo de Yoko, Kayla e Christian, não?
-Como você sabe? - Katy perguntou morrendo de medo. E que medo infernal!
-Yoko é a única viva, não?
-Como você sabe? - Katy agora estava com tanto pânico quanto quando achou que ia desmaiar de tanto medo pois…
-Eu levei eles.
-Por que?
-Paz, como antes dito. Não quero ser nenhuma atração de livros ou músicas, não quero ser nenhuma… como vocês a chamam? “Loira do banheiro?” Imaginem que inferno se toda hora viessem crianças curiosas aqui me perturbar! Apenas os respeitosos daqui saem vivos. E os respeitosos que não, apenas espalham meu nome para sortudos como vocês que tiveram a honra de conversar com essa pobre assombração que vos fala. Enfim, não sejam malditos, mantenham a boca fechada, voltem quando quiserem. Mas se não quiserem, tudo bem, apenas vos digo: mencione este corpo apodrecido que está a falar na sua frente para qualquer um que não conheça tal, e nunca mais terá a oportunidade de falar uma segunda vez.
-Certo! - Concordaram todos com uma palavra unisom e definitiva, um voto de silêncio eterno, para o resto da vida.
-Obrigado! Agora voltarei para meu descanso, muito obrigado pelos cigarros! Tenham uma ótima noite, adeus. - Ele se deitou no chão, estava morto como um cadáver (afinal ele era um), mas seu corpo agora não se mexia mais, era estático, apenas um pedaço de carne e ossos prontos para apodrecer que nunca hão de apodrecer. Suas únicas partes “vivas” agora eram seu braço, boca e pulmões que tragavam a fumaça de seu cigarro, simulando respirar uma fumaça tabagista de nicotina.
Raramente John voltava lá com Tony. Katy, por outro lado, ia lá duas vezes por mês. Sabe qual a melhor parte de estar entre os mortos? Que eles sempre estão dispostos a te ouvir, ela dizia.